REVOGAÇÃO DA REFORMA TRABALHISTA EM PAUTA

SEIS ANOS DEPOIS, COM UM GOVERNO ELEITO PELOS TRABALHADORES, A EXPECTATIVA É DE RECONQUISTA DE DIREITOS

por Priscila Chandretti

Um dos primeiros passos tomados pelo novo go- verno Lula, já no dia 18 de janeiro, foi se reunir com representantes do movimento sindical. O novo ministro do Trabalho, Luiz Marinho, com origem na Central Única dos Trabalhadores, afirmou que haverá uma “análise sobre a legislação trabalhista”, com o objetivo de “valorizar a negociação coletiva e fortalecer sindicatos”.

Para dirigentes do movimento sindical de jornalistas, a discussão sobre as leis trabalhistas passa, necessariamente, pela revogação da Lei 13.467, da reforma trabalhista. “A base de toda a discussão parte da necessidade de revogar uma reforma trabalhista que não realizou nenhum tipo efetivo de modernização das relações de trabalho. O que ocorreu, de fato, foi uma absurda regressão das mínimas garantias e direitos conquistados pela classe trabalhadora brasileira nos últimos 100 anos”, avalia Thiago Tanji, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (SJSP). Para ele, é “certo que precisamos discutir com muita profundidade as novas relações produtivas e seus consequentes impactos no mundo do trabalho, como o trabalho remoto e as novas possibilidades tecnológicas”.

A mesma posição é afirmada pela presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Samira de Castro. “A posição da Fenaj é de que as contrarreformas trabalhista e previdenciária precisam ser revogadas, porque, passados seis anos elas se comprovaram a maior falácia do capitalismo neoliberal e rentista que vigora no Brasil. A gente precisa recriar mecanismos de proteção da classe trabalhadora. Esse debate deve ser feito com urgência pelo novo governo”. Para Samira, a deterioração do mercado de trabalho se aprofunda cada vez mais, sem perspectiva de criação de empregos. “Claro que a geração de emprego depende também do crescimento econômico, mas é uma situação que não vai se concretizar se a gente não rediscutir os mecanismos implantados com a reforma trabalhista”, afirma.

Retirada de direitos

A Lei 13.467, chamada de reforma trabalhista, foi sancionada pelo presidente Michel Temer em julho de 2017 e passou a vigorar em novembro do mesmo ano. Ela alterou mais de uma centena de pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e reduziu ou extinguiu direitos e garantias conquistados por décadas de luta trabalhista. Também abriu o caminho para que negociações estabeleçam condições menos benéficas a um segmento de trabalhadores do que o previsto por lei, ou seja, o mínimo que antes era garantido a toda a classe pela CLT.

À época, o SJSP fez um trabalho in- tenso de dissecar as dezenas de pontos e retrocessos introduzidos pela nova lei, avaliar de que forma cada mudança poderia impactar especificamente nossa categoria e – mais importante – iniciou um debate nos locais de trabalho, em seminário e assembleias, sobre quais táticas seriam adotadas para enfrentar a nova situação legal, de acordo com cada ponto.

Um exemplo foi a avaliação de que o Departamento Jurídico do Sindicato seguiria disponível aos jornalistas para conferências de valores no momento de demissão, mesmo com o fim da obrigação legal de que as empresas realizassem a homologação do termo de rescisão nas entidades. Já se sabia que o número de trabalhadores assistidos seria muito inferior, mas decidiu-se que ainda assim seria importante oferecer essa alternativa para que o jornalista tivesse mais segurança ou pudesse cobrar valores devidos.

Para outros pontos, a categoria formulou reivindicações para as negociações com os sindicatos patronais. Muito pouco se avançou, frente à completa indisposição patronal de negociar, de fato, as reivindicações dos trabalhadores e quaisquer medidas que possam vir a significar uma proteção adicional para os jornalistas.

