por João Marques
Jeferson Tenório é o patrono da Feira do Livro de Porto Alegre deste ano. Nos 66 anos da tradicional feira literária, o escritor e professor de Literatura, nascido no Rio de Janeiro e radicado na capital gaúcha, é o primeiro negro a receber tal honraria. E por que demorou tanto? Seu mais recente livro, assim como seus dois primeiros romances, dão algumas respostas.
O mais antigo, O beijo na parede (Editora Sulina, 136 págs.), lançado em 2013, é a história de João, que aos 10 anos perde a mãe (negra), morta por câncer, depois muda-se do Rio de Janeiro para Porto Alegre, e lá perde o pai (branco), que se mata, enforcado. Órfão, é levado para um abrigo, de onde foge; na rua, faz amigos adultos, amadurece prematuramente e passa a morar em um cortiço. É o próprio João quem conta, com ternura, sua triste história; pessoalmente, me agradam narradores crianças, e esse conquista o leitor já no primeiro capítulo.
O segundo, lançado em 2018, Estela sem Deus (Editora Zouk, 208 págs.), conta o percurso de uma menina negra, dos 13 aos 16 anos. Questionadora, ela quer ser filósofa, pois soube que “os filósofos são pessoas que pensam na vida”. Vivia em Porto Alegre com a mãe, que, sem condições econômicas de cuidar dos filhos, os leva para ficar um tempo com a madrinha, de família evangélica, no Rio de Janeiro. Lá, enfrenta o preconceito, os conflitos com a religião, a busca da sexualidade, sofre com a falta da mãe e vive uma relação ambígua com o pai, sempre ausente.
Já em seu mais recente, O avesso da pele (Companhia das Letras, 192 págs.), lançado em setembro, o narrador Pedro refaz a história da família, a partir dos objetos pessoais encontrados no apartamento do pai, professor de Literatura de uma escola pública de Porto Alegre, negro, morto em uma abordagem policial. A narrativa reconstrói, principalmente, o percurso do pai, resgatado e imaginado a partir de seus objetos – “é com eles que te invento e te recupero” –, e também é a ele que o narrador se refere, quando o trata por “você”, como se fosse uma carta dirigida ao pai e, por vezes, destinada ao leitor.
O autor viveu também esse tipo de abordagem policial, pela qual passa o pai do narrador, e que é rotina para o jovem negro. Uma vez, por exemplo, ele tinha 18 anos e foi abordado de forma violenta, quando voltava, de madrugada, do trabalho numa pizzaria, num bairro de classe média; outra vez, em 2016, já professor de Literatura, esperando uma carona, sofreu abordagem “educada”, pois os policiais tinham recebido denúncia sobre um homem suspeito parado na rua.
A partir de 2017, cresceu a pressão pela participação de mais afrodescendentes na Feira do Livro, não só para falar de literatura negra mas, também, para ocupar o lugar negado pela hegemonia branca e naturalizar a sua presença em todos os debates literários. Durante a feira daquele ano, junto com o poeta gaúcho Ronald Augusto, Jeferson Tenório, que foi o primeiro cotista negro formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, escreveu uma série de artigos, pressionando a organização, e os resultados vêm aparecendo. ■