Resenha: Lendas urbanas por duas autoras santistas

por João Marques

Passei parte da quarentena em Santos e, da janela do apartamento onde fiquei isolado, avistava, todo final de tarde, na calçada do outro lado da rua, uma mulher vestida de preto; com um véu da mesma cor cobrindo a cabeça e um cajado na mão, ela caminhava de lá pra cá, cantando, o que me pareceram, cânticos religiosos; depois, descobri que morava num casarão vizinho e ficou assim por conta de uma tragédia: de casamento marcado, seu noivo viajou para regularizar uns documentos e morreu em um acidente de carro. Chequei essa informação com o funcionário do prédio: — É verdade, seu Antonio?! — Pelo menos, é o que dizem — ele me respondeu. Quando comecei a ler Encontros à Hora Morta, de Vanessa Ratton e Maria Valéria Rezende, com ilustrações de Alexandre Camanho (Florear, 192 págs.), logo me lembrei dessa história, um perfeito embrião de lenda urbana, tipo A Noiva do Casarão da Alexandre Martins, mas que pode ter sido abortado. No meio deste ano, a casa da noiva foi demolida, o último casarão da região, apagando a história e interrompendo uma lenda.

Era começo da pandemia, Vanessa já vinha pesquisando sobre lendas urbanas e pensava em escrever uma novela, mas ainda não tinha o gancho, até que leu uma matéria no Estado de Minas, que a deixou muito impressionada. O navio de cruzeiro Zaandam, que saiu de Buenos Aires, no Lendas urbanas por duas autoras santistas por João Marques início de março de 2020, e seguiu para San Antonio, no Chile, levando 1.800 pessoas, foi proibido de atracar, pois 42 passageiros apresentavam sintomas da covid-19. Inspirada nessa notícia, ela construiu o fio condutor de sua estreia na literatura juvenil. O narrador Tomás, jovem, natural de Marialva, pequena aldeia de Portugal, viaja com a família — sua irmã mais nova, Catarina, e seus pais, Leonora e Martin —, visitam parentes em Buenos Aires e de lá embarcam no Zaandam; mas, diferentemente do navio real, este foi acolhido no porto de Santos. E assim começa sua viagem fantástica, percorrendo várias lendas urbanas santistas.

Depois de mostrar a primeira versão do texto a Maria Valéria, profunda conhecedora das tradições orais da cidade, que sentiu falta “da história do pirata”, Vanessa a convida para escrevê-la, e o que mais a amiga pudesse se lembrar; assim, dividiram a autoria do livro. Os horrores do navio Raul Soares, cenário de tortura durante a ditadura; as histórias do Porto de Santos, da Santa Casa, do Monte Serrat, do Cemitério do Paquetá, do Teatro Brás Cubas, da Pinacoteca Benedito Calixto; os fantasmas das mulheres assassinadas ou violentadas pela moral social e política e até lendas mais contemporâneas, como a da Loira do Banheiro, ilustram essa narrativa. “Nossa Santos e suas histórias estão imortalizadas nesta obra de realismo fantástico”, concluiu Maria Valéria Rezende.

Vanessa Ratton nasceu em Santos, é jornalista, professora, psicopedagoga, escritora; integra o Movimento Mulherio das Letras, que reúne milhares de mulheres, profissionais do livro, no Brasil e no exterior; colunista de A Tribuna, também é autora de literatura infantil, com o pseudônimo de Tatá Bloom. Maria Valéria Rezende, escritora premiada, é igualmente santista, já falamos dela quando demos a dica do seu livro Carta à Rainha Louca.