Cláusula de home office

Uma exceção foi a regulamentação do trabalho em home office no setor das empresas de Jornais e Revistas da capital. Frente ao fato de que a Lei13.467 estabelecia que o empregador não precisaria realizar o controle de jornada dos empregados em teletrabalho ou trabalho remoto, o SJSP incluiu em todas as negociações a reivindicação de que as convenções coletivas instituíssem essa obrigação (além de outras questões como o reembolso do custo da infraestrutura ao funcionário). Em 2018, os jornalistas desse segmento conquistaram uma cláusula limitada, mas garantindo que “os jornalistas em teletrabalho manterão a jornada de trabalho contratada”, ou seja, o trabalho que exceder a jornada e não tiver contrapartida em pagamento ou compensação estará fora do regulado pela Convenção Coletiva do setor.

Em 2020, com a pandemia, em empresas como Estadão, Folha e Editora Globo, que colocaram redações de forma integral em home office, os jornalistas se mobilizaram com o Sindicato e, tendo a cláusula como ponto de apoio, conquistaram o direito ao registro de ponto (uma proteção para o trabalhador) nos acordos coletivos específicos feitos com as empresas.

Negociações coletivas

O movimento sindical sempre buscou enfrentar um fato básico das relações trabalhistas: entre um patrão e um trabalhador, individualmente, manda quem pode. Não existe possibilidade de conversar ou negociar em pé de igualdade quando o funcionário depende do seu salário para sustentar a si e à sua família. É por isso que dispositivos como o banco de horas, instituído por meio de acordo individual, são tão prejudiciais. Nos fatos, ainda que a lei preveja “negociação individual”, o que acontece é que o trabalhador recebe do RH um contrato impresso para assinar: não se negocia nem a retirada de algum erro de português que haja no documento.

Aliás, a criação do banco de horas em si já é, de forma largamente majoritária, prejudicial ao interesse dos trabalhadores, pois possibilita ao empregador pra ticar jornadas superiores ao limite legal sem ter custos adicionais. Frequentemente, o trabalho realizado após a jornada diária, que deveria ser extraordinário, transformou-se na regra, e o empregado muitas vezes não consegue sequer ter controle sobre as horas devidas, nem consegue gozá-las quando é de seu interesse, mas sim quando é conveniente, de novo, para a empresa.

Até a mudança de 2017, a regra era de que esse dispositivo só poderia existir se fosse negociado com o Sindicato. Contrariando a Constituição Federal, em seu artigo 7o, inciso XIII, a reforma criou o banco de horas por acordo individual, ou, o que é ainda pior, pelo chamado “acordo tácito”.

Nas redações, como é natural, todos os empregados cumprem as mesmas regras de compensação em banco de horas, ou seja, não são condições “individuais”. Então, por que a negociação não seria coletiva? O objetivo é justamente dar às empresas as condições de impor os seus termos. “O patrão, que tem o maior poder no âmbito de uma relação assimétrica, praticamente obriga o trabalhador a assinar o acordo, sem que o sindicato tenha sequer ciência das condições”, explica Samira.

Na avaliação do coordenador do Departamento Jurídico do SJSP, o advogado Raphael Maia, o impacto desse dispositivo sobre a categoria, pelo menos em nível estadual, acabou sendo menor do que se esperava, em virtude do trabalho remoto.

“Até por conta da pandemia, o que aconteceu foi que boa parte da nossa categoria entrou em home office”, diz Raphael. Sem controle de jornada, não há aferição de eventuais horas extras, nem para o pagamento dessas horas, nem para compensação. “Documento formal de banco de horas formulado pela empresa, ao qual os trabalhadores tiveram que aderir individualmente, temos conhecimento apenas na Tribuna de Santos.”

