AGENTE DO SNI ESTAVA NO AUDITÓRIO DA ENTIDADE PARA RELATAR A CERIMÔNIA DE ENTREGA DO 1º PRÊMIO VLADIMIR HERZOG
por Paulo Zocchi
“Evento: homenagem a Wladimir Herzog – Dia dos Mortos e Desaparecidos. (…) Prêmio Jornalístico ‘Wladimir Herzog’. A Comissão Executiva Nacional dos Movimentos pela Anistia resolveu premiar jornalistas da grande imprensa e da imprensa independente que mais se destacaram nas matérias escritas sobre mortos, presos ou desaparecidos políticos.” Esse é um trecho inicial de um relato, que, para o leitor comum, poderia passar como uma nota jornalística. Mas não: feito anonimamente por um agente infiltrado na cerimônia realizada no auditório do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, em 25 de outubro de 1979, está registrado em folhas encabeçadas por um carimbo – CONFIDENCIAL –, pelo brasão nacional e pelo logotipo: Presidência da República – Serviço Nacional de Informações – Agência São Paulo.
Enquanto o general João Baptista Figueiredo, ele mesmo ex-chefe do SNI, iniciava seu período como último mandatário da ditadura militar brasileira, o regime cuidava de vigiar de perto os que exigiam apuração e punição para os incontáveis crimes dos anos de chumbo. Numa noite com o auditório Vladimir Herzog lotado, tomado pela indignação e pela disposição de resistência, o espião da ditadura transitava com discrição, para passar despercebido, e bastante atenção. Em seu relatório, descreve o ato em detalhes, registrando um resumo das falas e listando os integrantes da mesa, bem como outros nomes relevantes presentes no plenário.
Temos agora acesso a esse documento, revelador do modo de agir do serviço que recolhia informações para a repressão, graças ao trabalho do professor João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos, que o localizou no Arquivo Nacional
Os relatos do espião
Edição do boletim Mural, do Sindicato, de 17 de outubro de 1979, convocava o conjunto de atividades que ocorreria uma semana depois. Às 19h, o lançamento do livro “Desaparecidos Políticos”, dos jornalistas Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa. Às 21h, a primeira entrega do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, organizado pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) e pelo Comitê Brasileiro de Anistia – em colaboração com a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, a Federação Nacional dos Jornalistas, a Associação Brasileira de Imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Clarice Herzog, viúva de Vlado. Esses eventos marcariam o Dia Nacional dos Mortos e Desaparecidos, promovido pelos movimentos de anistia, e o Dia dos Direitos Humanos do Trabalhador, promovido pelo SJSP.
O agente registra esse conjunto de iniciativas. O relato das atividades propriamente dito ocupa seis páginas datilografadas. Em outras 17 páginas, o relatório traz reproduções fotográficas de três declarações públicas distribuídas na atividade – uma do Sindicato dos Jornalistas, outra do Comitê Brasileiro de Anistia (SP) e uma terceira do Sindicato dos Eletricitários de São Paulo –, além de um exemplar do ABCD jornal, cujo destaque era “Ninguém segura o partido dos trabalhadores”, tema ao qual o semanário dedicava três páginas, abordando como organizar o novo partido, que seria formalmente fundado no ano seguinte.
O lançamento do livro recebe um pequeno registro no início do informe, no qual se indica que “não será vendido nas livrarias”, e que seu preço no evento era de Cr$ 220,00. Ao que parece, o agente não comprou…
O relatório é metódico. Quando passa ao Prêmio, estabelece um ponto a), “Origem”, no qual faz o relato que abre esta matéria. Vem então o ponto b), “Presidência dos Trabalhos e Composição da Mesa”: “Os trabalhos foram presididos pelo deputado estadual FERNANDO GOMES DE MORAIS e a mesa foi composta pelas seguintes pessoas…” Todos os integrantes da mesa estão registrados e, certamente, cópias do relatório foram enviadas para o dossiê que a repressão mantinha para cada um de seus opositores ativos. Estar nessa mesa era um ato de coragem e de exposição pública contra a ditadura militar vigente. Se alguma daquelas pessoas não tinha a sua pasta nos arquivos da repressão, passaria então a ter.
Além de Fernando Morais, a representativa mesa da cerimônia era composta por:
José Gregori, pela Comissão de Justiça e Paz;
Maria Augusta Capistrano, viúva de David Capistrano, assassinado sob tortura pelo regime;
Ivan Seixas, ex-preso político;
Iracema Merlino, mãe de Luiz Eduardo Merlino, estudante assassinado pelo regime militar;
Wagner Lino Alves, dos Metalúrgicos de São Bernardo;
Tales Castelo Branco, advogado de presos políticos;
José Paulo Sepúlveda Pertence, então vice-presidente da OAB, e posteriormente, membro e presidente do STF;
Therezinha Zerbini, do Comitê Brasileiro de Anistia (CBA);
Egle Vannuchi Leme, mãe de Alexandre Vannuchi Leme, estudante assassinado sob tortura (que dá nome ao DCE da USP);
Clarice Herzog;
José Yunes, deputado estadual pelo MDB;
Helena Greco, do CBA;
Perseu Abramo, jornalista e professor e um dos criadores do Prêmio;
Raquel Pomar, nora de Pedro Pomar, dirigente do PCdoB assassinado pela ditadura militar;
Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado de presos políticos e presidente do CBA-SP;
Porfírio Francisco de Souza, do CBA;
Marcelo Barbieri, vice-presidente da UNE, que havia sido reconstruída cinco meses antes.
