“Sou um sobrevivente do coronavírus”

Com o caso subestimado pelo Einstein, jornalista foi salvo pelo SUS de Barueri

por Decio Trujilo

Sou um sobrevivente do ataque do coronavírus. Por causa do bichinho, entre setembro e novembro de 2020, passei 62 dias internado. Fiquei mais de 50 dias sedado, dos quais 28, intubado. À covid, seguiu-se uma infecção hospitalar que exigiu sessões de hemodiálise e transfusão de sangue. No momento mais grave, fui “desenganado” pelos médicos. Hoje, mais de cinco meses depois da alta, ainda me recupero dos danos musculares que sofri.

Foto: Cadu Bazilevski

Fui pego num momento de descuido. Por seis meses, eu, que moro só, segui os protocolos. Fiquei trancado, saía apenas para o estritamente necessário, sempre de máscara, tirava a roupa e os sapatos ao chegar em casa, me besuntava de álcool em gel, inclusive a barba, e praticava a agradável tarefa de lavar as compras em sabão… garrafas de refrigerante, latas de cerveja, embalagens de leite, sacos de arroz, latas de sardinha, enfim, era o ermitão padrão.

Até que veio o tal descuido, quando começamos a fazer entrevistas em estúdio para o portal do qual eu era editor, o Barueri na Rede. Apesar de todos os cuidados, como uso de máscara, distanciamento e álcool em gel, eu e mais quatro colegas nos contaminamos. Sabemos que a atividade de jornalista muitas vezes nos empurra para o risco. Um grupo trancado durante horas num mesmo ambiente vai ter que comer em algum momento, tomar café. Além disso, fazíamos as entrevistas sem máscaras.

Comecei a ter sintomas leves na primeira semana de setembro. A princípio, parecia uma gripezinha. No domingo, fui ao pronto-socorro da cidade. O médico disse que tudo indicava que eu tinha covid. Receitou-me um coquetel dos medicamentos usuais e mandou coletar material para exame. O resultado sairia em 12 dias.

Mas comecei a piorar. Um teste rápido deu negativo. Na sexta-feira, fui à unidade do Hospital Albert Einstein de Alphaville. Fiz todos os exames, passei por um médico, que levou meu caso a uma equipe. Concluíram que meu quadro era estável e leve. Fui mandado para casa com a orientação de aguardar dois dias. Se não melhorasse ou piorasse antes disso, que voltasse ao hospital. Mas me tranquilizaram.

No entanto, no sábado de manhã, uma amiga me colocou em contato com a médica da família Clarissa Willets. Ela me pediu os exames do Einstein e, ao vê-los, disse que eu tinha que ser internado imediatamente. A doutora Clarissa, médica do serviço público, que me atendeu por telefone num fim de semana sem nem me conhecer, teve papel fundamental na minha história. Já o Einstein…

Fui atendido no sistema de saúde de Barueri naquele dia e internado à noite. Minha capacidade pulmonar estava comprometida em pouco mais de 50%. A primeira conclusão foi de que meu caso era relativamente tranquilo, mas no terceiro dia de internação precisei ser intubado. Não adiantou meu histórico de atleta, de quem corria alguns quilômetros três vezes por semana e nunca fumou, que tinha coração e pulmões exemplares.

Sobre os 50 dias seguintes, eu soube pelo que me contaram. Após 11 dias, quando o quadro da covid estava resolvido e iam me tirar a sedação, fui acometido por uma infecção hospitalar que resultou em mais 17 dias no tubo. Neste período, meu estado de saúde alternou períodos de melhora e piora, e meus filhos foram, em certo momento, orientados a pensar no meu conforto. No caso, conforto eterno. Sim, afinal, todos nós vamos morrer, não é?

Um dos dramas da covid é a falta de contato do momento da internação até a alta, ou a morte. Enquanto eu dormia, do lado de fora a família se desesperava. Cada boletim diário era um golpe. Houve um dia em que meu irmão, um sobrinho e meu filho mais velho se reuniram e “me beberam”, como hoje contam bem-humorados. Na ocasião, foi meio que uma despedida.

Mas a equipe médica não desistiu de mim e conseguiu reverter o quadro. Após várias tentativas, fui extubado e iniciaram o lento processo de me trazer de volta à lucidez. Depois disso, ainda seriam necessários mais dez dias até que eu pudesse ter alta.

A recuperação tem sido lenta. Em 12 de abril, ao completar cinco meses de alta, já andava sem apoio dentro de casa e, fora, com o auxílio de uma bengala em pequenos trajetos. Continuo na fisioterapia para eliminar sequelas físicas que persistem. Qualquer esforço provoca cansaço e dores musculares. A escara, que me impedia de sentar e de fazer vários dos exercícios físicos, está quase cicatrizada, depois de mais de 200 trocas de curativos.

Depois de dois meses, estava de volta para casa. Seria necessário um longo trabalho de recuperação: musculatura toda atrofiada, uma escara nas costas do tamanho e profundidade de um pêssego cortado ao meio, nenhum senso de equilíbrio, tontura a qualquer movimento, dificuldade para mastigar e engolir, respiração precária e dependência total.

Durante semanas, meus três filhos se revezaram para me acompanhar as 24 horas do dia. Eu tinha que ser carregado da cama para o sofá. A comida era dada na boca. Eles faziam vigília durante as madrugadas, me davam banho e administravam as questões escatológicas. Por sorte, não cheguei a usar fralda. Fui assistido em casa por uma equipe do sistema público municipal, com médica, fisioterapeuta, nutricionista e enfermeiras. Elas orientaram durante as primeiras semanas sobre cuidados com alimentação, o processo de recuperação física e os curativos da ferida, que meus filhos passaram a trocar duas vezes ao dia.

Um dito popular diz, quando enfrentamos um período de dificuldades, que um dia vamos rir disso tudo. Meu dia de rir ainda não chegou.

Decio Trujillo é jornalista e membro do Conselho Editorial do Unidade