Vencedor do 42º Prêmio Vladimir Herzog, o jornalista Tiago Rogero resgata a história de personalidades negras no Brasil em podcasts
por Thiago Tanji
Você já ouviu falar de Ingrid Silva? Pois deveria. Nascida no Rio de Janeiro, iniciou os estudos no balé aos 8 anos de idade no projeto Dançando para não dançar, que atende centenas de crianças que vivem em comunidades cariocas. Em 2007, recebeu uma bolsa para a Dance Theatre of Harlem School, da cidade de Nova York. Hoje, aos 30 anos, ela é a primeira-bailarina da companhia norte-americana e um dos principais nomes da dança contemporânea mundial.
Mulher negra, Ingrid Silva seguiu os passos de outros nomes que ajudaram a construir o balé brasileiro, como Mercedes Baptista, Bethania Gomes e Consuelo Rios. Todas elas bailarinas negras e que ainda são pouco conhecidas fora dos círculos acadêmicos e artísticos.
Para resgatar essa e outras histórias de personalidades negras do Brasil, o jornalista Tiago Rogero criou o podcast Negra Voz, publicado em 2019 nas plataformas de áudio do jornal O Globo e que foi o vencedor da 42ª edição do Prêmio Vladimir Herzog — o episódio que apresenta a trajetória das quatro bailarinas foi escolhido como a melhor produção jornalística em áudio.
Nascido na cidade de Belo Horizonte, Rogero passou por veículos como BandNews FM e Estadão antes de ser convidado a integrar a equipe de reportagem da coluna de Ancelmo Gois, em O Globo, precisando conciliar a rotina diária com o trabalho de apuração e edição do Negra Voz.
Agora, aos 32 anos, o jornalista decidiu se dedicar integralmente à produção de conteúdos em áudio. Em novembro, ele iniciou uma parceria com o Spotify, lançando o podcast original Vidas Negras, que semanalmente resgata a história de negras e negros que ajudaram a construir a sociedade brasileira. “Por ser muito pouco diverso, o jornalismo brasileiro falha em compreender a nossa sociedade do ponto de vista racial”, afirma Rogero, que é sindicalizado no Rio de Janeiro. “A gente vive em um país que teve mais de 300 anos de escravidão, então a questão racial perpassa todas as questões do Brasil.” Confira a seguir a entrevista com o jornalista, que conta o processo de criação de seu trabalho e compartilha dicas com quem está interessado em produzir podcasts.
Como foi a ideia de criar o podcast Negra Voz?
Isso partiu da experiência de ser um brasileiro, homem, negro, de pele mais clara. A experiência de ser um negro de pele clara traz certos privilégios, é bom lembrar. E um desses privilégios em que o racismo não é tão jogado na sua cara como se você fosse uma pessoa negra de pele retinta. Então isso possibilita que pessoas negras de pele mais clara passem mais tempo sem “descobrir” a sua negritude. Claro que quando a gente toma certa consciência racial, revisitando momentos anteriores da vida, conseguimos enxergar momentos que o racismo se fez presente. Mas essa noção foi se desenvolver de forma mais profunda no Rio de Janeiro, por contato com amizades e com os movimentos negros. A partir disso, passei a consumir literatura negra: uma das minhas autoras prediletas é a Conceição Evaristo, que é de Belo Horizonte, mas, quando eu morava lá, não a conhecia. Nesse processo de descoberta ou redescoberta, em 2018, estava em um evento assistindo a Conceição Evaristo quando ela falou uma frase que foi uma espécie de catarse: que se ensina a Revolução Farroupilha nas escolas, mas não a Revolta dos Malês [uma grande rebelião de escravos que ocorreu na Bahia em 1835]. Fiquei pensando sobre o quanto pouco sabia sobre a rebelião malê, como também não sabia de muitas outras coisas.
