Prêmio Vladimir Herzog 2020: Vozes negras importam

Vencedor do 42º Prêmio Vladimir Herzog, o jornalista Tiago Rogero resgata a história de personalidades negras no Brasil em podcasts

por Thiago Tanji

Rogero: “País teve mais de 300 anos de escravidão, então a questão racial perpassa todas as questões do Brasil, da existência do brasileiro”. Foto: arquivo pessoal

Você já ouviu falar de Ingrid Silva? Pois deveria. Nascida no Rio de Janeiro, iniciou os estudos no balé aos 8 anos de idade no projeto Dançando para não dançar, que atende centenas de crianças que vivem em comunidades cariocas. Em 2007, recebeu uma bolsa para a Dance Theatre of Harlem School, da cidade de Nova York. Hoje, aos 30 anos, ela é a primeira-bailarina da companhia norte-americana e um dos principais nomes da dança contemporânea mundial.

Mulher negra, Ingrid Silva seguiu os passos de outros nomes que ajudaram a construir o balé brasileiro, como Mercedes Baptista, Bethania Gomes e Consuelo Rios. Todas elas bailarinas negras e que ainda são pouco conhecidas fora dos círculos acadêmicos e artísticos.

Para resgatar essa e outras histórias de personalidades negras do Brasil, o jornalista Tiago Rogero criou o podcast Negra Voz, publicado em 2019 nas plataformas de áudio do jornal O Globo e que foi o vencedor da 42ª edição do Prêmio Vladimir Herzog — o episódio que apresenta a trajetória das quatro bailarinas foi escolhido como a melhor produção jornalística em áudio.

Nascido na cidade de Belo Horizonte, Rogero passou por veículos como BandNews FM e Estadão antes de ser convidado a integrar a equipe de reportagem da coluna de Ancelmo Gois, em O Globo, precisando conciliar a rotina diária com o trabalho de apuração e edição do Negra Voz.

Agora, aos 32 anos, o jornalista decidiu se dedicar integralmente à produção de conteúdos em áudio. Em novembro, ele iniciou uma parceria com o Spotify, lançando o podcast original Vidas Negras, que semanalmente resgata a história de negras e negros que ajudaram a construir a sociedade brasileira. “Por ser muito pouco diverso, o jornalismo brasileiro falha em compreender a nossa sociedade do ponto de vista racial”, afirma Rogero, que é sindicalizado no Rio de Janeiro. “A gente vive em um país que teve mais de 300 anos de escravidão, então a questão racial perpassa todas as questões do Brasil.” Confira a seguir a entrevista com o jornalista, que conta o processo de criação de seu trabalho e compartilha dicas com quem está interessado em produzir podcasts.

Como foi a ideia de criar o podcast Negra Voz?
Isso partiu da experiência de ser um brasileiro, homem, negro, de pele mais clara. A experiência de ser um negro de pele clara traz certos privilégios, é bom lembrar. E um desses privilégios em que o racismo não é tão jogado na sua cara como se você fosse uma pessoa negra de pele retinta. Então isso possibilita que pessoas negras de pele mais clara passem mais tempo sem “descobrir” a sua negritude. Claro que quando a gente toma certa consciência racial, revisitando momentos anteriores da vida, conseguimos enxergar momentos que o racismo se fez presente. Mas essa noção foi se desenvolver de forma mais profunda no Rio de Janeiro, por contato com amizades e com os movimentos negros. A partir disso, passei a consumir literatura negra: uma das minhas autoras prediletas é a Conceição Evaristo, que é de Belo Horizonte, mas, quando eu morava lá, não a conhecia. Nesse processo de descoberta ou redescoberta, em 2018, estava em um evento assistindo a Conceição Evaristo quando ela falou uma frase que foi uma espécie de catarse: que se ensina a Revolução Farroupilha nas escolas, mas não a Revolta dos Malês [uma grande rebelião de escravos que ocorreu na Bahia em 1835]. Fiquei pensando sobre o quanto pouco sabia sobre a rebelião malê, como também não sabia de muitas outras coisas.