Quando entra no ponto c), “Ação dos participantes”, o agente solta mais sua pena. Ele resume a fala de vários oradores, dando elementos ao SNI – espécie de polícia política do regime – para entender os movimentos de oposição, bem como perseguir e atacar suas lideranças.
Começa pelo presidente da mesa: “FERNANDO GOMES DE MORAIS. Declarou que há 4 anos perdiam um valoroso soldado na luta contra a ditadura nas dependências do DOI-CODI. A Justiça resgatou sua dignidade ao condenar a União, através de um valoroso Juiz. Encarece a união de todos, pois os que mataram Herzog estão no poder”. Percebe-se que o agente busca alertar os seus chefes de que o objetivo dos organizadores do ato é derrubar o regime.
A mesma preocupação aparece na segunda fala transcrita, de Raquel Pomar, no seguinte trecho: “Afirmou que o circo de horrores deve acabar e os que, atualmente, trabalham nele”. Busca retratar o estado de espírito da cerimônia, ao dizer que Helena Greco, ao falar, estava “bastante emocionada”, e relata: “Segundo ela, ‘o Governo não respeita nossos mortos, e, por isso, não somos obrigados a aceitar esses carrascos’. Pediu em seguida o desmantelamento do aparelho repressivo”.
parelho repressivo”. Carregou nas tintas ao falar de Ivan Seixas – que havia sido preso, torturado e tinha testemunhado a morte de seu pai nas mãos dos torturadores. “O mais violento dos oradores. Segundo ele, todos os governantes são ‘gorilas’ fascistas que permanecem no poder por mais de 15 anos. ‘Só mudaram as caras, mas a ditadura continua’. (…) Ironizando, afirma que ‘um General que faz ginástica e manda as crianças darem um tiro na cabeça porque não sabem o que fazer quando estão com fome, dá sorrisos simpáticos e é tão animal quanto o cavalo que monta’.”
Deu destaque também à fala de Marcelo Santa Cruz, do CBA Rio de Janeiro: “‘Que morra a ditadura’ – foi o seu mote preferido. Comentou que os movimentos populares devem cobrar as respostas aos assassinos do povo, já que a ARENA boicotou a CPI dos direitos humanos. Exigiu CPI sobre torturas e quer que o Governo reconheça a Guerrilha do ARAGUAIA.”
Entre outras falas, relata que Clarice Herzog “agradeceu a manifestação e disse se sentir orgulhosa de seu marido”. É o registro, feito pelo inimigo, de uma resistência que se estende por toda a vida.
No ponto d), tenta listar todos os ganhadores do Prêmio Vladimir Herzog de 1979. Neste ponto, dá para medir a incompetência do sujeito: omite três premiados, confunde alguns dos autores e seus trabalhos e transcreve erradamente diversos nomes dos ganhadores. Mas a lista dos temas abordados pelas reportagens laureadas, com certeza, dá aos destinatários do relatório uma visão do caráter combativo do prêmio.
O informe termina com uma lista de pessoas presentes que o agente julgou relevantes, como, entre outros, o deputado estadual Geraldo Siqueira Filho, Eunice Paiva (viúva de Rubens Paiva), o ex-preso político José Genoíno Neto (em relação ao qual, alerta: “entrevistado por uma emissora de TV”), Celeste Fon (sobre a qual registra: “recebeu o prêmio pelo irmão ANTONIO FON”) e a jornalista Rose Nogueira, que havia sido presa e torturada pela ditadura.
Importante denúncia
O jornalista e escritor Fernando Morais, presidente da mesa da cerimônia, resume o significado atual do relatório: “Apesar de ter ocorrido há tantos anos, esse documento é uma denúncia importante para nos alertar dos riscos que a gente correu recentemente, com o 8 de janeiro de 2023” (veja o texto abaixo).
O fato agora revelado é que, mais de quatro anos depois de a categoria ter retirado os pelegos da diretoria do Sindicato – elegendo a chapa encabeçada por Audálio Dantas, em 1975 –, agentes do SNI entravam anonimamente na entidade para espionar e reportar atividades de resistência à ditadura. É mais um aspecto dos inúmeros prejuízos que o regime militar causou aos jornalistas e ao jornalismo no Brasil, por meio da perseguição, prisão, tortura e morte de inúmeros profissionais; da censura aos meios de comunicação – jornais, revistas, rádio e televisão –; da intimidação a repórteres no exercício da profissão; da ocultação de informações de interesse público; das escutas clandestinas e da violação de correspondências. Soma-se a espionagem de atividades dentro do próprio Sindicato da categoria.
