por Dennis de Oliveira

A pandemia do coronavírus tem sido o assunto principal na cobertura dos principais veículos jornalísticos nos últimos 14 meses. Analisando-se as manchetes desses veículos, nota-se que o foco das coberturas é demonstrar o aumento do número de mortos – no dia 29 de abril, no meio da tarde, o portal UOL estampou com destaque a marca dos 400 mil mortos atingidas no Brasil, com uma reportagem cujo centro é a “despedida sem luto” (o fato de as pessoas mortas saírem direto do hospital para o enterro, sem velório e nenhum contato com os familiares nos dias de internação). Foram entrevistados familiares de sete vítimas da covid-19 que renderam homenagens póstumas em áudios disponibilizados no portal. A angulação reforçou o tom dramático da pandemia.

Entretanto, observa-se uma lógica problemática na cobertura jornalística da mídia hegemônica: negando-se a fazer qualquer crítica ao projeto econômico neoliberal que está sendo implantado a ferro e fogo nos últimos anos, tende a responsabilizar os problemas da pandemia a figuras do governo Bolsonaro e a comportamentos inadequados da população (que é responsabilizada até mesmo pela alte do preço dos alimentos, ao ter aumentado o consumo com o recebimento do auxílio emergencial). Para isso, “especialistas” (cientistas, médicos, economistas) aparecem como os grandes “iluminadores” neste caos social, e os dramas impostos aos trabalhadores, em especial os moradores da periferia, são vistos apenas a partir destes prismas. O silenciamento dessas vozes que quase nunca são fontes é a demonstração de um jornalismo da “cultura do silêncio”, conceito de Paulo Freire para designar uma relação de comunicados que, em última instância, é uma relação de opressão. Algo totalmente oposto ao que defendo na obra Jornalismo e emancipação: uma prática baseada em Paulo Freire (Editora Appris, 2017).

Contrapontos com o bolsonarismo
A cobertura da tragédia da pandemia tem se centrado em demonstrar o tamanho do problema com os números, o que significa um contraponto objetivo à narrativa governista, que desde o início da pandemia se esforça em reduzir a gravidade do problema. Para isto, os veículos G1, O Globo, Extra, Estadão, Folha e UOL firmaram um consórcio em junho de 2020 com o objetivo de fazer o cálculo do número de infectados e mortos por dia, com base nas informações prestadas pelas secretarias estaduais, diante das barreiras impostas pelo governo federal já naquele período à divulgação desses dados. Assim, sempre no final da noite, os meios jornalísticos atualizam os números da pandemia, independentemente dos dados fornecidos pelo governo federal.

É fato que essa postura dos meios jornalísticos foi um contraponto importante à narrativa negacionista do governo federal. Neste aspecto, o jornalismo brasileiro cumpre um papel importante e em boa parte foi uma barreira contra a disseminação da narrativa negacionista do governo federal. O ódio do bolsonarismo ao jornalismo é explicável.

Assim, teoricamente, o fato de essa narrativa midiática ter impedido a plena disseminação do negacionismo seria suficiente para que a população aderisse às medidas preventivas e se mobilizasse fortemente contra o governo, que seria obrigado a recuar da sua posição. Porém, isto não só não acontece como ainda o governo conta com razoável apoio, suficiente para que o atual presidente sonhe com a reeleição, obtenha vitórias em algumas votações no Parlamento e seja ameaçado, em pesquisas de intenção de voto, apenas pela candidatura de Lula.

Apesar do contraponto midiático, Bolsonaro sobrevive
A estratégia de Bolsonaro é contrapor o “isolamento social” à “economia”. Em 2020, este discurso foi mais intenso: a economia se sobrepondo à preservação da vida. Em maio do ano passado, um grupo de empresários, em reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente Jair Bolsonaro, disse que deveria haver preocupação não só com a morte de pessoas, mas com a “morte de CNPJs”. Equipararam a manutenção das empresas com a vida das pessoas. A declaração gerou críticas de todos os lados e, diante do crescimento da pandemia, a narrativa do governo se modula para que “economia e vidas são importantes”. O objetivo dessas posições é criticar o isolamento social, defender a volta plena ao trabalho, ainda que isto signifique aumentar ainda mais a contaminação.

