Após seis anos de desmonte de políticas públicas e ataques ao jornalismo, entidades fazem balanço e apontam caminhos de reconstrução
por Larissa Gould
O ano era 2016. Sequer imaginávamos um governo Bolsonaro com seus absurdos desmandos e lamentáveis episódios que mais lembram uma série de ficção distópica. Mas a realidade já não era tão melhor assim. Em agosto daquele ano, vítima de um golpe midiático-jurídico-parlamentar, a então legítima presidenta do Brasil Dilma Rousseff (PT) era destituída de seu cargo de chefe do Executivo. Michel Temer (MDB), então vice-presidente, assume os últimos anos daquele mandato. A reportagem de capa deste Unidade propõe falar de futuro. Em especial, o futuro da comunicação no Brasil. Mas é impossível não realizar um balanço desses últimos anos, especialmente para relembrar tamanhos retrocessos que atingiram, particularmente, a categoria de jornalistas do país. E que demonstram os enormes desafios que teremos pela frente na luta pela reconstrução do Brasil e das políticas de comunicação.
“Seis anos de total retrocesso no ambiente comunicacional do país”
A máquina de Bolsonaro foi, sim, a maior cerceadora da liberdade de expressão do país, como indica o relatório Calar Jamais, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Foi também o seu governo um notório disseminador de ódio e notícias falsas, e tantos outros agravos. Mas, justiça seja feita, não podemos nos furtar de relembrar o início de todo esse processo. Já em setembro de 2016, no primeiro mês como presidente golpista, Temer iniciou o desmonte da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Por meio da Medida Provisória 744/2016, a EBC passou a ser administrada por um Conselho de Administração e por uma Diretoria-Executiva. Ricardo Melo foi exonerado do comando da empresa, e o Conselho Curador, extinto.
Rita Freire, ex-presidenta do Conselho Curador da EBC, relembra o caráter daquela ofensiva. “O ataque mais simbólico foi o desmonte da EBC, ato contínuo ao impeachment da presidenta Dilma. A medida provisória deu fim ao Conselho, ao mandato presidencial (da empresa) e estabeleceu um processo de caça às bruxas. Um processo de desconfiguração do caráter de comunicação pública da Empresa Brasil de Comunicação. Esse ataque não teve só um peso simbólico, mas concreto para a questão da democracia”. Isso porque, como explica Rita, para o pleno exercício da democracia, é preciso ter uma mídia independente de governo e partidos, e também do mercado. “É preciso ter assegurada uma comunicação em que a orientação seja livre desses condicionantes, e venha da sociedade civil com uma equipe qualificada e autônoma, com mecanismos para assegurar que não tenha desvios e que avance na representação das vozes da sociedade”, ressalta.
Mas, do golpe para cá, não só a comunicação pública foi alvo de ataques, como pontua Renata Mielli, jornalista, pesquisadora do PPGCOM-ECA/USP e membra da Coordenação Nacional do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. “A própria extinção do Ministério das Comunicações na primeira fase do governo Bolsonaro sinalizava a ausência de políticas para essa área. E também a aprovação da lei que altera o regime de prestação de serviços de telecomunicações e acaba com os contratos de concessão, completando o processo de privatização e reduzindo drasticamente o papel do Estado na fiscalização e na adoção de diretrizes para a prestação desse serviço público essencial, que fica à mercê dos interesses privados”.
Mielli relembra as portarias e decretos que alteraram regras de concessão e outorgas das emissoras de rádio e televisão, priorizando o setor privado, além do fim de uma política mínima para as rádios comunitárias, da descontinuidade do processo de concessão dos canais da cidadania e da total ausência de parâmetros pautados no interesse público para a distribuição de verbas de publicidade do governo federal. Em suma: “Seis anos de total retrocesso no ambiente comunicacional no país”.
Violência contra jornalistas
Uma das lamentáveis marcas do governo de Bolsonaro (PL) foi o ataque a jornalistas e veículos de comunicação, como lembra Beth Costa, jornalista e coordenadora-geral do FNDC. “Vimos como o presidente tratou a imprensa na sua posse. Deixou a imprensa confinada. Não deu acesso à cerimônia”. E foi só o começo. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), ao realizar o mapeamento anual de violência contra as e os jornalistas por meio do Relatório de Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, constatou que dobraram os ataques a jornalistas e veículos de comunicação no primeiro ano de governo Bolsonaro (2019) em comparação com 2018.
