“Sou apaixonado pela minha profissão”. Entrevista com Mauro Cezar Pereira

por Adriana Franco, Decio Trujilo, Paulo Zocchi, Priscilla Chandretti e Thiago Tanji

“Eu queria ser jornalista com nove anos de idade, eu narrava meus jogos de botão”, conta Mauro Cezar Pereira ao Unidade. “Quando entrei na profissão, descobri que não gostava do jornalismo esportivo, mas do jornalismo. E que nasci para ser jornalista.”

Hoje, ele se dedica a um canal no YouTube com mais de meio milhão de inscritos, mas começou na profissão na época da máquina de escrever. Desde 1983, trabalhou, no Rio, nos jornais O Globo, Jornal do Brasil, Jornal dos Sports e O Dia, e nas rádios Globo, Tupi, Manchete. Em 1993, veio para São Paulo, para a revista Placar. Passou por revistas de automóveis, pelo Valor Econômico, pela revista Forbes, pelos portais Terra e Ajato. Também já foi professor, nas faculdades Unisa, C-Inter e FMU.

Na ESPN, ficou por 16 anos, até o ano passado. Hoje, além do seu canal na internet, escreve no UOL, Estadão, Gazeta do Povo, comenta no aplicativo OneFootball e na transmissão de jogos no SBT.

Nesta entrevista, Mauro falou, como não podia deixar de ser, da paixão pelo futebol e de jornalismo esportivo. Disse ter visto, por um tempo, preconceito grande dentro da profissão em relação a jornalistas que trabalham com esporte, mas que isso diminuiu.

Também falou sobre o ódio nas redes sociais, as mudanças na profissão e deu particular destaque à necessidade de os jovens jornalistas esportivos se dedicarem à reportagem. E não podia ser diferente, pois afirma que está comentarista, mas vai morrer repórter.


Todo jornalista esportivo tem paixão pelo futebol. Mas como é fazer o trabalho e separar a paixão da profissão?
Óbvio que todo jornalista torce para o seu time. Mas se vê que [o clube] está jogando mal, fala que jogou mal, critica. Como faz um crítico de cinema quando vai assistir a determinado filme de um diretor de que é fã incondicional, tem fotos e cartazes dele pela casa, mas acha o filme um lixo? Ele faz o quê? Vai dizer que o filme foi bom porque gosta desse cara? Não, escreve que foi uma decepção e esse filme é o pior que ele já fez.
Eu, por exemplo, sou “acusado” de proteger o meu time, que é o Flamengo. Sou um dos maiores críticos do Flamengo. Os últimos presidentes não falam comigo, o atual presidente não me dá entrevista. Se elogiasse e defendesse, ele falaria comigo sempre… Existe uma fantasia, como se fosse mais difícil lidar com futebol, mas acho que é como em qualquer outra área. Entendo que se eu escrevesse sobre política, posso ter a minha ideologia e acreditar em um determinado político, mas se esse cara for para o poder e fizer alguma coisa errada, tenho a obrigação de escrever que ele fez errado e tenho a obrigação de criticá-lo. Senão não estou sendo correto com a minha profissão e com as pessoas que acompanham o meu trabalho.

Pegando carona neste tema, o que você acha da tradição brasileira de que o jornalista esportivo não pode dizer para que time torce?
Acho que muitas vezes não fala o time para o qual torce por conta do ódio que impera por aí, especialmente se esse jornalista frequenta estádios. Eu não falava o time para que torço porque sempre achei isso irrelevante para quem acompanha o meu trabalho. Se o cara acha que meu trabalho é contaminado pelo meu time de preferência, de criança, não deveria me acompanhar. Mas quando as pessoas ficaram sabendo, falei que esse é meu time mesmo, pronto e acabou. Não gostou? Paciência. Como diria João Saldanha, ninguém é filho de chocadeira, e o cara não chega no futebol sem ter um time.
Agora, tem a questão da segurança ou da insegurança. Já fiz vários jogos em São Januário [estádio do Vasco da Gama], mas se fosse fazer um jogo hoje seria perigoso para mim e teria que ir com segurança porque as pessoas sabem que eu sou Flamengo. Uma vez, em São Januário, foi até engraçado, um garoto de 16, 17 anos com a camisa de torcida organizada apareceu na porta da cabine. Ele e mais um outro. E pensei: o que esse cara está fazendo aqui? O cara queria tirar uma foto comigo. Hoje, talvez ele fosse me xingar pelo simples fato de eu não ser torcedor do time dele. É um negócio insano.

