Resistência ao desmonte da comunicação pública

Sociedade civil e entidades se unem contra o desmonte da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Mecanismos como a Ouvidoria Cidadã e dossiês da censura foram criados para documentar o governismo e o desvio institucional promovido por Bolsonaro na maior rede de comunicação pública brasileira

por Akemi Nitahara*

Ministro das |Comunicações, Fabio Faria, entrega o Prêmio Marechal Rondon de Comunicações ao presidente da EBC, Glen Valente (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil)

Com o desmonte físico, de pessoal e, principalmente, editorial implementado na Empresa Brasil de Comunicação (EBC) desde 2016, foi necessário criar mecanismos de resistência e denúncia em defesa do verdadeiro projeto de comunicação pública do país. Tanto internos quanto externos.

Ainda em 2016, em meio às ameaças de privatização ou extinção da EBC que surgiram durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, foi formada a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, composta por dezenas de entidades da sociedade civil, sindicatos, grupos de pesquisa, professores, jornalistas e pesquisadores. A Frente tem promovido, desde então, diversas campanhas e ações para difundir na sociedade a importância da comunicação pública para a democracia.

Internamente, os funcionários comprometidos com a missão social da empresa notaram rapidamente as mudanças efetivadas na EBC com a chegada de Michel Temer ao poder. Além das dezenas de demissões de comentaristas, apresentadores e funções de confiança e da retirada de programas das rádios e da TV Brasil do ar, sem explicação aos ouvintes e telespectadores, duas coisas passaram a se fazer presentes no jornalismo e na programação: censura e governismo.

Um grupo de trabalho formado por membros da Comissão de Empregados da EBC e dos sindicatos representantes dos trabalhadores lançou um formulário on-line e anônimo em 2017, por meio do qual os funcionários apontaram os casos de censura que sofreram e de pautas ou programas em que só a visão do governo se fazia presente.

Este primeiro dossiê, lançado em agosto de 2018, trouxe o relato de 61 casos. Destaque para censuras à cobertura do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e da intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro.

Com o início do governo Bolsonaro, a censura e o governismo se agravaram na EBC, e o trabalho de denúncia continuou. O segundo levantamento, lançado em setembro do ano passado, somou 138 casos verificados entre janeiro de 2019 e julho de 2020. O dossiê levou como subtítulo “Inciso VIII”, que se refere ao artigo 2° da Lei nº 11.652, de criação da EBC, que descreve os princípios a serem seguidos pela empresa de comunicação pública: “VIII – autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão”.

O terceiro levantamento apontou 161 casos de censura e 89 de governismo, que, pela primeira vez, foram computados separadamente. O espaço temporal foi restrito a um ano exato, entre agosto de 2020 e julho de 2021. Entre os destaques do relatório es tão o corte a pautas sugeridas, que nem chegaram a ser produzidas pelos veículos e agências da EBC, com a censura prévia de temas considerados “delicados” ou “controversos” pelo governo, como direitos humanos e meio ambiente.

O terceiro dossiê levantou também as entradas do programa governamental A Voz do Brasil com link ao vivo na Agência Brasil e no principal telejornal da TV Brasil, o Repórter Brasil Noite. A prática começou em 22 de julho de 2020, aniversário de 85 anos do radiojornal mais antigo do país. E continua a cada vez que um ministro ou outro membro do alto escalão concede entrevista nos estúdios da Voz. A Voz do Brasil é um programa da comunicação governamental, um serviço prestado pela EBC ao governo federal, e não deve ser confundida nem utilizada nos veículos públicos sem contextualização nem contraponto, como vem sendo feito.

foram 97 eventos transmitidos de forma ilegal pela tv pública, em 2021. desde o início do governo, mais de 239 horas foram dedicadas ao proselitismo político de bolsonaro

Ouvidoria Cidadã da EBC

Na resistência de fora para dentro, a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública lançou, em dezembro de 2020, a Ouvidoria Cidadã da EBC. O objetivo é resgatar a participação social na empresa, depois que o Conselho Curador foi cassado pela Medida Provisória 744/2016 e a Ouvidoria da EBC passou a fazer comunicação institucional, deixando de cumprir sua função prevista em lei de exercer a crítica interna da programação de acordo com os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública.

Portanto, o órgão paralelo publica “análise crítica e independente, feita pela sociedade civil, de amostra de conteúdos dos veículos públicos e agências de notícias da Empresa Brasil de Comunicação”, como explica o primeiro relatório. Função essencial, principalmente depois que a Ouvidoria da EBC foi proibida, pelo Conselho de Administração, em março deste ano, de divulgar as (poucas) análises que fazia nos relatórios bimestrais.

Entre os conteúdos apontados pela Ouvidoria Cidadã da EBC no primeiro relatório como problemáticos, do ponto de vista da comunicação pública, estão desserviço, desinformação e negacionismo na cobertura da pandemia de covid-19, tentativa de proteção editorial ao presidente Jair Bolsonaro, uso abusivo e ilegal dos perfis dos veículos e agências da EBC para promover o presidente Bolsonaro, uso de conteúdo governamental pelo jornalismo público e supressão de falas polêmicas do presidente e do vice.

Em 2021, um trabalho de grande repercussão publicado pela Ouvidoria Cidadã foi o levantamento das interrupções na grade da TV Brasil para a exibição de eventos ao vivo com Bolsonaro. Tal intromissão da comunicação governamental na TV pública começou com a fusão das grades da TV Brasil com a TV NBR, em abril de 2019.

As interrupções somaram 78h37min04s nos sete primeiros meses de 2021, com 97 eventos transmitidos de forma ilegal pela TV pública. No ano passado, 157 eventos ocuparam a TV Brasil por 109h17min40s. Em 2019, as interrupções somaram 51h44min01s, com 90 transmissões ao vivo. No total, são mais de 239 horas de proselitismo político.

Longe de ter interesse público, muitos desses eventos são formaturas militares, cultos religiosos e inaugurações de obras com caráter eleitoral.

O desmonte é grande, mas a resistência existe e as denúncias estão sendo feitas. Sociedade civil e trabalhadores da EBC se unem na defesa de um projeto que possa ser retomado em um momento mais democrático do nosso país.

* Akemi Nitahara é jornalista da EBC, membro da Comissão de Empregados e conselheira cassada pela MP 744/2016