Este aumento de casos teve como principal responsável o presidente, que realizou mais de metade dos ataques — dos 208 casos registrados em 2019, 121 ameaças e agressões foram proferidas por Bolsonaro. O número se manteve neste patamar nos relatórios dos dois anos seguintes. “A principal característica desde o início do governo Bolsonaro foi a maneira como ele se comportou com um projeto político de ultradireita de dominação política. Uma máquina de desinformação, de disseminação de informação falsa e manipulação da vontade popular”, afirma Beth.
Em outubro de 2022, o FNDC divulgou o seu 2º relatório da campanha Calar Jamais, que teve início logo após o golpe de 2016 e trouxe outro dado preocupante, uma forma de violência igualmente grave: a censura. De junho de 2019 a fevereiro de 2022, a entidade mapeou 110 casos de censura, sendo mais da metade deles (54) contra jornalistas, comunicadores sociais, veículos e meios de comunicação. Além disso, 67,6% das denúncias de cerceamento da liberdade de expressão foram protagonizadas pelo Estado brasileiro.
E nessa conta nem está o desmonte das políticas de transparência. “Houve um retrocesso muito grande ao ameaçar a Lei de Acesso à Informação. Também através de portarias, o governo federal limitou o acesso da população em geral, e principalmente da imprensa, às informações que eram consideradas públicas. Houve um apagão na divulgação de informações que antes praticamente eram públicas e passaram a ser classificadas como secretas”, lembra Beth.
Assim como a própria EBC, alvo de sistemático desmonte, os trabalhadores da empresa também foram vítimas deste governo. A começar pelo fato de que jornalistas e radialistas estão há dois anos sem reajuste salarial e Acordo Coletivo de Trabalho, com sucessivas tentativas da empresa de retirar direitos, piorar as condições de trabalho e perseguir a atuação sindical. Além disso, a categoria sofreu assédio moral e intimidação, documentadas pelos sindicatos em diferentes episódios.
“O Brasil precisa inventar o seu modelo de Comunicação Pública”
Rita Freire
Mas os jornalistas e radialistas não se dobraram. Durante o período, a Comissão de Trabalhadores lançou quatro dossiês denunciando censura e governismo na empresa. Só no último documento, lançado em setembro de 2022, foram monitoradas, de agosto de 2021 a julho de 2022, 292 denúncias de censura e governismo nos veículos públicos.
De acordo com o relatório, o uso dos veículos para promoção pessoal do presidente Jair Bolsonaro se aprofundou, principalmente na TV Brasil, que passou a ter a grade unificada com o canal governamental NBR em 2019. No período abrangido pelo quarto dossiê, foram transmitidos ao vivo 274 eventos com o presidente, totalizando 192 horas, 58 minutos e 18 segundos. Os levantamentos foram elaborados pela Comissão de Empregados da EBC e sindicatos dos jornalistas e dos radialistas de Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo. Junto com a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, foi lançado em dezembro de 2020 a Ouvidoria Cidadã, para analisar conteúdos publicados e veiculados pela empresa.
A incansável luta dos trabalhadores foi reconhecida no 44º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, em cerimônia realizada no último dia 25 de outubro, com o Prêmio Especial de Contribuição ao Jornalismo. Na ocasião, profissionais da empresa subiram ao palco para destacar o seu papel de resistência e permanente defesa de uma comunicação pública de qualidade para o Brasil.
Ventos de mudança
Preocupadas com a situação das políticas de comunicação no Brasil, ainda nos meses da campanha eleitoral, diversas entidades que lutam pela pauta estiveram em diálogo com a coordenação do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em setembro de 2022, Lula recebeu na cidade de Fortaleza as propostas da Fenaj para o futuro do jornalismo no país. O documento Oito Pautas Prioritárias das e dos Jornalistas Brasileiros elenca as principais demandas debatidas e aprovadas nos últimos congressos nacionais da entidade, além de propostas históricas da categoria, documentadas por meio do trabalho realizado pelos sindicatos de jornalistas de todo o Brasil.