Isso não quer dizer, no entanto, que em outros locais não esteja sendo aplicado o banco de horas “tácito”, ou seja, realizado sem formalização prévia das condições de compensação. A chefia ordena: “Trabalha um pouco a mais hoje, e na semana que vem você entra mais tarde num dia”. Nestes casos, muitas vezes o próprio trabalhador não tem a percepção de que aquilo é uma prática que lesa seus direitos (hora extra deveria ser paga com adicional), vê apenas como uma medida de gestão adotada pela chefia. Esses casos sequer são levados ao Sindicato.

O TEMOR DO TRABALHADOR PELA AÇÃO INDIVIDUAL LEVOU O SINDICATO A BUSCAR ALTERNATIVAS, COM MAIS PROCESSOS COLETIVOS E UM POSTURA OFENSIVA DE BUSCAR A NEGOCIAÇÃO COM AS EMPRESAS

Fim da ultratividade

A reforma trabalhista transformou em lei o que, em 2017, já era entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), adotado pelo ministro Gilmar Mendes em decisão monocrática: o fim da ultratividade – ou seja, da prorrogação dos efeitos de uma norma após ultrapassar sua vigência – sobre as cláusulas de um Acordo ou Convenção Coletiva de Trabalho (CCT). Em maio de 2022, o plenário do STF reafirmou esse entendimento. Por décadas, as relações de trabalho contavam com uma certa estabilidade, pois havia a garantia de que, se o acordo não fosse renovado logo após seu término (negociações prolongadas, impasses), as cláusulas continuavam vigorando por até cinco anos.

“O fim da ultratividade tornou-se uma ferramenta de pressão para que as em- presas realizem verdadeira chantagem durante as negociações, na tentativa de retirar direitos e fazer ameaças sobre a validade das cláusulas, que expiram após a data-base”, explica Thiago. Não por acaso, a primeira negociação coletiva realizada pelo SJSP sob vigência da reforma trabalhista, a do segmento de rádio em TV com data-base de 1o de dezembro de 2017, foi o momento encontrado pelas empresas para forçar a retirada de direitos históricos, como o quinquênio.

“A categoria resistiu, se mobilizou, e com isso pôde manter parte dos direitos que estavam sob ataque, reduzindo os danos. Mas as empresas conseguiram retirar algumas garantias porque, em determinado momento, a categoria precisou fechar o acordo para não perder o conjunto das proteções garantidas pela Convenção. Sem a ultratividade e sem nova Convenção assinada, poderíamos perder o reajuste de salários, o piso salarial, o adicional da hora extra superior à CLT, entre outras coisas”, conta Paulo Zocchi, que era presidente do SJSP à época. Ele lembra que nesse período as empresas de rádio e TV retiraram o quinquênio de convenções de jornalistas e de radialistas em vários estados do Brasil. “Foi uma decisão do patronato de pôr fim a esse direito.”

Em outros casos, pode ser pior, alerta Thiago. “Em nossa campanha salarial de Jornais e Revistas do Interior, o sindi- cato patronal simplesmente se recusa a iniciar a negociação, em uma situação praticamente surreal de precarização e fragilidade aos jornalistas que trabalham nessas empresas e se veem ameaçados com a perda de direitos conquistados há muitos anos.”

Para Samira, “o fim da ultratividade é tão danoso à nossa categoria que hoje temos sindicatos que levam anos para conseguir fechar uma negociação salarial, há casos de até três anos sem uma CCT. Simplesmente, quando termina o prazo de uma convenção, as empresas forçam os sindicatos a negociar aquele conjunto de direitos partindo do zero. É um entrave para as categorias que não têm muita musculatura, que não são de massa”.

Difícil acesso à Justiça

Se por um lado a reforma trabalhista rebaixou o piso dos direitos, por outro também criou obstáculos adicionais para que aqueles direitos que restam sejam cobrados pelos trabalhadores, em caso de descumprimento por parte do patrão.