Os riscos à democracia, dos quais fala Fernando Morais, concentram-se na questão da impunidade. Os assassinatos de opositores detidos pelo Estado, as bárbaras torturas promovidas pelo regime e o desaparecimento dos corpos de suas vítimas são crimes imprescritíveis para o direito internacional. Mesmo assim, a “transição” negociada e consolidada na cúpula dos poderes do Estado brasileiro ao final da ditadura fez com que, até hoje, esses crimes continuem impunes, como uma ferida sempre aberta. O porão da ditadura permaneceu incólume, e, como uma moléstia, espalhou-se pelo aparato de segurança no Brasil, na doutrina e na prática de uma polícia que tortura e assassina sem temer punições. É o mesmo porão do qual emergiu Jair Bolsonaro e seu grupo para chegar ao Congresso e à Presidência, com todas as consequências que conhecemos, e que hoje se expressam na busca de “anistia” para os criminosos de 8 de janeiro de 2023.
Em outubro próximo, completam- -se 50 anos do assassinato de Vlado. Neste período, o Prêmio Vladimir Herzog, realizado anualmente, tornou-se o mais importante prêmio da imprensa brasileira. Esse Sindicato prossegue na mesma trincheira, e mantém o compromisso expresso na Declaração (veja a íntegra ao lado) divulgada pela entidade naquela noite, 46 anos atrás: “Queremos declarar nosso compromisso de luta (…) para que os crimes que hoje denunciamos não fiquem impunes e que seus autores sejam responsabilizados”. A luta continua.
FERNANDO MORAIS 
Um alerta para os riscos à democracia
O jornalista Fernando Morais presidiu a mesa do 1º Prêmio Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1979. Além de jornalista sindicalizado e ex-vice-presidente do Sindicato, ele era então deputado estadual eleito em 1978 pelo MDB. A pedido do Unidade, deu a seguinte declaração a respeito da espionagem no evento na própria sede do Sindicato.
“O que chama a atenção neste documento é que, embora a ditadura já estivesse moribunda, em seus últimos estertores, o serviço de inteligência dos militares continuava muito ativo. Também chama a atenção o atrevimento dessa gente. Em 1979, não só nós jornalistas, mas a sociedade como um todo, ainda não estávamos refeitos do choque que tinha sido o assassinato do Vlado no DOI-Codi. Apesar disso, eles tinham a ousadia de plantar um araponga dentro do Sindicato para cobrir uma atividade como essa.
E veja o grau de minúcia do relato! Não só resumem todas as intervenções, como fazem um relatório no qual se nota, por exemplo, que entre os presentes estava José Paulo Sepúlveda Pertence, que viria a ser depois presidente do Supremo Tribunal Federal (STF).
É um documento muito importante por mostrar que, apesar dos golpes que a ditadura tinha sofrido com as consequências dos assassinatos do Vlado e, depois, do Manoel Fiel Filho – e com a gente a poucos anos da redemocratização do país –, essa cachorrada continuava no nosso calcanhar. Não largavam o osso. Inacreditável isso!
Apesar de ter ocorrido há tantos anos, esse documento é uma denúncia importante para nos alertar dos riscos que a gente correu recentemente, com o 8 de janeiro de 2023, e com essas tentativas do Bolsonaro e de sua gangue de acabar com a democracia. A revelação desse informe do SNI funciona como um alerta para os riscos que a gente corria ainda no fim da ditadura militar e que a gente não quer correr nunca mais.”
UM DOCUMENTO DO SJSP 
Declaração de compromisso de luta pelos direitos humanos 
Difundido no ato em 25 de outubro de 1979
Relembramos hoje mais um aniversário da morte de Vladimir Herzog. Ele foi morto no dia 25 de outubro de 1975, nas dependências do DOI-CODI, do II Exército. Relembramos hoje também os jornalistas, estudantes, operários, parlamentares, políticos e muitos outros que, nesses anos de arbítrio e prepotência, foram sacrificados, como Vladimir Herzog. Foram ilegalmente presos, barbaramente espancados, cruelmente torturados, vilmente assassinados. ESTES CRIMES NÃO PODEM FICAM IMPUNES!
Hoje, aqui reunidos, manifestamos nosso mais vigoroso repúdio a todos esses atentados contra a pessoa humana e contra os mais elementares direitos dos trabalhadores: o direito de existir, de reunir-se, de organizar-se, de expressar-se.
Protestamos contra todas as formas de violência e repressão que têm atingido diretamente milhares de brasileiros e, indiretamente, todo o povo deste país.
Nesta data – que proclamamos como o DIA DA DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES – queremos declarar nosso compromisso de luta pela defesa dos direitos humanos; de luta contra todas as formas de exploração econômica, de opressão política, repressão e violência; de luta pela anistia ampla, geral e irrestrita a todos os presos e perseguidos políticos; de luta pela democracia; de luta para que os crimes que hoje denunciamos não fiquem impunes e que seus autores sejam responsabilizados.
Conclamamos todos os setores da sociedade para que assumam o mesmo compromisso, para que todos possamos dizer:
O SACRIFÍCIO DE VLADIMIR HERZOG E DE TANTOS OUTROS NÃO FOI E NÃO SERÁ EM VÃO!
