Com o livro Exu-Mulher e o Matriarcado Nagô, Cláudia Alexandre venceu o Jabuti Acadêmico 2024 na categoria Ciências da Religião e Teologia. Premiação celebra importante carreira como jornalista e pesquisadora
por Flavio Carrança
A jornalista e pesquisadora Claudia Alexandre tem longa e diversificada trajetória profissional, além de uma intensa atuação no combate ao racismo, na afirmação da cultura negra no país e na divulgação e defesa das religiões de matriz africana. Filha de um policial militar que se formou em direito aos 42 anos e de uma ex-babá que terminou o ensino médio depois de casada (ambos falecidos), Claudia nasceu em São Paulo e cresceu no bairro do Jardim Monte Alegre, periferia da zona sudoeste da cidade, na divisa com Taboão da Serra. Tem um irmão, Luiz Alexandre, especialista em numerologia e escritor, e uma filha com 26 anos, Rubiah, confeiteira e estudante de nutrição.
Cláudia avalia que teve uma educação “fora da curva”, com muita exigência em relação aos estudos: “Era uma família organizada, com casa própria e condições para nos formarmos e fazer escolhas que não são tão comuns para uma família preta retinta, que se formou na década de 60”. Lembra ainda que seus pais construíram um núcleo de sociabilidade dos parentes, que samba e “macumba” eram a base para reuniões, almoços, comemorações e que havia muita identidade com as heranças negras. “Apesar dessa sólida estrutura familiar, – afirma – as questões raciais, assim como o machismo, atravessaram desde sempre sua vida”, mas lembra que pode perceber essa relação com os pais, tias e primas, como uma base que a fortalecia para enfrentar as violências vindas da rua, da escola, dos e das coleguinhas e das professoras, acrescentando que foi constante ser a única menina preta até a faculdade (particular) de Jornalismo, o que levou a que tivesse pouquíssimas amizades com negros e negras no período formação escolar.
Diz também que não pode sonhar com uma oportunidade na televisão e que só depois de formada, em 1988, entrou em contato com o Movimento Negro. “Não tive chance de ter referências que conheci depois, como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro ou pensadoras negras estadunidenses e africanas” diz ela, observando que seu pensamento crítico também foi construído desde a infância pelas letras de samba e sambas- -enredo, onde ouvia falar sobre a beleza negra, reis, rainhas e princesas, além das lutas e ideais de liberdade do povo negro, que não estão até hoje nos livros escolares. “Essas experiências, que não são únicas, mas de muitas mulheres negras da minha geração, me fizeram entender que meu caminho seria exercer minha profissão e construir minha carreira acadêmica e na comunicação social com propósito, contribuindo para as questões étnico-raciais, de gênero, de mulheres negras e de mulheres de terreiro”.
O ingresso na profissão aconteceu com um estágio em rádio, como repórter do programa Rede Nacional do Samba, em 1988, pelas mãos do jornalista Evaristo Carvalho (1932-2014), na rádio Gazeta, mas o primeiro registro em carteira – também por indicação de Evaristo – foi como repórter da Gazeta Esportiva, para cobrir cidades e variedades (cultura). “Foram dois anos de muita aprendizagem. Era mágico, no tempo das máquinas de escrever”. Em 1990, foi para a reportagem da Rádio América. Depois tornou-se locutora/apresentadora da Tropical FM, Rádio Imprensa, Record, 105 FM, Transcontinental FM, onde teve muito sucesso no anos 90 apresentando programas de samba e pagode. “Fiz participações na Rádio Globo e hoje ainda sou colunista do Programa O Samba Pede Passagem, de Moisés da Rocha, na USP FM”, informa.
Outro campo de atuação em Cláudia trabalha é a assessoria de imprensa, área em que, há 7 anos, é diretora de comunicação do time Vedacit Vôlei Guarulhos. Diz que a jornalista assessora de imprensa sempre tem sua função questionada por estar em um lugar de construção de imagens, mas que é indispensável para a relação de empresas e pessoas com a sociedade. Observa que ainda há um lugar de status, que são as redações de jornais, revistas, TVs e agências, o que faz com que os profissionais que não estejam nele ainda sejam vistos como menores, quando na verdade muito do que se constrói da notícia tem alguma participação de quem sugere, pauta e produz conteúdos.
Associada a este sindicato e integrante da Cojira SP há muitos anos, Cláudia lembra que quando ingressou na profissão, na década de 1990, havia poucas jornalistas negras atuando nos veiculos de Comunicação, com a presença isolada de Glória Maria na TV Globo e praticamente ninguém em postos de decisão. “Fui tomada por um ativismo que não pude exercer na minha juventude e nem mesmo no início da carreira. Talvez se Evaristo e o samba não tivessem me aberto as portas eu seria invisível até hoje para o mercado, pois as transformações foram inúmeras, do final dos anos 80 para cá”, afirma.
“FUI TOMADA POR UM ATIVISMO QUE NÃO PUDE EXERCER NA MINHA JUVENTUDE E NEM MESMO NO INÍCIO DA CARREIRA. TALVEZ SE EVARISTO E O SAMBA NÃO TIVESSEM ME ABERTO AS PORTAS EU SERIA INVISÍVEL ATÉ HOJE”
Outra característica marcante da trajetória de Cláudia Alexandre é uma presença expressiva na área acadêmica, com dois trabalhos de pós-graduação que abordam temas da religiosidade de matriz africana e que se tornaram livros. “Estou na academia especialmente para fazer a crítica e reescrever narrativas sobre as maneiras como o povo negro, em especial após a abolição, ressignificou a humanidade. Estudar a sua organização por meio das religiosidades negras e das expressões culturais, como o samba e as escolas de samba, foi a forma que eu encontrei para construir novas narrativas e conhecimento sobre a contribuição de negros, em especial de mulheres negras, para a construção de uma sociedade cheia de desigualdades, favorecida pelo racismo estrutural”.
Muito ligada ao samba paulistano, ela conta que sua dissertação de mestrado, registrada no livro Orixás no Terreiro Sagrado do Samba – Exu e Ogum no Candomblé da Vai-Vai (2022), tem tudo a ver com suas origens e com a representatividade histórica da Escola de Samba Vai- -Vai, onde fez muitos amigos e amigas e aprendeu, com os mais velhos, sobre o Carnaval Negro e a estreita relação entre os terreiros de samba e os terreiros de religiões afro-brasileiras. Ainda nessa área, afirma que nada foi mais desafiador do que construir a tese de doutorado, defendida em 2021 na PUC SP, em torno da questão de gênero e o orixá Exu, que resultou no livro Exu-Mulher e o Matriarcado Nagô, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico 2024, na categoria Ciências da Religião e Teologia, a maior premiação literária acadêmica do Brasil.