Tal posição encontra eco em vários segmentos da população por uma razão muito simples: o aumento do desemprego e da precarização do trabalho, particularmente com a reforma trabalhista aprovada em 2017, ainda no governo Temer. Naquele momento, as taxas de desemprego estavam em torno de 11,5%, e a promessa era de que a reforma trabalhista iria gerar mais empregos (tese defendida pelo empresariado e largamente encampada pelos veículos jornalísticos hegemônicos), o que foi desmentido pelos números – as taxas de desemprego foram de 11,8% em 2019 e de 12% em 2020. No período da pandemia, estas taxas cresceram ainda mais, superando a marca de 14% ao final do primeiro trimestre deste ano.

Ao lado disto, o trabalho informal (aquele realizado sem qualquer registro em carteira, portanto sem nenhuma cobertura legal) já é realidade para mais de 41% dos ocupados. O que significa que a maioria da classe trabalhadora sobrevive com bicos, trabalhos informais, nos quais a regra é vincular diretamente a remuneração recebida com o trabalho realizado no dia. O grande exemplo desta relação de trabalho são os que trabalham como motoristas de aplicativos (Uber, iFood etc.) e as empregadas domésticas diaristas.

Nesta realidade, como defender o discurso de que “se deve ficar em casa” se isto significa simplesmente não ter dinheiro e morrer de fome? Justamente aí reside a base para a disseminação desta narrativa bolsonarista. E, nos últimos tempos, o governo tem insistido nesta tese: o aumento da miserabilidade ocorre por conta de
lockdowns, isolamentos sociais etc.

População responsabilizada
No início da pandemia, a lógica da mídia hegemônica era criticar a não obediência ao isolamento social como um comportamento disfuncional da população. Por exemplo, na reportagem da revista Veja intitulada Por que o Brasil se tornou o campeão mundial da desordem na quarentena, de 25 de fevereiro de 2021, é feita a seguinte afirmação:
“A entrada do Brasil nessa situação intermediária em que todos perdem, e na rota do lockdown, foi pavimentada pelos embates entre um presidente que prega a volta à normalidade, uma maioria de governadores que decretam quarentenas e dezenas de prefeitos que pendem para o relaxamento das medidas. Além, é claro, da falta de educação e informação de brasileiros de todas as faixas de renda”.

Todas as fontes entrevistadas nesta reportagem são cientistas que fazem a defesa enfática da necessidade do isolamento social, ex-ministros de Saúde que fazem críticas ao governo federal, dados sobre o desrespeito ao isolamento e aumento de casos.

Mesmo em matérias que trazem panoramas da epidemia nos bairros periféricos, este pensamento de responsabilizar unicamente os comportamentos disfuncionais prevalece. Na matéria Morte por coronavírus na periferia de São Paulo acende alerta para quarentena em áreas mais pobres, no portal El Pais, de 23 de março do ano passado, é dito que:
“‘A população do Campo Limpo ainda não está adotando as medidas necessárias para prevenir o contágio. Durante o final de semana, teve um pancadão no bairro e a rua estava cheia’, lamenta Douglas Cardoso, auxiliar de enfermagem que trabalha no Hospital do Campo Limpo”. Mais adiante, afirma que “João Doria (PSDB), governador de São Paulo, anunciou que irá punir aqueles que descumprirem a determinação de suspender festas e bailes funk no Estado durante os próximos 15 dias”. O problema são as festas e os pancadões na periferia…

Já a matéria intitulada Por que não obedecem, na IstoÉ de 8 de maio de 2020, afirma que “em um País no qual os donos do poder burlam, em benefício próprio, o maior número de regras que conseguem, onde a impunidade rola solta e o exemplo que vem de cima é péssimo, por que o mais comum dos cidadãos vai se trancar?” E vai na lógica da “excitação do proibido”.

Esta lógica de argumentação da mídia hegemônica de que há a necessidade do isolamento social, o povo não obedece, e a desobediência se deve tanto à narrativa negacionista de Bolsonaro que repercute como também à “má educação”, “tendência a transgredir” do povo, um comportamento disfuncional que seria nato no brasileiro, foi a tônica das coberturas, enfocando principalmente os momentos de lazer (idas a praias, festas, “pancadões” etc.). Faltou um “pequeno detalhe”: os deslocamentos obrigatórios da população para trabalhar.

Tragédias e silenciamentos
As baixas taxas de isolamento não ocorrem somente em finais de semana ou feriados, mas nos dias úteis. Manhãs e tardes com pessoas se aglomerando no transporte coletivo, se deslocando da sua residência para o trabalho, andando nas ruas. Em boa parte isto ocorre porque as relações de trabalho foram intensamente precarizadas, produto das reformas neoliberais apoiadas quase unanimemente pela mídia hegemônica. Em outras palavras, a situação vivida no Brasil é produto justamente da política econômica imposta pelos governos Temer e Bolsonaro, com apoio de analistas econômicos, editorialistas e articulistas da mídia hegemônica.

