por João Marques
Assim que começou a pandemia de covid-19, cresceu, em todo o mundo, a procura por livros escritos ou ambientados em outras épocas pandêmicas da história. Quando falei, aqui, da distopia A nova ordem, de B. Kucinski, comentei sobre um dos procurados, Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe. Publicado em 1722, o livro mistura ficção e reportagem e conta a história da peste que atingiu Londres em 1665; mas a lista é extensa. Outro exemplo, obra-prima da prosa clássica italiana, é Decamerão, de Giovanni Bocaccio, escrito entre 1348 e 1353, logo após a grande peste. Em março de 2020, seus estoques começaram a se esgotar nas livrarias dos EUA; esse fenômeno inspirou os editores do The New York Times Magazine a organizar uma antologia. Enquanto o coronavírus avançava sobre os seis continentes, convidaram 29 autores para escrever suas histórias da pandemia. A primeira versão desse projeto foi publicada na revista, em julho do ano passado. Meses depois, saiu o livro, que, traduzido para o português, acaba de ser lançado no Brasil: O projeto Decamerão: 29 histórias da pandemia, vários autores (Rocco, 320 págs.).
Florença, século 14, os infectados pela peste desenvolvem protuberâncias e manchas escuras pelo corpo, aparentam saúde pela manhã e à noite, estão mortos; no livro de Boccaccio, dez jovens entram em quarentena, se isolam numa casa de campo e ficam por dez dias, se protegendo e celebrando a vida; comem, cantam e se revezam, contando histórias uns aos outros, e é exatamente esse o espírito de O projeto Decamerão. “Ler histórias em tempos difíceis é um modo de compreender esses tempos, além de uma ferramenta para seguir em frente”, escreve a escritora canadense Rivka Galchen, na introdução do livro, e acrescenta: “Os contos são salvadores, ainda que o entretenimento seja uma das principais maneiras pelas quais eles podem salvar uma vida”.
Além das histórias que podem salvar, o livro apresenta relevante recorte da produção literária contemporânea mundial. Escritores dos EUA, Reino Unido, Canadá, Paquistão, Irlanda, Marrocos, China, Israel, Sérvia, Chile, Etiópia, Itália, Nigéria, Irã, Haiti e, ainda, dois autores de língua portuguesa, o brasileiro Julián Fuks e o moçambicano Mia Couto, participam desse projeto. No conto do israelense Etgar Keret, o toque de recolher acaba, mas ninguém mais quer sair de casa, estão felizes longe dos outros; o estadunidense John Wray escreve sobre um jovem que aluga cães para passear, usados para burlar as restrições; a canadense Margaret Atwood, de O conto da aia, fala de um alienígena enviado à Terra, como parte de um pacote de auxílio interestelar; narrada em primeira pessoa, pelo marido, história bem-humorada do italiano Paolo Giordano descreve a rotina de casa depois que seu enteado volta a morar com a mãe; no conto de Mia Couto, narrador confunde agente de saúde, que bate à sua porta para medir a temperatura, com assaltante armado; reflexiva, a história de Julián Fuks trata das mortes pela pandemia no Brasil, tanto o falecimento das pessoas, quanto a morte do tempo.
DICAS DE LEITURA
Elas marchavam sob o sol
Cristina Judar
Dublinense, 160 págs.
Com uma narrativa cercada por violência, perseguição religiosa e perda de liberdade e direitos, jornalista lança novo
romance que acompanha a vida de duas jovens.
Os dois mundos de Isabel
Daniela Arbex
Intrínseca, 304 págs.
Jornalista conta a saga de Isabel Salomão de Campos, fundadora do centro espírita Casa do Caminho, que atende
crianças e famílias em situação de vulnerabilidade social.
Vista Chinesa
Tatiana Salem Levy
Todavia, 112 págs.
A partir de fato real, autora cria ficção e conta a história de Júlia, sócia de escritório que atuava em projetos na Vila Olímpica, no Rio de Janeiro, e é vítima de estupro no Alto da Boa Vista.
O som do rugido da onça
Micheliny Verunschk
Cia das Letras, 168 págs.
Autora constrói narrativa que entrelaça trama do século 19 ao Brasil contemporâneo e, com lirismo, trata de temas como memória, colonialismo e pertencimento.
O ar de uma teimosia
Ana Elisa Ribeiro
Macabéa, 150 págs.
Professora analisa correspondências de Clarice Lispector, Lucia Machado de Almeida e Henriqueta Lisboa, mostra as
suas dificuldades para publicar e revela o poder masculino que estava (e ainda está) presente no mercado literário.