RESENHA

Obra relevante fica por 116 anos no ostracismo

por João Marques

“Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume.”

Além de assinar como “Uma Maranhense”, é dessa forma que Maria Firmina dos Reis, autora homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano e primeira escritora a dar voz a um personagem negro na literatura brasileira, abre a apresentação do seu primeiro romance, Úrsula (Penguin & Companhia das Letras, 224 págs.). Lançado em 1859 e festejado com resenhas em diversos jornais do Maranhão, Maria Firmina poderia hoje ser cânone, lida no ensino médio, acompanhada de seu conterrâneo e contemporâneo, Gonçalves Dias, quando se estuda romantismo na literatura brasileira; mas a primeira mulher negra a publicar um romance em língua portuguesa ficou silenciada por quase todo o século 20. Só foi redescoberta em 1975, quando o bibliógrafo e colecionador Horácio de Almeida encontrou um exemplar, em meio a um lote de livros antigos, comprados no Rio de Janeiro, e Úrsula teve sua segunda edição. Vieram outras edições, mas só em 2004, reconhecida pela crítica, começa a ganhar estudos, artigos e trabalhos acadêmicos.

Com narrativa açucarada e enredo ul trarromântico, a obra faz críticas à escravidão e à sociedade escravista e patriarcal. Também destaca personagens africanos e afro-brasileiros escravizados, que refletem sobre o mundo, reconhecem as injustiças das relações escravistas e ainda contam suas próprias histórias. Considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro, Úrsula pode ser entendido como resposta à escritora Harriet Beecher Stowe. Seu livro mais famoso, A Cabana do Pai Tomás, sucesso mundial, ganhou primeira versão em português em 1853 e começou a circular pelo estado do Maranhão. Maria Firmina certamente o leu e pode ter feito um contraponto à obra da abolicionista estadunidense, de conteúdo resignado.

Um acidente a cavalo aproxima o par romântico. Tancredo, com a perna machucada, é socorrido pelo escravo Túlio, que o leva para a casa onde morava Úrsula, a mãe dela, Luiza B., e a africana mãe Susana. Tancredo já vinha de história frustrada de amor, perdera a primeira amada para o próprio pai. Já Úrsula vivia numa casa humilde, seu tio, o comendador P., tomou todas as posses da família. Entre outras maldades, ele também tenta atrapalhar o amor do casal, tornando-se rival de Tancredo e assediando a própria sobrinha, além de ter sido o mandante do assassinato do cunhado, pai de Úrsula.

Maria Firmina dos Reis nasceu em 1825 e morreu em 1917. Negra, de família modesta, carregava todos os marcadores da desclassificação social. Fundadora da literatura afro-brasileira, foi professora de primeiras letras, quando abriu uma sala mista que escandalizou a cidade. Além de Úrsula, escreveu o romance indianista Gupeva (1861), o conto abolicionista A Escrava (1887) e uma série de poemas publicados nos jornais do Maranhão. Também participou da antologia Parnaso Maranhense (1861) e reuniu seus poemas em Cantos à Beira-Mar.