As propostas se dispõem em grandes eixos de interesse da categoria, que tratam desde temas gerais da conjuntura nacional como de questões que envolvem a valorização do jornalismo e da atividade profissional. A Fenaj propõe ao governo eleito:
• A revogação das contrarreformas trabalhista e previdenciária;
• O apoio à aprovação da PEC do Diploma;
• A atualização da regulamentação profissional;
• A criação do Conselho Federal de Jornalistas;
• A criação do Piso Salarial Nacional dos Jornalistas;
• A criação do Fundo Nacional de Apoio e Fomento ao Jornalismo;
• A recuperação da EBC e a ampliação do Sistema Público de Comunicação;
• A regulação das comunicações e das plataformas digitais.
Também no mês de setembro, o FNDC, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Coalizão Direitos na Rede, a Frente Em Defesa da EBC, a Carta pela Soberania Digital, o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e a Agenda 227 realizaram uma atividade unificada e entregaram à coordenação do programa de Lula suas pautas prioritárias ao futuro da comunicação brasileira.
O SJSP também é filiado ao FNDC e integra a Frente Em Defesa da EBC. Entre as demandas dos documentos apresentados à equipe de Lula estão: uma nova lei geral de comunicações para o Brasil, maior participação social, garantia de redes abertas e neutras, universalização dos serviços essenciais, apoio à tecnologia nacional e fortalecimento do sistema público de comunicação. As entidades também reivindicam a imediata revogação da Lei 13.417/2017, que alterou a Lei 11.652/2008, de criação da Empresa Brasil de Comunicação; a revogação da Portaria 216/2019, publicada pelo presidente da EBC, que extingue a NBR e altera o caráter público da TV Brasil; e a separação dos canais públicos e governamentais, possibilitando que a comunicação pública tenha condições de garantir sua autonomia financeira, de gestão e conteúdo.
Mas se engana quem acredita que basta a eleição de um governo progressista para alcançarmos todos esses objetivos. “Precisamos fazer muita pressão política para colocar a agenda da comunicação como estratégica para a democracia e para a reconstrução do Brasil, sob pena de passarmos mais quatro anos sem enfrentar uma agenda mínima nessa área”, pontua Mielli. “A correlação de forças no novo governo será difícil. Vamos nos lembrar que a coalizão que garantiu a vitória de Lula é composta por uma frente ampla compostas por campos políticos que têm visões diferentes sobre muitas das agendas estruturantes para o país.” A jornalista acredita, entretanto, que precisamos enfrentar essa disputa, com argumentos, propostas e muita determinação. “Ou enfrentamos o debate da comunicação ou continuaremos à mercê de uma estrutura que alimenta o pensamento de extrema-direita, retrógrado e reacionário no país”, conclui.
Perspectivas para 2023
Dessas articulações realizadas ainda no período eleitoral, foi construída a carta Comunicação Democrática é Vital para Democracia — Uma Agenda para o Novo Governo Lula, assinada por quase 100 entidades, entre elas o SJSP, além de quase 300 jornalistas, pesquisadores e ativistas da área da comunicação. O documento salienta o caráter estratégico do debate de políticas de comunicação para o Brasil.
O texto é organizado em oito pontos principais:
• Garantia da diversidade e pluralidade comunicativas;
• Universalização do acesso à internet;
• Regulação das plataformas digitais;
• Fortalecimento das mídias alternativas (independentes, comunitárias, populares e periféricas);
• Enfrentamento à violência contra jornalistas e comunicadores;
• Recuperação da autonomia e do caráter público e fortalecimento da EBC;
• Estímulo à apropriação tecnológica e educação midiática e o desenvolvimento;
• Interlocução da comunicação com a pasta de ciência e tecnologia.
A Carta foi entregue ao GT Comunicações do Governo de Transição em 25 de novembro, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília (DF). Para Mielli, as prioridades para o próximo governo envolvem a urgência em se enfrentar a regulação de plataformas de redes sociais, que são hoje “o principal ambiente de circulação de desinformação e discurso de ódio. E não apenas isso: são nessas plataformas que se estruturam os movimentos golpistas e antidemocráticos e nelas circulam os conteúdos que questionam a higidez do nosso processo eleitoral, que questionam o resultado das eleições e que pedem intervenção militar, a volta da ditadura. Regular essas plataformas é uma tarefa urgente para defender a democracia”.
“Regular essas plataformas é uma tarefa urgente para defender a democracia”
Renata Mielli
A pesquisadora também ressalta a importância de se retomar a discussão de como desenvolver políticas para garantir a universalização da internet no Brasil, de qualidade e com preços acessíveis. “O acesso e uso da internet de qualidade é um direito fundamental, inclusive essencial para o exercício de outros direitos. É fundamental reconstruir um robusto campo público de comunicação, fortalecer a mídia alternativa, comunitária, e estabelecer mecanismos republicanos para regulação democrática dos meios de comunicação em consonância com os parâmetros estabelecidos na Constituição de 1988”.
Para Rita Freire, a EBC terá um papel central no projeto de comunicação pública brasileira no próximo período. “A EBC precisa ser um modelo, uma referência e uma fomentadora da produção de comunicação pública no país. Ela não pode ser superficial ou estar restrita ao eixo Rio-São Paulo. É preciso aprofundar essa conexão com a cultura regional, popular e periférica. A EBC precisa construir mecanismos para isso”, afirma. E isso passa necessariamente pela construção de um modelo robusto de comunicação pública no país. “O Brasil precisa inventar o seu modelo de comunicação pública”, considera Rita, reafirmando a importância da representatividade de toda a sociedade brasileira “que não é branca e nem de classe média: hoje, há um movimento forte para enegrecer a EBC, e nós esperamos que o governo preste atenção neste trabalho que está sendo feito pela sociedade civil”.
E será possível desenvolver uma BBC à brasileira, como disse o presidente Lula dias após a vitória eleitoral? Rita Freire concorda em parte. “Uma BBC no sentido de ser uma empresa de grande alcance e com sustentabilidade. A partir daí, ela tem de ser uma empresa brasileira e não importar o modelo de Londres, mas pegar o que é positivo nessa experiência e associar com o que é a demanda do Brasil”.
Beth Costa, no entanto, relembra que essa não é uma luta nova para quem defende o fortalecimento da comunicação pública no país. “O nosso movimento continua com as mesmas prioridades, já que a nossa pauta persiste, nós lutamos por ela desde a época da redemocratização do Brasil, quando dissemos que não pode haver democracia enquanto não houver democracia nas comunicações”. Mas a coordenadora-geral do FNDC está otimista: “Este governo abre a possibilidade de interlocução, nós temos certeza de que o movimento pela democratização da comunicação terá um lugar de fala neste governo para negociar as suas prioridades”.
“Não pode haver democracia no Brasil enquanto não houver democracia nas comunicações”
Beth Costa
Para Beth, dois pontos são centrais para melhorar a comunicação do país: regras e fomento. “Ter regra, ter fiscalização e ter fomento. Ter um ambiente de comunicação que permita a pluralidade e a diversidade de vozes que produzem a informação e o acesso livre às informações, a produção cultural e jornalística nas regiões. Para que as pessoas possam exercer o seu direito de escolha, se posicionar na vida política, pessoal e profissional da melhor maneira possível, munidos da melhor informação possível. Acho que esse é o objetivo macro de todo o movimento da comunicação”.
Compromisso com democratização da comunicação
Além de subscrever os documentos citados anteriormente, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo compõe frentes e fóruns comprometidos com a pauta da democratização dos meios de comunicação. Assim como iniciativas como a taxação das plataformas, defendida pela Fenaj e pela Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), a entidade acredita que é urgente a regulação dos meios eletrônicos e das plataformas digitais. Esta segunda luta transcende o território brasileiro.
As mudanças estruturais pelas quais a comunicação passa nos últimos anos e o seu caráter multissetorial trazem novos desafios aos movimentos que lutam por essa pauta, como a regulação dos serviços de streaming, por exemplo. Enquanto se encaram essas questões mais complexas, a luta pela livre circulação de informações e pela pluralidade, para que toda a sociedade possa se informar a partir de diferentes fontes de notícias, continuam a constituir a pedra fundamental para a melhoria da comunicação e o fortalecimento do jornalismo. O nosso Sindicato reafirma o seu compromisso com essa pauta e se junta ao coro de que sem a democratização da comunicação não é possível o exercício pleno da democracia no Brasil. Pela frente, muita esperança e muita luta. •