Daí veio a inspiração…
Tem um episódio do Negra Voz de que gosto muito e conta a história da primeira mulher do Brasil a se tonar chef profissional de cozinha, a Benê Ricardo: uma mulher negra na década de 1980 formada em uma turma composta apenas por homens, a maioria de homens brancos. É uma história incrível, mas é difícil achar registros sobre isso. Aprendemos muito pouco sobre Maria Firmina dos Reis, que escreveu um romance em 1859, um romance incrível e supercomplexo, e não se fala sobre ela. Ou sobre Luiz Gama, um homem de conhecimento incrível, com uma produção incrível, que felizmente está sendo recuperada, mas sobre o qual eu não aprendi na escola. Ou sobre os inúmeros movimentos de insurgência: entender que os quilombos existiam pelo Brasil inteiro, e que não eram restritos a Zumbi e a Palmares.

E agora como está o projeto Vidas Negras, no Spotify?
É um projeto diferente, embora a inspiração seja parecida com a do Negra Voz, que é a de desvelar essa história que foi omitida. Mas agora estamos com um foco grande no entrelaço de trajetórias: temos a possibilidade de trabalhar com uma equipe por causa dessa parceria, uma equipe majoritariamente negra, que traz uma grandiosidade de olhares, porque pessoas negras são diversas, e uma equipa majoritariamente feminina. Nesta primeira temporada serão 15 episódios, em uma tentativa de dar luz a essas histórias pouco ou quase nunca contadas.

Quais seriam as dicas para quem está interessado em começar um podcast?
Sempre gostei muito de rádio, comecei a ouvir podcasts e recebi uma mensagem de um curso online gratuito do Knight Center For Journalism que era sobre podcasts. Basicamente, todo o conhecimento técnico que precisei para fazer o Negra Voz aprendi nesse curso: editar, produzir, publicar, divulgar. E ele continua disponível online e gratuito (acesse aqui: https://bit.ly/36mK6rx). Outra dica, um pouco óbvia: é importante escutar podcasts nos formatos mais variados, para que você possa imaginar um formato que faça sentido para você, para a história que está querendo contar. Faço oficinas de podcasts em ONGs e para comunidades e uma coisa que sempre falo é que, mesmo se você já tiver a ideia do podcast, uma coisa importantíssima antes de lançá-lo é fazer o piloto, para ter ideia se aquilo se encaixará na sua rotina, se você quer mesmo fazer aquilo. Vai dar trabalho, mas faça o piloto.

Como jornalista negro, como percebe o impacto da representatividade na imprensa?
Houve avanços em termos de diversidade nas redações, mas ainda é muito pouco, o número de repórteres negros nas redações onde trabalhei ainda é muito pequeno e principalmente o número de jornalistas negros em cargos de chefia é ínfimo. E enquanto não houver um número maior, o que vai continuar acontecendo são reportagens racistas, profundamente equivocadas sobre questões raciais. Lembrando que o racismo não é um problema dos negros, mas de toda a sociedade. Mais da metade da população brasileira é negra e não chegamos nem próximos desse índice nas redações, e definitivamente não se chega a isso em cargos de chefia. A tomada de decisões ainda é quase que totalmente branca.

E como o jornalismo brasileiro pode melhorar nesse sentido?
O jornalismo tem que compreender a sociedade na qual está inserido. Se não faz isso, não está fazendo o jornalismo básico. E, por ser muito pouco diverso, o jornalismo brasileiro falha em compreender a nossa sociedade do ponto de vista racial. A gente vive em um país que teve mais de 300 anos de escravidão, então a questão racial perpassa todas as questões do Brasil, da existência do brasileiro. É muito ruim que esse olhar não faça parte do dia a dia das redações, porque a raça tem que estar presente nas matérias de economia, música, esporte. O olhar tem de estar atento para perceber quando o elemento racial é determinante. ■


Diversidade em som, vídeo e texto

Confira projetos criados por jornalistas negros

Alma Preta Jornalismo
https://almapreta.com/

Mundo Negro
https://mundonegro.inf.br/

Notícia Preta
https://noticiapreta.com.br/

História Preta
https://www.b9.com.br/shows/historiapreta/

Negro da Semana
https://spoti.fi/32v3C45

Negra Voz
https://tiagorogero.com/negra-voz/

Vidas Negras
https://spoti.fi/2IgulKy