Jornal, que construiu sua imagem como porta-voz da democracia e dos direitos humanos nos anos 1980, não insere o combate ao racismo estrutural na filosofia do projeto editorial
por Dennis de Oliveira
No final de janeiro, as redes sociais foram tomadas por uma polêmica envolvendo o antropólogo Antonio Risério, que publicou no dia 16 de janeiro um artigo no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo intitulado “Neorracismo identitário” (“Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”, na versão digital). Na sequência, manifesto de mais de 180 jornalistas criticou o texto acusando-o de ser racista. Um outro grupo de pessoas lançou uma carta de apoio a Risério. E o jornal Folha de S. Paulo se defendeu, por meio do seu diretor de Redação Sérgio Dávila, com o costumeiro argumento de defesa do pluralismo e acrescentando ainda certo tom ameaçador contra os jornalistas que assinaram o manifesto. Dávila afirma que “o texto erra, é parcial e faz acusações sem fundamento, três características indesejáveis em se tratando de profissionais do jornalismo”. Depois diz que “a Folha seguirá fazendo o jornalismo que a consagrou nos últimos 100 anos, com uma Redação que esteja disposta a implementar com profissionalismo os princípios defendidos por seu Projeto Editorial: um jornalismo crítico, apartidário, independente e pluralista”.
Neste artigo quero retomar justamente essas ideias de pluralismo e diversidade que parecem ser um mantra na argumentação do jornal. Em artigo publicado no Unidade nº 413 sobre o caso da saída da ativista Sueli Carneiro do Conselho Editorial e o texto do Leandro Narloch sobre as “sinhás pretas” já abordei inicialmente esse aspecto.
Projeto Folha
No final dos anos 1980, quando o movimento pela democratização do Brasil ganhava força e impulsionava a luta pelo fim da ditadura militar, o jornal Folha de S. Paulo começa a pôr em prática o seu novo projeto editorial em consonância com os novos tempos. Depois de optar pela prática da autocensura no período mais duro da ditadura (anos 1970), a emergência dos novos sujeitos coletivos no cenário da democratização vislumbrou uma possibilidade de o veículo ocupar o espaço de fomentador da esfera pública que se construía.
Naqueles idos dos anos 1980, o jornal cobriu as ações do movimento estudantil, criou uma página de debates onde personalidades eram convidadas para apresentar análises e perspectivas de assuntos do momento, houve um investimento em montar um time de articulistas e ainda abriu espaço para dar visibilidade a iniciativas sociais de combate à crise econômica. Ao mesmo tempo investiu em um padrão industrial de produção jornalística, estabelecendo normas de captação e redação, controles rígidos de qualidade e quase que impondo um certo “engajamento” ideológico dentro da redação.
Com a democratização institucional do país se estabelecendo depois dos anos 1980, a história se encarregou de criar cenários um tanto distintos do que certa parte da intelectualidade rebelde dos anos 1970 previa. O que sempre se colocou nesta ideia de “redemocratização” foi o protagonismo de determinados segmentos da classe média intelectualizada cujas ações foram interditadas com a ditadura militar. A democratização do final dos anos 1980, ainda que mantivesse intacto o aparato repressivo da ditadura militar, inclusive a possibilidade de tutela militar com o famigerado artigo 142 da Constituição, abriu algumas janelas de oportunidades para uma mudança no cenário político. Ao mesmo tempo que isto ocorria, o capitalismo no mundo todo entrava na sua fase neoliberal, o imperialismo dos Estados Unidos consolidava sua posição com a vitória na Guerra Fria e houve uma avalanche conservadora sem precedentes naquele período.
Esse é o cenário contraditório em que o período da “redemocratização” embarcou. E qual a direção que tomou o tal “Projeto Folha” e seus entusiastas jornalistas e intelectuais engajados nas lutas contra a ditadura nos anos 1970? Como empresa, é fato que o jornal Folha de S. Paulo embarcou na onda neoliberal, defendendo as ideias de Estado mínimo, privatização de estatais, entre outros. Para manter as ideias de “diversidade e pluralidade” como princípios de valores democráticos, passou a tratar as demandas dos movimentos sociais com ceticismo.
Estética das redes sociais
Mais recentemente, a mídia hegemônica passou a ser pressionada pela estética do novo ecossistema midiático em que a esfera pública é pautada por uma guerra de narrativas. A argumentação foi trocada pela assertividade e, em alguns momentos, pela agressividade; e a veracidade, substituída pela verossimilhança. Em vez de articulistas, digital influencers. E o jornalismo passou a ser contaminado por aquilo que Paul Virilio chama de “profissionalismo delirante” – depender mais da opinião dos outros do que da qualidade da sua argumentação.
A indiferença e o suposto comportamento cético e blasé contaminam determinados articulistas quando se apercebem que certos debates passam ao largo dos seus controles. Este é o caso do debate do racismo no Brasil. À medida que a discussão sobre o racismo estrutural avança por meio de intelectuais e militantes do movimento negro, mais nítida fica a impossibilidade de se equacionar o problema do racismo dentro dos parâmetros do capitalismo e do liberalismo. Ao mesmo tempo, defender a manutenção do racismo para um veículo que construiu sua imagem como o porta-voz da democracia e dos direitos humanos nos anos 1980 é um tiro no pé. A solução é formalmente ser contra o racismo, mas não inserir o combate ao racismo estrutural dentro da filosofia do projeto editorial, o que implicaria, por exemplo, em estabelecer que o racismo não deve ser relativizado. E aí deixar o tema como objeto de um debate na estética das redes sociais. Para tanto, a Folha conta com um grupo de “provocadores” que vira e mexe toca nestas feridas, como o próprio Risério, Narloch, Magnoli entre outros.
Mas este pluralismo e a diversidade tão apregoados pela Folha de S. Paulo não são ilimitados como aparentam.
No ano de 2014, a empresa que edita o jornal Folha de S. Paulo foi processada por permitir que seus funcionários fizessem brincadeiras racistas contra um trabalhador negro prestador de serviço na empresa. A empresa recorreu à surrada alegação de quem é pego praticando racismo: foi apenas uma brincadeira. O juiz não aceitou a alegação e condenou-a a indenizar o trabalhador vítima do racismo. O jornal recorreu e perdeu também em segunda instância, embora tenha obtido uma redução significativa do valor da indenização. Isso mostra que o combate formal ao racismo no jornal não está diretamente vinculado a abrir mão dos privilégios brancos. É o racismo à brasileira que permeia o veículo.