PUBLICARAM: “MAURO CEZAR FLAGRADO NO PACAEMBU”. COMO ASSIM, FLAGRADO? SERIA CURIOSO SE EU FOSSE VISTO EM UMA MOSTRA DE CINEMA CAMBOJANO

E há o aspecto de mercado que nos pressiona, porque as empresas de comunicação têm regras internas que tentam impedir o jornalista de se expressar publicamente. Como você lida com isso em relação ao empregador ou aos veículos de comunicação em que trabalhou?
Hoje, desfruto de uma posição e acho que consegui construir isso. Mas antes, nos lugares em que trabalhava, muitos jornalistas já revelavam seus times. O que aconteceu comigo foi que, em 2016, o Flamengo fez três jogos em São Paulo. Fui a esses jogos. Comprei ingresso e estava na arquibancada. Nem uso camisa do Flamengo publicamente porque tem muita gente que me segue e me acompanha e torce para outros times. Acho que não é legal ficar aparecendo com a camisa do Flamengo. Não faz sentido e acho que é uma agressão a essas pessoas. Uso muito camisa de futebol e estava com a camisa do Aston Villa [clube inglês] e com um casaco do Milan [equipe italiana] por cima porque estava frio naquela tarde. Estávamos eu, meu filho e alguns amigos que vieram do Rio para assistir ao jogo na arquibancada. Aí veio um sujeito e tirou uma foto. Ele fez uma selfie, mas estava na verdade fotografando a mim, eu percebi que desceu duas fileiras da arquibancada, me enquadrou e tirou a foto. Quando ele voltou para o lugar dele, eu falei: “Por que você não vem aqui e pede para tirar uma foto minha?” Ele ficou sem graça, os amigos começaram a rir, inclusive, dele. Eu falei: “Cara, estou de folga, em um domingo, com meus amigos e o meu filho, comprei meu ingresso e estou vendo um jogo”. E eu poderia nem ser rubro-negro porque não estava com a camisa do Flamengo. Mas concluíram ali que eu era Flamengo, a foto viralizou e no dia seguinte, no programa da noite [da ESPN] que era o Linha de Passe, falei: querem saber o meu time? Meu time é o Flamengo, meu trabalho não vai mudar nada e quem estiver incomodado que se mude. Eu vou fazer o quê? Não tem muito o que discutir.
Mas achei mais impressionante o seguinte: algumas publicações e sites de algumas revistas, como da Veja, por exemplo, publicaram: “Mauro Cezar flagrado no Pacaembu”. Flagrado? Como assim, flagrado? Não estou fazendo nada de errado e nem estava com camisa de time. Seria curioso – e eu sempre uso esse exemplo – se eu fosse visto em uma mostra de cinema cambojano. “Pô, que legal, o cara cobre futebol e vai ver cinema cambojano, que louco isso. Você é cinéfilo, Mauro? E filme iraniano, o que você acha?” Não, estava em um jogo de futebol, gente. Eu escrevo sobre futebol, nada mais natural. Mas acho que tudo reflete essa sociedade doente que a gente está vivendo, e a rede social só retrata isso. Acho que a rede social não fabrica, só dá espaço para essas maluquices. A partir daí, o que acontece? Começa a desenvolver em alguns torcedores alguma bronca. Por exemplo, tem palmeirense que me detesta porque eu sou Flamengo, mas acham do cacete o Mauro Beting ser palmeirense. Temos até o mesmo nome e somos bons amigos. Quer dizer, o Mauro Beting é palmeirense, que legal. E ele se assume como torcedor, veste camisa e tudo, que é um direito dele, não tenho nada a ver com isso. O Juca é corintiano. Mas o cara fala: “Não gosto do Mauro, que ele é Flamengo. O Juca é Corinthians, aí é maneiro”. Qual o sentido disso?