A lei impôs uma série de armadilhas punitivas para os trabalhadores que queiram tentar reaver direitos na Justiça, limitando a gratuidade e impondo paga- mentos de vários aspectos processuais, como honorários, sucumbência e perícia. O efeito é que muitos dos empregados lesados pelos patrões podem preferir não se arriscar. Segundo estatísticas disponíveis do site do Tribunal Superior do Trabalho (TST), a queda de processos após a reforma trabalhista foi expressiva. Em 2016, ano anterior à entrada em vigor da Lei 13.467, as varas do trabalho em todo o país receberam mais de 2.756.000 petições iniciais. Já em 2018, ano seguinte à reforma, esse número tinha caído em mais de 1 milhão, chegando ao patamar de 1.748.000, e continuou caindo nos anos seguintes. No ano passado, as varas do trabalho receberam 1.648.535 processos, o que representou um aumento de 6,3% em relação a 2021 – mas queda superior a 40% em relação a 2016!

É o mesmo que Raphael viu acontecer. “Caiu drasticamente o número de processos individuais movidos pelo Jurídico do Sindicato. Antigamente, entrávamos com cerca de três ou quatro processos por semana, hoje temos três ou quatro por mês, e olhe lá. Aumentaram muito as consultas, reclamações do dia a dia, mas as pessoas temem entrar com a ação.”

Ele também vê uma mudança grande ocorrendo nos motivos das ações. “As pessoas só entram com ação quando o ganho de causa é praticamente certo. Ou é caso muito grave e não tem outra alternativa senão processar, ou, nos outros 99% dos casos, a ação é para cobrar verba rescisória ou pagamento do Fundo de Garantia não acertados por empresas. São verbas incontroversas – as quais, antes, com a obrigação da homologação no Sindicato, as empresas dificilmente deixavam de pagar”.

“Então, às vezes entramos com alguma ação reivindicando o vínculo trabalhista [no caso de PJs ou frilas fixos]. Mas muitas outras coisas que apareciam, como discussão a respeito de jornada, acúmulo de função, dano moral, isso tudo reduziu drasticamente, porque as pessoas, ao serem alertadas do risco de terem de pagar sucumbência em caso de derrota, abrem mão da discussão daquele direito”, explica.

No “Ranking dos assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho até dezembro de 2022” – organizado pela Coordenadoria de Estatística do TST com base nos casos novos na Justiça do Trabalho – seis assuntos entre os dez mais citados decorrem diretamente de problemas com verbas rescisórias.

O primeiro colocado, correspondente a quase 450 mil reclamações trabalhistas em 2022, é a falta de pagamento da multa de 40% do FGTS para demissões sem justa causa. Os dados mais antigos que encontramos para esse ranking são de 2018, após a Lei 13.467.

No entanto, ao contrário do observado na nossa categoria, o relatório do TST mostra um crescimento importante do número de ações relacionadas a hora extra em 2022.

O temor do trabalhador pela ação individual levou o Sindicato dos Jornalistas a buscar alternativas: “A gente teve de aumentar os processos coletivos, mas não é tudo que podemos discutir dessa forma. Também tentamos compensar com muita atuação sindical, buscando o Ministério Público, reforçando a nossa postura de ir para cima, de negociar com as empresas, de chamar os trabalhadores para conversar. Conseguimos resolver muitas coisas na base das negociações e acordos extrajudiciais”.

Com a experiência cotidiana do SJSP desde a aprovação da reforma trabalhista, o presidente da entidade, Thiago, não hesita em cravar: “Podemos dizer com toda a clareza que a reforma trabalhista não apenas fracassou completamente com os seus pretensos objetivos alardeados pelo ‘mercado’, como a geração de empregos e o crescimento da produtividade, como também é diretamente responsável pela dramática piora nas condições de vida do povo brasileiro, com o aumento da precarização das relações de trabalho”. Some-se a esse resultado a sua total ilegitimidade, resultado do golpe contra a presidente Dilma Rousseff, em 2016. Recuperando-se o arcabouço legal dos direitos, podem começar de maneira correta as discussões sobre a modernização da legislação trabalhista.