Daí veio a inspiração…
Tem um episódio do Negra Voz de que gosto muito e conta a história da primeira mulher do Brasil a se tonar chef profissional de cozinha, a Benê Ricardo: uma mulher negra na década de 1980 formada em uma turma composta apenas por homens, a maioria de homens brancos. É uma história incrível, mas é difícil achar registros sobre isso. Aprendemos muito pouco sobre Maria Firmina dos Reis, que escreveu um romance em 1859, um romance incrível e supercomplexo, e não se fala sobre ela. Ou sobre Luiz Gama, um homem de conhecimento incrível, com uma produção incrível, que felizmente está sendo recuperada, mas sobre o qual eu não aprendi na escola. Ou sobre os inúmeros movimentos de insurgência: entender que os quilombos existiam pelo Brasil inteiro, e que não eram restritos a Zumbi e a Palmares.
E agora como está o projeto Vidas Negras, no Spotify?
É um projeto diferente, embora a inspiração seja parecida com a do Negra Voz, que é a de desvelar essa história que foi omitida. Mas agora estamos com um foco grande no entrelaço de trajetórias: temos a possibilidade de trabalhar com uma equipe por causa dessa parceria, uma equipe majoritariamente negra, que traz uma grandiosidade de olhares, porque pessoas negras são diversas, e uma equipa majoritariamente feminina. Nesta primeira temporada serão 15 episódios, em uma tentativa de dar luz a essas histórias pouco ou quase nunca contadas.
Quais seriam as dicas para quem está interessado em começar um podcast?
Sempre gostei muito de rádio, comecei a ouvir podcasts e recebi uma mensagem de um curso online gratuito do Knight Center For Journalism que era sobre podcasts. Basicamente, todo o conhecimento técnico que precisei para fazer o Negra Voz aprendi nesse curso: editar, produzir, publicar, divulgar. E ele continua disponível online e gratuito (acesse aqui: https://bit.ly/36mK6rx). Outra dica, um pouco óbvia: é importante escutar podcasts nos formatos mais variados, para que você possa imaginar um formato que faça sentido para você, para a história que está querendo contar. Faço oficinas de podcasts em ONGs e para comunidades e uma coisa que sempre falo é que, mesmo se você já tiver a ideia do podcast, uma coisa importantíssima antes de lançá-lo é fazer o piloto, para ter ideia se aquilo se encaixará na sua rotina, se você quer mesmo fazer aquilo. Vai dar trabalho, mas faça o piloto.
Como jornalista negro, como percebe o impacto da representatividade na imprensa?
Houve avanços em termos de diversidade nas redações, mas ainda é muito pouco, o número de repórteres negros nas redações onde trabalhei ainda é muito pequeno e principalmente o número de jornalistas negros em cargos de chefia é ínfimo. E enquanto não houver um número maior, o que vai continuar acontecendo são reportagens racistas, profundamente equivocadas sobre questões raciais. Lembrando que o racismo não é um problema dos negros, mas de toda a sociedade. Mais da metade da população brasileira é negra e não chegamos nem próximos desse índice nas redações, e definitivamente não se chega a isso em cargos de chefia. A tomada de decisões ainda é quase que totalmente branca.
E como o jornalismo brasileiro pode melhorar nesse sentido?
O jornalismo tem que compreender a sociedade na qual está inserido. Se não faz isso, não está fazendo o jornalismo básico. E, por ser muito pouco diverso, o jornalismo brasileiro falha em compreender a nossa sociedade do ponto de vista racial. A gente vive em um país que teve mais de 300 anos de escravidão, então a questão racial perpassa todas as questões do Brasil, da existência do brasileiro. É muito ruim que esse olhar não faça parte do dia a dia das redações, porque a raça tem que estar presente nas matérias de economia, música, esporte. O olhar tem de estar atento para perceber quando o elemento racial é determinante. ■
Diversidade em som, vídeo e texto
Confira projetos criados por jornalistas negros
Alma Preta Jornalismo
https://almapreta.com/
Mundo Negro
https://mundonegro.inf.br/
Notícia Preta
https://noticiapreta.com.br/
História Preta
https://www.b9.com.br/shows/historiapreta/
Negro da Semana
https://spoti.fi/32v3C45
Negra Voz
https://tiagorogero.com/negra-voz/
Vidas Negras
https://spoti.fi/2IgulKy