The Guardian investiga seu passado escravocrata

Jornal inglês anunciou programa de reparação histórica que envolve fundo e reportagens sobre a escravidão transatlântica

por Thais Folego Gama

“Há uma ilusão no centro da história britânica que esconde o papel da escravidão na construção da nação (…). O truque foi construído ao longo dos séculos por políticos, lobistas e jornalistas que buscavam criar uma versão altamente romantizada de nossa história nacional”, escreveu o historiador e comunicador David Olusoga na reportagem “Escravidão e o The Guardian: os laços que nos unem”.

O texto faz parte do projeto Cotton Capital, série de reportagens em texto e podcast que explora como a escravidão transatlântica de pessoas negras moldou The Guardian (o jornal), Manchester (a cidade em que a publicação foi fundada), o Reino Unido e o mundo, partindo de uma investigação sobre os próprios vínculos dos fundadores do jornal com a escravidão e seus legados duradouros até hoje. “É importante o posicionamento do jornal de que, para investigar os outros, precisam antes investigar a si próprios”, observa a jornalista Beatriz Sanz, membro da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial de São Paulo (Cojira-SP).

A Scott Trust Limited, dona do Guardian e de outras empresas de mídia no Reino Unido, encomendou pesquisa acadêmica independente para investigar se havia alguma conexão histórica entre a escravidão e John Edward Taylor, jornalista e comerciante de algodão que fundou o diário em 1821, e outros empresários de Manchester que o financiaram.

O relatório Scott Trust Legacies of Enslavement revelou que Taylor e ao menos 9 de seus 11 apoiadores tinham ligações com a escravidão. Taylor tinha vínculos por meio de parcerias na empresa de algodão Oakden & Taylor e na Shuttleworth, Taylor & Co, que importavam grandes quantidades de algodão bruto das Américas. Daí o nome da série Cotton Capital – Dinheiro do Algodão, em tradução livre. O cultivo de algodão na América colonizada pelos ingleses foi marcado pela mão de obra escravizada.

INICIATIVA É UM MARCO PARA O JORNALISMO: PESQUISAS MOSTRAM QUE, AO NÃO RECONHECEREM O RACISMO COMO UM PROBLEMA DO CAMPO DA COMUNICAÇÃO, AS PRÁTICAS JORNALÍSTICAS O REFORÇAM

A investigação chegou até o Brasil, uma vez que, durante o comércio transatlântico de escravos, mais africanos escravizados foram trazidos para cá do que para qualquer outro país. “É outro lugar onde The Guardian encontrou uma ligação entre seu fundador, alguns de seus financiadores e a escravidão transatlântica”, diz o resumo do episódio 4 da série de podcast. Ele destaca que mais da metade da população brasileira se identifica como negra e há mais negros no Brasil do que em qualquer outro país fora da África, mas que o país ainda luta contra um “profundo racismo estrutural”.

Diante da investigação, a empresa pediu desculpas “aos descendentes sobreviventes dos escravizados pela parte que o Guardian e seus fundadores tiveram neste crime contra a humanidade”. Também se desculpou por suas posições editoriais que serviram para apoiar a indústria do algodão e, portanto, a exploração de pessoas escravizadas. O jornal anunciou ainda um programa de reparação que inclui um fundo de 10 milhões de libras (equivalente a cerca de R$ 60 milhões). Parte será destinada a comunidades de descendentes de escravizados ligadas aos fundadores do Guardian no século 19 e parte será investida em quatro frentes, para aumentar:

  • 1. a conscientização sobre a escravidão transatlântica e seus legados por meio de parcerias em Manchester e globalmente;
  • 2. a diversidade na mídia;
  • 3. pesquisas acadêmicas; e
  • 4. o escopo e a ambição das reportagens do Guardian.

A iniciativa de reparação histórica e racial do Guardian é um marco para o jornalismo. Pesquisas acadêmicas mostram que, ao não reconhecerem o racismo como um problema também do campo da comunicação, as práticas jornalísticas o reforçam: quando pessoas negras são retratadas apenas em páginas policiais e inexistentes nas reportagens de economia; quando dão espaços para colunistas racistas e negacionistas; quando profissionais negros são uma minoria dentro das redações – os que chegam a cargos de liderança são ainda exceção.