SITUAÇÃO VIVIDA NO BRASIL É PRODUTO DA POLÍTICA ECONÔMICA IMPOSTA PELOS GOVERNOS TEMER E BOLSONARO, COM APOIO DE ANALISTAS ECONÔMICOS, EDITORIALISTAS E ARTICULISTAS DA MÍDIA

E há um aspecto importante nesta situação: os riscos atingem justamente determinados segmentos sociais: mulheres negras (esmagadora maioria das empregadas domesticas), homens negros (maioria entre motoboys, cicloboys, vendedores ambulantes) e trabalhadores em geral das periferias. Mesmo os “pancadões”, tão criticados pela mídia, é preciso enxergar em perspectiva: ocorrem porque pessoas que são obrigadas a não fazer o isolamento social para trabalhar não se sentem obrigadas a fazê-lo nos momentos de lazer, e também porque há um conjunto de pessoas que vivem destes eventos (como, por exemplo, moradores de bairros periféricos que sobrevivem vendendo bebidas).

Esta tragédia social estrutural e não conjuntural no Brasil é desconsiderada nestas matérias. No dia 27 de abril, dia da trabalhadora doméstica, o portal UOL/Universia entrevistou Luiza Batista, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). Luiza Batista falou que, nestes tempos de pandemia, há casos de domésticas que estão sendo obrigadas a ficar 24 horas à disposição na casa dos patrões para evitar o deslocamento das trabalhadoras. No dia 15 de abril, o mesmo portal UOL/Universia publicou uma matéria em que há a denúncia de trabalhadoras domésticas na Bahia nesta situação. Uma situação que juridicamente se enquadra como “cárcere privado”, mas remonta a uma relação escravocrata.

Em fevereiro deste ano, motoboys fizeram manifestações em várias cidades do estado de São Paulo com reivindicações de melhoria de condições de trabalho para a categoria. Os atos em si foram cobertos pela mídia hegemônica, mas não os desdobramentos (se as reivindicações foram atendidas ou não, e o porquê, entre outros).

A responsabilização dos mais pobres vai além. Sobre os aumentos dos preços da cesta básica nos últimos meses, o portal G1 da Globo afirmou em setembro de 2020 que, de acordo com economistas ouvidos pela reportagem, dois fatores explicam a elevação: o dólar alto, que incentiva os produtores a exportarem ao invés de vender ao mercado interno, e o auxílio emergencial (!) que estimulou o aumento do consumo.

Diferentemente desta perspectiva, o jornal Brasil de Fato em matéria de 11 de setembro de 2020 afirma que a alta dos preços é resultado de um conjunto de políticas do governo Bolsonaro: aumento de tributos de gêneros alimentícios, aumento da área plantada de produtos para o agronegócio exportador (como a soja) em detrimento do plantio de alimentos, fim do Consea e dos armazenamentos públicos de estoques de alimentos para controlar as variações de preço. E, ao contrário da matéria do portal G1, não se ouviram “economistas” mas a população que sofre com a alta dos alimentos e outras fontes que apresentam estas perspectivas.

No artigo Paulo Freire e uma prática jornalística emancipatória, defendo a ideia de que existe uma “cultura do silêncio” no jornalismo hegemônico brasileiro. Os cidadãos da periferia são ignorados nos seus dramas, quando muito aparecem ou em situações tópicas (como o dia das domésticas), em manifestações pontuais (como os atos dos motoboys), mas tendencialmente são responsabilizados pelos seus próprios dramas em função de “não compreenderem”, “terem comportamentos disfuncionais”, “terem paixão pelo proibido” ou ainda “reproduzirem o discurso negacionista de Bolsonaro”. Em boa parte isto ocorre porque a mídia hegemônica, ainda que critique o governo e se coloque em oposição a sua narrativa, avalizou as mudanças estruturais nas relações de trabalho que levaram a uma situação em que o povo da periferia tem que escolher entre morrer de coronavírus ou morrer de fome. Esta macabra opção que restou aos mais pobres, a negras e negros, aos cidadãos da periferia é o resultado daquilo que analistas da mídia chamaram de “modernização”.

Dennis de Oliveira é jornalista, professor de jornalismo da ECA/USP, autor dos livros Jornalismo e Emancipação: uma prática jornalística baseada em Paulo Freire e Iniciação aos estudos de jornalismo. Membro da Cojira-SP e militante da Rede Antirracista Quilombação.

Foto: Roberto Parizotti