O brasileiro sempre se considerou especialista em futebol. Com a rede social e a interação que ela provoca, como o ódio existente hoje te atinge? Como lidar com isso?
O Celso Unzelte [jornalista da ESPN e professor da Faculdade Cásper Líbero] fala um negócio perfeito: o brasileiro não gosta de ler, mas gosta de escrever. Por exemplo, atualizei o meu blog no UOL, coloquei o título e o link. O cara vê o título e comenta, mas ele não leu o texto. O título é só o título, você tem que ler o maldito texto para compreender qual é a mensagem, mas pelo título o cara tira uma conclusão e acabou. Então, recebe um fragmento da informação e já comenta. E não é só ler, não. Assistir a um vídeo, o cara também não assiste: pelo título, ele já faz um comentário. Isso é muito complicado, não sei se em outro país existe um número tão grande de pessoas como no Brasil que têm esse comportamento. Nunca vi nenhum estudo sobre isso, mas é assustador. Essa relação é bem difícil e muito desgastante, às vezes, mas inerente ao trabalho da gente, não dá para virar as costas e viver fora disso.

Você tem um passado de trabalho em diferentes áreas. Quais são os elementos distintivos do jornalismo na área esportiva e na área futebolística? Existe alguma especificidade?
Me lembro quando fui trabalhar na revista Forbes logo que a redação foi formada. Era meio uma colcha de retalhos, com gente que vinha de diferentes publicações, e eu tinha saído de uma revista de automóveis. Quando a gente saiu para almoçar com a turma toda, formamos uma mesa grande, e uma pessoa me perguntou de onde vinha. Quando disse que também tinha trabalhado com futebol, o sujeito fez uma careta extremamente preconceituosa. Ele fez uma crítica a respeito da cobertura esportiva, realmente existe muita coisa ruim, mas respondi: o jornalismo econômico também não cansa de fazer bobagem.
Houve durante muito tempo um preconceito grande em relação ao jornalismo esportivo e acho que isso diminuiu porque vários jornalistas que trabalham com esporte já mostraram, com o passar do tempo, que são capazes de falar sobre outros assuntos e que não são, obrigatoriamente, pessoas limitadas que só falam de futebol. Acho até que nas redes sociais, nós, que trabalhamos com esporte, com toda essa questão de Bolsonaro, pandemia, somos mais atuantes do que jornalistas que atuam em outras áreas. Comprando brigas, inclusive, tomando pancadas e sendo criticados. Mas acho que a imprensa esportiva deixa a desejar em muitas coisas. Tem coisas que são fracas, são ruins e são malfeitas. E isso me incomoda bastante.

