por Alexandre Linares e Cecília Figueiredo
Um sinônimo para a palavra resistência é Alipio Raimundo Viana Freire. Todos lembram do “Putabraço!” do comunista baiano, nascido em Salvador em 4 de novembro de 1945, que dedicou sua vida a transformar o mundo, por meio da ação, intervenção e pelas palavras, no jornalismo.
Sua voz era forte como um trovão. Suas palavras, delicadas como poesia. Dono de humor peculiar e de uma generosidade imensa. Contava histórias como poucos. Durante a ditadura militar, fez parte da dissidência revolucionária Ala Vermelha do PCdoB. Aos 23 anos, o jornalista foi preso pela Operação Bandeirantes (Oban), enfrentou torturas e interrogatórios por três meses. Transferido para o Presídio Tiradentes, ali esteve de 1969 a 1974.
Atuou em publicações como Luta Proletária, União Operária e foi colaborador no ABCD Jornal, publicação regional impulsionada pela Ala Vermelha no ABC. Foi editor da revista Teoria e Debate (1993-1995), fundador da Revista Sem Terra (MST), fez parte do conselho político do jornal Brasil de Fato, que ajudou a fundar, trabalhou na comunicação das prefeituras paulistas de Diadema e Campinas, além de uma infinidade de trabalhos e colaborações que circulam em nossas mãos.
Foi fundador do PT e integrou a primeira direção estadual do partido em São Paulo. Dedicou suas últimas décadas ao
trabalho de denúncia dos crimes da ditadura militar e à punição dos responsáveis. Organizou, em parceria com Izaias Almada e José Adolfo Granville Ponce, Tiradentes, um presídio da ditadura: memórias de presos políticos, uma coletânea de textos de ex-presos políticos que estiveram no Presídio Tiradentes durante a ditadura civil-militar. Deixou também poesias, nos livros Estação Paraíso e Estação Liberdade e produziu, com a TVT, o documentário 1964 – Um golpe contra o Brasil.
No Memorial da Resistência de São Paulo foi curador de duas exposições: A Luta pela Anistia: 1964-? (2009) e
Insurreições: expressões plásticas nos presídios políticos de São Paulo (2013). Três anos depois, cedeu seu arquivo pessoal de cartas e objetos pessoais para a exposição Carta Aberta: Correspondências na Prisão.
Ele envelheceu na idade, não na vontade, menos ainda no sonho e na resistência. No filme Nada será como antes? Nada, de Renato Tapajós, que tem como pano de fundo a primeira campanha eleitoral do PT, em 1982, há um memorável registro de Freire.
Ao ser perguntado sobre a busca pelo socialismo, o então candidato indica a tarefa. “Construir uma ponte para a utopia, uma sociedade em que, em primeiro lugar, sejam expropriados todos os meios de produção; estaremos todos os trabalhadores proprietários dos meios de produção; isso é necessário, mas não é suficiente. É necessário mais uma coisa. É necessário que a gente desde já recoloque a questão da felicidade e do prazer. Uma revolução, uma mudança radical na sociedade que não fale da felicidade e do prazer, que não fale da possibilidade de todos nós, reconhecendo todas as diferenças, podermos conviver enquanto trabalhadores, isso aí não terá cumprido seu papel. (…) Nós temos de nos comprometer a construir desde agora, desde já, a ponte para nós chegarmos a essa felicidade. Não dá para deixar esses temas para depois. Não dá para tratar só da economia. É preciso tratar do que vai por dentro de cada um de nós. É preciso tratar de toda ansiedade, todos os desejos, de toda a perspectiva e todo sonho que temos dentro da gente. E que a classe trabalhadora de conjunto tem dentro de si. Isso é fundamental para chegar lá, do contrário viraremos uns burocratas, uns velhos. Teremos um Estado na mão, um aparelho, uma máquina. Teremos um Estado forte, faremos guerra. Daremos mais um sapato para João, um vestido à Maria. Mas a felicidade não é só isso, embora isso seja indispensável para a felicidade. Nós queremos o sonho. Como diria Calígula: nós queremos a Lua, algo que seja aparentemente impossível. E nós teremos a Lua”.
Quem lembra vive duas vezes. Lembremos Alipio, jornalista, poeta, artista plástico e homem livre. Que seu exemplo siga vivo nas novas gerações de quem luta pelo fim da propriedade e em favor da construção de pontes para a utopia. Em 22 de abril, seu coração parou de bater, depois de muito lutar. Sua batida segue sendo a nossa, a da luta pela vida, com felicidade, emancipação e prazer.