por João Marques
No ensaio A Personagem do Romance, Antonio Candido cita E.M. Forster e descreve as duas categorias de personagens identificadas pelo escritor e crítico literário inglês: esféricas, que têm a habilidade de surpreender o leitor de maneira convincente, e planas, que não surpreendem e se, por acaso, conseguem, não convencem, são as planas com pretensão a esféricas. O protagonista do novo romance de Rafael Gallo, Dor Fantasma (Biblioteca Azul, 352 págs.), livro vencedor do Prêmio José Saramago, leva essa regra ao limite, é superesférico, surpreende o tempo todo e sempre convence. Sua narrativa em terceira pessoa, focalizada no protagonista, permite ao leitor conhecer a intimidade do personagem. Criando estranhas empatias e já conhecendo a figura, podemos imaginar qual será a sua reação frente aos acontecimentos da história — que muitas vezes ele entende como sendo provocação. O leitor pode se revoltar, julgar e até condenar o protagonista, mas, certamente, irá se esforçar para entender os seus motivos.
Dividido em quatro partes Coda, Exposição, Desenvolvimento e Cadenza — termos emprestados da música —, o romance conta a história de Rômulo Castelo, pianista virtuoso, professor de uma universidade pública e filho de um respeitado maestro, já fora de cena, de quem herdou a disciplina: “O relógio marca 6h40, sempre 6h40, da cama ao piano, 120 BPM no peito, 120 BPM no metrônomo”. Todas as manhãs, ao acordar, se fecha na sua sala de estudos e busca a perfeição; ensaia obsessivamente Rondeau Fantastique, conhecida como a peça intocável de Franz Liszt. Vai apresentá-la numa turnê pela Europa, quando pretende ser reconhecido como o maior intérprete do compositor húngaro. Mas um acidente muda seus planos: atropelado por uma motocicleta, perde a mão direita. Amputado, sente a dor no membro perdido — daí o título do livro —, não aceita a realidade e busca uma prótese que lhe permita continuar tocando. Briga com o mundo, destrata todas as pessoas próximas, a mulher, o filho que nasceu com uma deficiência, os colegas da universidade e os alunos. Uma cena de violência contra uma aluna é gravada, o vídeo viraliza e Rômulo também se torna vítima de cancelamento; mas nunca perde a pose.
“‘Nós fizemos tudo que estava ao nosso alcance. Agora é esperar os pontos cicatrizarem, esses hematomas no coto desincharem. E pensarmos na reabilitação’, o médico responde. O silêncio no quarto não é de alento. Até o nome da ferida — coto — soa vulgar. A derrocada é também estética.”
Rafael Gallo nasceu em São Paulo, em 1981, tem formação em música, conhece bem o universo retratado em Dor Fantasma. Também é autor de Rebentar, publicado em 2015, romance que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura e conta a história de Ângela, mãe que há trinta anos procura um filho desaparecido. Sua estreia na literatura foi com a coletânea de contos Réveillon e Outros Dias, em 2012, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura.