por Adrina Franco, Flavio Carrança e Priscilla Chandretti
A ausência de pretos e pardos nas redações brasileiras é uma realidade: em 2019, apenas 13% das vagas em empresas jornalísticas eram ocupadas por pessoas dessa cor, de acordo com o levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e divulgado na edição anterior (408) do Unidade. É a enorme desigualdade racial da sociedade brasileira que se reflete em nossa categoria. Para ajudar a entender melhor as causas dessa reduzida presença e, principalmente, da ausência de jornalistas afrodescendentes nas redações brasileiras, conversamos com três jornalistas negra(o)s que expõem seus pontos de vistas e, acima de tudo, relatam suas vivências tanto em redações da grande imprensa quanto em veículos alternativos.
A roda de conversa contou com a participação da jornalista carioca Camila Silva, do Nexo, que teve passagens pela GloboNews e Rede Globo; Thais Folego, codiretora da Revista AzMina, com passagens pelo Valor Econômico e Exame; e Ronaldo Matos, fundador do Desenrola e Não me Enrola, um coletivo e site jornalístico voltado para a cobertura da vida cultural nas periferias e favelas de São Paulo.
É urgente esse debate, e as ações que decorrem dele, no Sindicato dos Jornalistas de SP e na categoria, para além dos esforços já empreendidos pela nossa Comissão de Jornalistas Pela Igualdade Racial (Cojira-SP), da qual participam Camila e Thais. É um problema central, e já passou da hora de nossa entidade encará-lo como tal. Ronaldo vê, com essa discussão, uma mudança política, mas registra que nunca havia sido convidado a participar de nada do Sindicato. Ele avalia que “as transformações econômicas e políticas que a gente vem vivendo nos últimos anos demonstram a necessidade de que o Sindicato saia do centro e vá para a quebrada, porque essa provocação vai fazer com que esses espaços venham para dentro do sindicato de uma maneira mais organizada e mais política, promovendo trocas”.
FALTA PROGRAMADA: COM A NECESSIDADE DE UMA MUDANÇA ESTRUTURAL QUE, MUITAS VEZES, É ABORDADA SUPERFICIALMENTE, COMO ESTRATÉGIA DE MARKETING, IMPRENSA PRECISA ENCARAR O RACISMO DENTRO DAS PRÓPRIAS REDAÇÕES
A descoberta do tema
Durante os dez anos em que atuou como repórter no jornalismo financeiro, a única pessoa negra que Thais Folego entrevistou, ainda assim rapidamente, foi o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa. Ela conta que nesse período houve uma ausência de pessoas para entrevistar, fato que atribui à inexistência de porta-vozes negros, e que essa vivência solitária também existiu nas redações pelas quais passou. Lembra que na Faculdade Cásper Líbero, onde se formou, só havia mais uma pessoa negra em sua sala. Foi nessa época que começou a militar no movimento negro. Thais migrou, nos últimos dois anos, do jornalismo econômico para o terceiro setor. “Foi na faculdade que eu comecei a cruzar essa questão de raça com comunicação. Como a maior parte dos negros de pele clara no Brasil – sou filha de pai preto e mãe branca –, a gente se descobre negra ao longo da vida, aos pouquinhos, bem diferente de negros de pele mais escura. Foi na faculdade que comecei a ter essa relação maior com raça em um grupo na Cásper que se chamava Dandaras e fazia um programa de rádio sobre cultura negra.”
Apesar de ter a pele bem mais escura que a de Thais, Ronaldo Matos revela que até os 22 anos de idade não se sentia negro. Na faculdade, conheceu outra jornalista, Thais Siqueira (com quem se casaria), e juntos criaram, em 2013, o coletivo Desenrola e Não Me Enrola. Inicialmente apenas um site, se tornou um coletivo responsável pela criação e implementação do treinamento Você Repórter da Periferia, programa dedicado à capacitação para a prática do jornalismo de jovens, em grande parte negros e negras, de diferentes territórios das periferias de São Paulo e da Região Metropolitana da cidade, que já está na quinta edição.
Ele explica que seu interesse é desenvolver o jornalismo nas periferias e favelas do Brasil, compreendendo que a população desses territórios é representada na imprensa brasileira de uma forma desconectada do que ela é na realidade. “Já estava na universidade e não sabia todo o arcabouço de desigualdades raciais e espaciais que estavam conectados com a minha trajetória. E é quase que um crime você não ter essa dimensão. Quantos sujeitos periféricos e favelados no Brasil não têm essa dimensão do que é ser uma pessoa preta? Isso já é de fato um produto da imprensa brasileira e de todo um mercado da comunicação: você não ter uma dimensão do que é ser negro, do que é ser preta e moradora da quebrada. Então o nosso trabalho é sedimentado em desenvolver uma indústria do jornalismo que, minimamente, ofereça um conforto e reparação histórica para este contexto que nós vivemos.”
“AS EMPRESAS NÃO TÊM A CORAGEM E NÃO QUEREM GASTAR NEM ENERGIA, NEM DINHEIRO, NEM TEMPO PARA SAIR DA BOLHA.” Camila Silva
Única aluna negra da sua turma na PUC-Rio, Camila Silva lembra que durante cinco anos também não havia nenhuma outra pessoa negra na redação da GloboNews e que, quando veio para São Paulo, foi a primeira repórter negra de esporte da redação. Diz que não conseguiam colocar defeito no seu trabalho, mas que tinha de falar com pessoas específicas antes de entregar o material, porque não permitiam que o fizesse diretamente. “Comecei a perceber que isso estava em várias questões. Na GloboNews também. Quando vim para São Paulo, meu desejo era trabalhar com hard news e me disseram que não tinha espaço, sendo que mil pessoas foram contratadas depois de mim e efetivadas. Passaram por um espaço que eu poderia ter ficado e, pra mim, só tinha vaga para ser produtora ou para trabalhar com determinadas coisas, porque não tinha vaga fixa no vídeo. Eu cobria buracos. Só descobri essas nuances, só entendi a pressão que foi ser a única pessoa negra de uma grande redação, muito tempo depois que saí de lá. No Nexo, que é um jornal com chefias muito desconstruídas, encontram-se barreiras também. Esse programa Diversidades está atrasado [Programa Diversidade Racial na Comunicação 2021, lançado pelo Nexo no mês de março, com bolsas para estudantes de jornalismo negras e negros]. A gente entendeu que precisa fazer um trabalho para dentro da redação, porque as pessoas não estão preparadas e a redação ainda é branca. Então, em um lugar que é novo, tem um projeto que é focado em diversidade, não tem diversidade.”
Veículos independentes, grande imprensa e diversidade
O crescimento da chamada mídia independente ou alternativa como possibilidade de inserção profissional para jornalistas torna importante a reflexão sobre as características do impacto do racismo institucional nesses segmentos do mercado de trabalho. Thais Folego prefere tratar esses segmentos de forma separada, afirmando que são realidades muito diferentes. Ela fala do que define como um processo de aquilombamento dos poucos profissionais negros existentes nas grandes redações, processo não dito mas que faz com que as pautas relacionadas à temática racial sempre acabem em suas mãos: “Como existe uma falta de letramento racial de fato no Brasil, e como os brancos não se entendem como raça e identidade, não pensam na questão da branquitude e não estudam, isso fica como se fossem guetos e só o jornalista negro tem de cobrir a manifestação do George Floyd ou de qualquer outro negro que é assassinado todos os dias no Brasil.”
Ela notou ainda que, como a negra única dos espaços, quando explodiu a discussão mais ampla de raça no Brasil, passou a ser muito procurada por grandes redações, por pessoas que trabalham em veículos internacionais e agora abrem vagas procurando pessoas negras. “Se só tem pessoas brancas na redação, só vai continuar tendo. É um sistema que, de fato, já nos exclui, porque as pessoas brancas só conhecem pessoas brancas, que só fizeram faculdades com pessoas brancas, e fica nesse ciclo vicioso.”
Thais vê uma situação diferente nas mídias independentes, que segundo ela já nascem com a missão de ocupar um espaço não ocupado de fato pela grande mídia. Afirma que elas têm naturalmente uma diversidade maior, por serem criadas para preencher espaços ignorados pelos grandes veículos. “Um dos efeitos dessa reduzida presença (negra) na imprensa é, de fato, não enxergar, quando você abre o jornal ou liga a TV, pautas do seu dia a dia, do seu entorno, de quem você é e coisas que fazem parte da sua realidade, da sua história e das suas narrativas. Mas quando você olha (para a mídia independente) em termos de número de profissionais, financiamento e de estrutura há, obviamente, muito menos pessoas porque são mídias que ainda estão procurando como ser sustentáveis.”
Uma decorrência é a procura constante de financiamentos, quase sempre de curto prazo, o que dificulta muito a montagem de equipes. Além disso, hoje muitos profissionais dessa área acabam migrando para grandes empresas, as quais procuram jornalistas que têm o olhar para a diversidade. “Vira e mexe acabamos perdendo pessoal para a grande mídia, porque são justamente esses profissionais que vêm de uma perspectiva mais diversa. Hoje, 60% da equipe d’AzMina é negra, tem mulheres LGTB, então a gente já nasce com esse olhar mais diverso para outras pautas que, agora, a grande mídia começa a procurar mais, e vai pescar nesses outros lugares.”
Essa visão é confirmada por Camila Silva, que detecta uma preguiça das grandes empresas em investir na capacitação de profissionais para lidarem adequadamente com os temas relacionados a raça e diversidade em geral: “Tem um formato de jornalista que a Thais provavelmente forma n’AzMina, que as empresas vão lá para poder buscar. Mas não têm a coragem e não querem gastar nem energia, nem dinheiro nem tempo para sair da bolha e entender que existem outros tipos de formação e um outro olhar, que é muito rico, pode agregar para o jornal e para a grande mídia e não está dentro dos padrões do que se espera. Mas não são todas as empresas novas e independentes que estão surgindo já com um olhar para a diversidade.”
O próprio conceito de diversidade é colocado em questão por Ronaldo Matos, que afirma ser a reduzida presença de profissionais negros nos grandes veículos uma ausência programada, observando que existem programas de diversidade em redação focados em mulheres trans, homens trans, profissionais pretos, mas que trazem pessoas que reproduzem estereótipos. “Quando a gente fala da nossa solidão como profissionais pretos dentro de uma redação, ou de uma minoria de dois ou três, a gente está falando: quem é que chega nesse elevador? Gera-se marketing institucional, abre-se espaço para essas pessoas, mas elas sempre serão a minoria. Essa coisa de equiparar, da equidade, de 50/50, é um debate que ainda não existe, e é esse debate que a gente precisa fazer.”
Lembrando ser o Brasil o segundo pior país do mundo em mobilidade social, ele vê isso indicar que muitas gerações terão de passar para que os de baixo tenham ascensão. “Se a gente vai levar nove gerações, por que estamos discutindo diversidade e não equidade racial dentro das redações? Para mim, isso é algo urgente. Eu não vejo esse debate. Então, enquanto a gente ficar nisso da diversidade, também estaremos compactuando com estratégias de mercado: a empresa vai utilizar a diversidade para os negros continuarem sendo a minoria e continuarem tendo pouco espaço de voz.”
Ronaldo afirma que existem vários episódios exemplares, mas cita o do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, quando a pressão da internet fez a GloboNews, depois de um debate apenas com pessoas brancas, colocar na tela praticamente todos os seus jornalistas negros comentando as manifestações. “Ao mesmo tempo, a gente vê um foco muito grande em hard news e uma ausência de falar de questões estruturais. Então, é muito fácil colocar essa venda nos olhos e fazer um marketing. E a mídia, como tem essa estrutura, faz isso muito bem. Convence com o corpo, com o visual, e faz esse marketing com a informação, mas não rompe estruturalmente e não move a estrutura.”
Instigada pelas colocações de Ronaldo, Camila Silva lembra da celebração dos cem anos da Folha de S. Paulo, em que o tema da diversidade ganhou relevância, inclusive com o lançamento de um programa de estágios para negros e negras. Ela afirma que não há muito o que celebrar nem bater palmas, mas sim entender o quanto há ou não de publicidade na iniciativa, lembrando ainda que falar em mudança no jornalismo tem muito a ver com rever privilégios. “Às vezes, se promove uma questão para mostrar que está curando uma ferida que, na verdade, foi você quem provocou. Quando você propõe uma mudança para dentro de uma redação ou de qualquer lugar que tenha resistência, está repensando privilégio que o racismo fez estar naquela posição. As pessoas pensam sempre em criar um programa de estágio, um projeto de formação que seja para fora daqui e não pensam em contratar alguém que seja líder de fato, lá em cima.”
É Camila ainda quem alerta para a necessidade de, como jornalista, ter um olhar crítico para determinadas coisas que, segundo ela, são jogadas de marketing, feitas para apagar incêndio. E cita novamente o debate da GloboNews sobre o assassinato de George Floyd só com jornalistas negros, lembrando que foi um programa pautado a partir de um tweet que dizia: vocês estão falando da questão racial e só tem gente branca. “Aquilo virou um burburinho dentro de uma bolha específica. Foi uma pressão e puseram pessoas pretas para poder apresentar no último dia e, o pior, juntaram todas as pessoas pretas em um programa que só tem seis pessoas. Depois, aquilo vai para a rede e para o Globo Repórter e é celebrado porque o país inteiro não está no Twitter e naquela bolha que fez a pressão, então acha que foi uma iniciativa. E não é mais apagar o incêndio, é angariar uma imagem positiva que não se reflete dentro da redação. A gente tem que entender o que é iniciativa de fato. E, no caso da TV, colocar pessoas lá [no vídeo] acaba inibindo o debate de cobrar se estão fazendo alguma coisa. E tem que partir lá de dentro para dizer: não, lá dentro só tem gente branca e continua só tendo gente branca. Jornalista normalmente não coloca o dedo na própria ferida e tem essa dificuldade. Mas eu acho que a gente tem que ter esse olhar e entender o que é maquiagem. Entender o que é perene de fato e, a longo prazo, vai fazer diferença, e o que é publicidade.”
“POR QUE A GENTE ESTÁ DISCUTINDO
DIVERSIDADE E NÃO EQUIDADE RACIAL DENTRO DAS REDAÇÕES?” Ronaldo Matos
Universidade, diploma e processo seletivo
A falta de profissionais negra(o)s qualificada(o)s pelo ensino superior tem sido um motivo muito utilizado por empresas, inclusive de jornalismo, para justificar a reduzida presença de pessoas com esse perfil em seus quadros. Essa dificuldade de fato existiu, por conta do reduzido acesso de negros e negras ao ensino superior, mas vale lembrar que as primeiras turmas com cotistas das universidades federais já se formaram há cerca de 13 anos e as primeiras turmas do Prouni há cerca de 12, ou seja, há pelo menos uma década profissionais negros qualificados saem das salas de aula das universidades.
A participação de afrodescendentes no ensino superior pode ainda não ser a ideal, mas aumentou muito, o que torna totalmente injustificável a presença de mais de 70% de pessoas brancas nas redações do país. Camila Silva lembra de um dado – de cuja fonte não se recorda – de que cerca de 40% dos estudantes universitários são negros, mas a maior parte desse contingente não chega às redações. “Olhando historicamente, tinha essa coisa de que determinadas universidades não chegavam às redações, e as empresas priorizavam as grandes universidades. Acho que é mais uma questão de mentir mesmo, de pessoas dizerem que não acham profissionais: os negros estão nas universidades. E há a questão da territorialidade, sair do eixo Rio-São Paulo, porque a gente tem um Brasil inteiro estudando. Então, não saem do eixo Rio-São Paulo para olhar jornalistas, não saem do centro para olhar a periferia. É uma desculpa que não tem.”
Ronaldo acrescenta a predileção das redações por estudantes da USP, Mackenzie e PUC. “Quem fez essas universidades, ou outras de renome, é recebido com outra expectativa da sua perspectiva de rendimento, de compreensão de demandas do dia a dia, de rotina, de entrega. Há preconceito em relação às universidades que, no imaginário, são um pouco mais deficientes. Para mim, isso diz uma coisa muito simples: precisa haver transformação do processo de recrutamento e seleção desses jovens, e existem muitos caminhos para isso. Outra [necessidade] é a transformação da grade pedagógica. Se a gente não repensar isso, vai ver o futuro da profissão muito comprometido e elitizado, porque, historicamente, são as mesmas classes sociais que bancam as infraestruturas das empresas de comunicação. E se a gente quiser diversificar e ter equidade, vai ter que fazer esse investimento.”
Lembrando que a primeira faculdade de comunicação é de 1940, Thais Folego afirma que a formação universitária em jornalismo é bem recente no Brasil, e o jornalismo foi feito antes por pessoas que não tinham formação superior ou eram formadas em outras áreas. Aprenderam a profissão, de fato, como um ofício e começaram a fazer jornal. “Historicamente, havia mais negros e pardos na profissão, e há o corte justamente quando começa a se ‘profissionalizar’, no conceito eurocêntrico de profissionalização, com exigência de ensino superior. Se vê os negros saindo, e só tem as mesmas pessoas, que conseguiam acessar as universidades.”
Pesquisas
Uma necessidade fundamental para o combate ao racismo estrutural é a produção de informações que permitam conhecer a real situação de uma categoria profissional com relação a esse problema. Uma iniciativa importante que pode ser tomada nesse sentido por empresas e órgãos públicos é a inclusão do quesito raça/ cor em seus cadastros de trabalhadores. Outra possibilidade são levantamentos como aquele feito pelo Dieese, citado na abertura desta matéria, ou ainda o Perfil dos Jornalistas Brasileiros, realizado pelo Universidade Federal de Santa Catarina, que inclui a produção de informações sobre jornalistas negros. Dois de nossos entrevistados estão vinculados a projetos nesse âmbito.
Camila Silva coordena uma iniciativa nesse sentido, o Bafafá, pesquisa de caráter nacional realizada pela escola de jornalismo online Énóis, em parceria com o Google News e com apoio do Insper, para mapear a diversidade nas redações jornalísticas e entender o ambiente e o espaço para profissionais não brancos. O projeto foi vencedor do desafio no Hackathon de Diversidade no Jornalismo, realizado pela Énois, em março de 2020, e que tinha como objetivo criar soluções para a falta de representatividade, diversidade e inclusão no jornalismo. Fundado em 2009, Énois se define como um laboratório que trabalha para impulsionar a diversidade e a representatividade no jornalismo. Seu site informa que, em cursos presenciais, mais de 500 jovens da periferia já se formaram em jornalismo e mais de 4 mil estudantes passaram pela escola de jornalismo online.
“UM DOS EFEITOS É NÃO ENXERGAR
PAUTAS QUE FAZEM PARTE DA SUA REALIDADE, SUA HISTÓRIA E SUAS NARRATIVAS” Thais Folego
A Rede de Jornalistas da Periferia é uma articulação que reúne diversos veículos de comunicação e tem como objetivo disseminar informação produzida pelas periferias para as periferias. Em fevereiro de 2017, no lançamento da rede, faziam parte dela os coletivos Nós, Mulheres da Periferia, Desenrola E Não Me Enrola, DoLadoDeCá, Historiorama: Conteúdo & Experiência, Mural – Agência de Jornalismo das Periferias, Periferia em Movimento, DiCampana, Imargem e Alma Preta.
Foi dessa articulação que surgiu a inciativa de realização, em 2019, da pesquisa Fórum Comunicação e Territórios em Números (www.comunicacaoeterritorios.org/), que mapeou 97 iniciativas de comunicação nas periferias da cidade de São Paulo e foi coordenada por Ronaldo. “Olhando para o jornalismo e para as diversas linguagens que vão se transformando com a chegada da internet nas periferias e favelas de São Paulo, decidimos que precisamos identificar os veículos, os jornalistas e comunicadores que estão nas periferias e favelas, quando começaram a trabalhar, por que pararam de trabalhar, por que decidiram criar suas próprias iniciativas, quais as principais dificuldades e as principais potências, o que almejam de futuro e como a política pública poderia impactar o seu trabalho.”
Ronaldo destaca alguns dados desse levantamento que considera mais interessantes: 80% dos entrevistados não tinham a sua iniciativa de comunicação como principal fonte de renda, ou seja, a pessoa trabalhava no seu veículo e tinha outros trabalhos para completar a renda no final do mês e pagar os boletos. Conta ainda que uma pessoa entrevistada disse que desenvolveu o seu projeto de jornalismo em determinado bairro de São Paulo porque não conseguiu espaço no mercado de trabalho. “Um dado comum é que há uma gama muito grande de pessoas tentando entrar nessa área de comunicação, mas, por questões financeiras, de estrutura familiar e de diversas desigualdades sociais e raciais, não conseguem continuar no setor.”
E coloca um dado qualitativo: o mercado de trabalho não está preparado para a entrada e a aceitação de profissionais pretos e periféricos, porque são pessoas que chegam nesse espaço com uma série de dores, e querem utilizar suas pautas nas editorias para debater com a sociedade essas dores, compartilhadas com milhões de outras pessoas. “Outra coisa que a gente percebeu é que 80% do conteúdo dessa galera é autoral. Ou seja, isso quer dizer que não tem uma replicação de material que saiu numa agência X ou Y. Tem investimento em apuração, investigação, angulação, reunião de pauta.”
ISABELA DOS SANTOS
Pretos em Pauta
Idealizado e realizado pela jovem (23 anos) jornalista Isabela dos Santos, o projeto Pretos em Pauta consistiu em uma série de lives nas quais jornalistas negra(o)s, a maioria da Baixada Santista, falaram sobre imprensa negra, questões de representatividade e da falta de negras e negros nas redações. Nascida em Santos, formada pela Universidade Paulista (UNIP), integrante da Cojira-SP e trabalhando atualmente em assessoria de imprensa, Isabela diz que desde o tempo da faculdade já se interessava pela questão racial, como atesta o tema de seu TCC, um minidocumentário denominado Por que a pessoa parda não se reconhece como negra no Brasil?
O projeto consistiu em oito lives veiculadas na página do Instagram da jornalista (@isa.jornalista). Na primeira, entrevistou duas colegas que fizeram um TCC sobre a falta de diversidade nas redações da Baixada Santista; em outra, chamou dois estudantes negros de jornalismo, “porque a sala de aula de jornalismo ainda é muito branca também”; e conversou com uma jornalista branca, editora-chefe em uma TV, para falar sobre a importância de os jornalistas brancos reconhecerem a relevância dessa questão; entre outros convidados, chamou ainda Oswaldo Faustino (um dos fundadores da Cojira-SP), que falou sobre imprensa negra.
Isabela diz que divulgou o projeto em 2 de julho de 2020, quando a questão do assassinato de George Floyd, com as mobilizações do Black Lives Matter, estava em plena ebulição, e lembra que nesse mesmo período ocorreu o episódio da GloboNews, em que jornalistas brancos foram substituídos por jornalistas negros para falar de racismo, o que, segundo ela, deixou as pessoas muito antenadas sobre como o jornalismo trata desse assunto e também a respeito da falta de jornalistas negros na mídia. “Quando soltei (a primeira live), não tinha muitos seguidores – não que tenha – mas vi que pessoas começaram a me seguir por terem assistido às lives, as lives, principalmente as da região, porque realmente é um assunto pouco falado.”
Isabela avalia o resultado do projeto como bem positivo. “O pessoal acompanhou bastante e também consegui ver que gosto muito desse assunto. Gostaria de procurar mais, porque, com as lives, a gente pode escutar mais velhas e pessoas da minha idade falando sobre a falta de diversidade. Vi o público querendo saber mais sobre o assunto. Por isso, vou voltar com o projeto lá para maio, vou trazer lives, mas não tantas. Vou trazer mais conteúdo para Instagram por meio, por exemplo, de posts, vídeos e stories, dar uma dinamizada no projeto para fazê-lo crescer.”