Como você vê a questão de o jornalista ter de se movimentar em um cenário de trabalho que é mais precarizado e mais fragilizado? O que se pode fazer em relação a isso?
Eu comecei a trabalhar na máquina de escrever, peguei essa fase. Mas sempre me preocupei em tentar acompanhar essas modificações e essas mudanças: em 1997, fazia uma revista e saí correndo atrás de algum parceiro para colocar em um site para entender minimamente como funcionava aquilo. E quando vieram as redes sociais, a mesma coisa. Acho que é fundamental acompanhar essas mudanças que são muito importantes e, hoje em dia, YouTube é mercado de trabalho, não é hobby. É mercado de trabalho para quem consegue se desenvolver ali dentro. Acho que o maior problema hoje, pelo menos na área esportiva, é a quantidade de jovens jornalistas que não querem ser repórteres, mas querem ser comentaristas.
Aí se desenvolveu o quê? Garotos que se formam em jornalismo e não são jornalistas, são analistas táticos no futebol. Não entrevistam ninguém, não conhecem o bastidor. Sempre falo: não sou comentarista, estou comentarista. Sou repórter e vou morrer repórter. Eu falo com as pessoas, ligo para as pessoas. Para comentar sobre o assunto de que trato hoje, tenho que conhecer um pouco dos bastidores. Eu não posso saber a mesma coisa que o cara que consome a informação, tenho que ir atrás de mais alguma coisa. E a maioria dos jornalistas que comentam futebol na televisão hoje não fazem isso.
Quando algum garoto diz que quer cobrir esporte, sempre digo: vai ser repórter. Seja um bom repórter e o resto vai acontecer naturalmente. Se você for cobrir futebol de várzea e tiver um blog sobre futebol de várzea, todos os jogadores daqueles times vão ler as suas matérias, os parentes dos jogadores vão ler suas matérias. Vai escrever sobre o jogo, entrevistar os caras, encontrar histórias fantásticas. O que mais tem é história para contar, mas quem quer escrever sobre a várzea? Não, quer escrever sobre o Real Madrid ou o Chelsea na Champions League. Acho que essa distorção já atrofia o começo de carreira de muita gente.
Agora, a relação com o trabalho acho que piorou bastante em relação a quando comecei. Hoje tem mais oferta, mas tem mais gente brigando pelo espaço. Quando fui fazer faculdade, tinha apenas uma faculdade de jornalismo que não era pública no Rio de Janeiro. Hoje, tem um monte. Uma das razões por que interrompi minha aventura acadêmica foi essa. Reprovava um aluno na faculdade sem a menor condição e, no outro semestre, o cara estava lá. Quer dizer, na verdade estão só pegando o dinheiro daquela pessoa.
Então, acho que a relação mudou, piorou por esse aspecto, mas existem outras oportunidades, e a questão é conseguir identificar. Como o exemplo da várzea, vou pegar um campeonato que ninguém cobre e fazer um canal no YouTube, vou ter um nicho e esses caras vão me acompanhar. Não sei se isso vai dar dinheiro de início, mas dará experiência e vai ser um belo laboratório. Mas pouca gente quer fazer isso ou ninguém quer fazer isso. O garoto ou a menina que começa a trabalhar com esporte quer ir para a televisão para falar sobre futebol, quando você tem que construir, ao menos, um caminho para chegar nesse objetivo.
E esse caminho é tão legal. Se desenvolver profissionalmente, fazer boas matérias, aprender a cada dia com a profissão, é a melhor coisa! Eu sou completamente apaixonado pela minha profissão. Eu queria ser jornalista com nove anos de idade. Eu narrava os meus jogos de botão, fazia uma revista e dois jornais, escrevia em folha de caderno e falava que ia ser jornalista e ia trabalhar com futebol. Quando entrei na profissão, descobri que não gostava do jornalismo esportivo, mas do jornalismo. E que nasci para ser jornalista, é a paixão da minha vida. Quem realmente tem vocação, gosta de ser repórter, quer ser repórter e fica fascinado quando percebe o quão bacana é a atividade. Você apurar os fatos e contar a história para as pessoas é, disparado, a parte mais legal da profissão.

QUEM TEM VOCAÇÃO, FICA FASCINADO QUANDO PERCEBE O QUÃO BACANA É SER REPÓRTER. VOCÊ APURAR OS FATOS E CONTAR A HISTÓRIA É, DISPARADO, A PARTE MAIS LEGAL DA PROFISSÃO

Há um desinvestimento em produção de reportagens, com enxugamento de equipes, acúmulo de tarefas nas mãos de poucos. Os veículos especializados em esporte vão no mesmo caminho?
Acho que vão no mesmo caminho. Eu citaria como exemplo o Lúcio de Castro, meu amigo. O Lúcio de Castro é um dos maiores repórteres do Brasil. Em um país minimamente razoável, que o Brasil me parece que não é, ele seria disputado a tapa pelas redações, porque esse cara vai te entregar uma bela matéria investigativa. Mas esse cara está fora do mercado, porque o jornalismo muitas vezes abraça a irrelevância. E prefere ficar na espuma, não quer a profundidade. E você não cria outros Lúcios de Castro, porque se o Lúcio de Castro não consegue emprego e está fazendo sozinho o trabalho dele, com o site dele, por que o garoto vai querer ser o Lúcio de Castro?
O Lúcio fez na ESPN, por exemplo, o Dossiê Vôlei, com denúncias de toda aquela picaretagem que envolvia dirigentes, e que gerou três ou quatro menções no Jornal Nacional. Fica muito claro que o jornalismo, quando bem-feito, funciona melhor que qualquer ação de marketing. Imagina ter um canal esportivo que é citado no Jornal Nacional três, quatro vezes, em um intervalo de três, quatro, cinco semanas, por conta de uma série de reportagens. Quanto custaria isso para a empresa americana se fosse comprar esse espaço? E esse cara foi dispensado por um burocrata que virou chefe, e ele está fora do mercado.
O nome do site do Lúcio de Castro é Agência Sportlight. Por quê? Por causa do filme Spotlight, ganhador de Oscar, que é uma história verídica. Todo mundo achou lindo e sensacional quando viu o filme, mas quantas empresas têm pessoas em cargos poderosos que viram o filme e quiseram montar uma redação assim? Ninguém fez isso. A única lembrança que há hoje do filme Spotlight na imprensa brasileira é o nome da agência do Lúcio de Castro.

Como surgiu essa ideia de montar o canal no YouTube? Por que você fez um investimento ali?
A gente estava em um jogo da Liga dos Campeões para cobrir, não lembro qual, e eu fiz um vídeo de torcida, com o celular. Achei aquilo legal e queria compartilhar, mas não tinha Instagram ainda. Foi em 2011. O Twitter não tinha vídeo. Eu não usava o Facebook e fiquei pensando onde iria jogar aquele vídeo. Então pensei no YouTube. Fui e criei o canal ali na hora, na bancada do estádio, e subi o vídeo. Passei a publicar alguns vídeos de torcida e ambiente de estádio. E o canal ficava ali parado sem muita movimentação.
Um dia, percebi que, ao final de cada programa que fazíamos, sempre havia pela rede social pessoas pedindo para falar sobre determinados assuntos que não entraram na pauta. Então, percebi que estava na hora de começar a mexer mais com isso e comecei a publicar os vídeos com regularidade maior. E quando chegou 2018, na época da Copa do Mundo, passei a publicar vídeos diários. E aí o canal foi crescendo. Em meados de 2018, na época da Copa da Rússia, eu tinha 50 e poucos mil inscritos e, no final de 2020, tinha mais de 500 mil.
Calculo que hoje, se somar as redes sociais e o canal no YouTube, entre seguidores e inscritos, embora se repitam muitos deles, são cerca de 2 milhões de inscrições. Essa é a maior maravilha para o jornalista, porque, para falar com as pessoas, eu dependia do jornal onde escrevia, da rádio onde falava ou da televisão onde fui trabalhar. Hoje, falo com elas diretamente e não dependo de nenhum deles, seja no meu canal do YouTube ou nas minhas redes sociais. Isso é um poder que foi socializado. Não é mais só deles. Basta que você construa essa estrada, e ela tem alguns percalços, que são os haters, aporrinhação, o desgaste. Mas com o tempo a gente vai aprendendo a lidar e vai levando adiante, é maravilhoso.

Quando você monta o seu canal de YouTube, de onde vem o recurso?
O canal começa a monetizar, como eles falam, a partir de um determinado número de inscritos e uma determinada audiência que você alcançou. Então, quanto mais audiência você tem, você vai faturar mais. Um percentual é do YouTube, outro percentual fica para quem tem o canal. E aí tem outros meios indiretos.
Eu entendo o YouTube como um parceiro e não um patrão. Ele não é meu patrão e nem eu sou o patrão dele. Ele é um parceiro e me oferece toda a estrutura para colocar vídeos no ar, em uma página que é só minha, onde domino completamente a parte editorial e sou responsável por tudo que faço. O YouTube é que comercializa, não tenho que ter departamento comercial. Eu não teria condições. Como faria em um site, sozinho, com recursos próprios? Montaria um site, com servidores e com tudo, para subir aqueles vídeos todos. Eu teria que ter uma estrutura absurda que inviabilizaria. E teria que ter alguém vendendo os anúncios. Sem contar que a audiência é gerada pelo próprio YouTube. Se uma pessoa vai ver um vídeo sobre futebol e meu canal está dando boa audiência, automaticamente o YouTube vai sugerir para essa pessoa que nem me conhece, ou não me acompanha.
E há outros meios, como clube de membros. Eu produzo alguns conteúdos exclusivos, e algumas pessoas pagam de R$ 2,99 a R$ 14,99. E, ao mesmo tempo, o mais legal é que tem muita gente que colabora para manter o canal autossustentável.
No começo, eu ficava receoso, mas depois pensei: trabalhei a minha vida inteira em empresas que cobram pelos meus serviços, me remuneram como querem e ficam com a fatia maior do bolo.
E essa é a melhor parte: não ter patrão, não ter que me reportar a nenhum chefe. Hoje não tenho que ficar me reportando a alguém. Agora, não é simples construir isso. Pelo contrário: eu fiquei alguns anos, todo santo dia, publicando vídeo, de forma disciplinada, e fazendo todas as outras coisas que fazia: trabalhando, varando madrugadas, atualizando o canal depois de noites de futebol, indo dormir três, quatro da manhã. Toda noite de quarta-feira, quinta, domingo, todos os dias do ano durante alguns anos, até chegar a um nível em que o canal reuniu força para, junto com outras atividades que eu tenho, pudesse fazer uma escolha.

Mas você acha que ter 2 milhões de seguidores te dá mais liberdade editorial ou menos? O que isso muda ou influencia na sua linha editorial?
Não, acho que não influencia. Talvez dê mais responsabilidade, porque está falando para mais gente e tem que ter muito cuidado, coisa que nem todo mundo tem. De vez em quando, um ou outro colega publica alguma coisa de forma precipitada e gera uma interpretação errada. E não tem filtro, você vai postar sem mostrar a alguém para saber o que acha. Acho que a responsabilidade é maior. O estrago de um eventual erro também tende a ser maior.

O JORNALISMO MUITAS VEZES ABRAÇA A IRRELEVÂNCIA. E PREFERE FICAR NA ESPUMA, NÃO QUER A PROFUNDIDADE

Como você percebe essa questão das plataformas como Facebook, Amazon e outros streamings entrando no futebol? Para nós, jornalistas, é mais oportunidade ou é um cenário ainda mais confuso?
Eu acho que o torcedor não vai comprar esses pacotes todos e alguns vão naufragar porque não vai ter essa demanda toda. Falta, muitas vezes, cuidado com o produto. Uma coisa é um jogo, na TV aberta, mais popular, falando para o povão, e que você também não paga nada para ver. Outra é um produto que você paga e tem que ter outra qualidade. Qualidade que eu falo é de transmissão, que às vezes deixa a desejar, e qualidade daquilo que é falado. Acho que algumas transmissões são absolutamente sofríveis e incompatíveis com aquilo que você tem que pagar. Um produto fechado em TV fechada, pago à parte, tem que ter outro nível de transmissão, com muita informação, muita qualidade. E você pode até vibrar mais em gol de time brasileiro, é compreensível, mas sem demonizar o time argentino. Esse tipo de patacoada joga contra a profissão, joga contra o jornalista esportivo e desestimula os torcedores a assinar, porque o cara tem uma experiência ruim quando vê aquilo ali.
Igual a camisa [do clube] pirata. A camisa é caríssima, então o cara compra a camisa pirata. Se tivesse uma mais barata, de uma qualidade razoável, mas não igualzinha à do jogador, uma réplica honesta com a marquinha do fabricante e tudo, o sujeito preferiria comprar. Como não tem, ele vai em frente ao Pacaembu, naquele varal, compra a piratinha e veste a camisa do time dele. Isso existe no mundo inteiro, porque o preço é proibitivo, e é o que está acontecendo: os caras colocam uma quantidade grande de pacotes e acho que não vai ter esse povo todo para comprar. Eu duvido.

Quando você começou a trabalhar com esporte, ia ao vestiário depois do jogo e fazia entrevistas ali. Hoje, isso acabou. O que o jornalista perde com essa transformação e o que o público perde?
Antigamente acho até que era exagerado, né? O cara estava tomando banho, enrolado na toalha, é um negócio constrangedor. Mas era normal, se você não entrasse ali, não entrevistava ninguém. Com relação às mulheres, inclusive, era uma situação constrangedora, porque tinha um monte de caras andando pelados e as repórteres tinham dificuldades. Até os caras se sentiam mal. Isso acabou, e tinha que acabar. Mas o que fizeram? Copiaram o modelo europeu e há um certo exagero. O repórter hoje tem que buscar informação além das entrevistas, até porque as entrevistas com os jogadores não rendem muita coisa boa e, na maioria das vezes, são muito rasas. A apuração mais legal na cobertura esportiva é do entorno que você consegue fazer.
Acho que os clubes erram muito porque adotaram esse modelo da coletiva e botam, às vezes, o jogador reserva, e um jogador importante fica semanas sem dar entrevista. Existe uma situação no Super Bowl, nos Estados Unidos, que tem o dia no qual todos os jogadores do elenco ficam em uma grande sala, em mesas, e os repórteres do mundo inteiro podem abordar os atletas e entrevistar ali na hora. Acho que os clubes deveriam criar situações deste tipo.
Outra coisa que está acontecendo também e é grave são os clubes cada vez mais investindo nas suas TVs. E isso é marketing, não é jornalismo. O que sempre digo: se você acessar o site da Prefeitura do Rio de Janeiro, está tudo maravilhoso, nem pandemia existe para o Eduardo Paes. Outro dia ele estava diante do Cristo Redentor, tirando fotinho. E com gente à beça internada, com o colapso na saúde. Se você acessar o site da Prefeitura, não vai encontrar nenhuma denúncia, nenhuma grande reportagem e nada negativo, óbvio. A mesma coisa com o prefeito de São Paulo ou um governador, o que for. Então, você acompanhar as mídias do clube ou o site do clube é acompanhar o mundo maravilhoso da fantasia que não existe.
Cheguei a falar isso uma vez: se eu decidisse alguma coisa, nunca colocaria vídeo de entrevista coletiva de técnico ou de jogador fornecido por televisão de clube. As perguntas que eles selecionam são as mais insossas. No dia que tiver algo relevante, aí vou usar, mas tem de haver um crivo editorial. As emissoras de televisão e os sites acho que não perceberam isso. Não deveriam usar porque jornalisticamente é irrelevante e estão só tapando buraco com um material fraco que é marketing, não é jornalismo.

Nas transmissões de futebol, incorporaram-se às equipes de jornalismo uma série de ex-jogadores. Como você enxerga isso? Eles se alçaram ao jornalismo ou são apenas uma jogada de marketing das emissoras para aumentar a audiência?
Alguns jornalistas não são jornalistas, viram só analistas táticos, porque não entrevistam ninguém, não escrevem matéria e analisam apenas a parte tática de um jogo. Têm um diploma, mas, na prática, exercem outra coisa que não é jornalismo. Esses ex-jogadores são contratados também não como jornalistas, mas para falar de futebol e daquilo que eles supostamente conhecem porque participaram do campo por muito tempo. Pouquíssimos deles eu paro para ouvir, com todo respeito a eles. Porque muitos não gostam do futebol como eu gosto de futebol, ou como um cara que está em casa gosta de futebol. Eles gostavam de jogar futebol porque nasceram com um dom para isso, mas é diferente de você gostar mesmo de futebol, para ver jogo ruim, bom, mais ou menos.
O único cara que jogou bola, e quase não abre a boca, mas que quando escreve eu leio a coluna dele, é o Tostão. Os outros têm momentos. Casagrande fala coisas legais muitas vezes. Tem um ou outro, mas isso é uma opinião minha, como consumidor. Há muito mais jornalistas que se preparam para comentar futebol e são melhores que os jogadores, então parece mais uma estratégia de marketing ter um atleta que é conhecido.

Você foi alvo, em 2019, de um ataque promovido pela Federação Brasileira dos Treinadores de Futebol (FBTF) por meio de uma nota oficial que questionava e repudiava sua atuação profissional após críticas aos técnicos Vanderlei Luxemburgo e Abel Braga. Na época, o Sindicato dos Jornalistas emitiu uma nota de desagravo em seu favor. Como você avalia a importância da atuação do Sindicato?
A importância é muito grande. Na época, procurei o Sindicato, pedi que se manifestasse e o Sindicato se manifestou. Acho até que o Sindicato devia ser mais atuante em relação a isso, especialmente em casos como esse, que acaba sendo uma tentativa de intimidação e de nos calar, como fizeram ali, e o Sindicato me apoiou. O Sindicato deveria apoiar mais os jornalistas na guerra contra os haters. Nessa guerra, que estou travando há alguns anos, o Sindicato nunca se manifestou. Deveria também nos procurar para nos apoiar em situações como essas. A guerra contra os haters não é de um jornalista, mas de todos nós.

Fotos: arquivo pessoal