Por trás dos números, vidas!

Relatório da Fenaj aponta quase cem mortes de jornalistas por covid-19 até janeiro, com tendência de alta

por Norian Segatto*

Da esquerda para direita, de cima para baixo: Orlando Duarte, José Paulo de Andrade, Joaquim Junior, Letícia Fava, Marcello Bitencourt e Zildetti Montiel estão entre os colegas que perdemos para uma doença que se disseminou incentivada pela necropolítica negacionista do governo federal

Passava um pouco do horário do almoço daquela sexta-feira quando ansiedade e angústia ce­deram lugar ao desespero. Às 14 horas do dia 19 de junho de 2020, Laura Neworal Fava recebia a notícia de que sua filha, a jornalista Letícia Fava, de 28 anos, havia falecido por covid-19, pouco menos de dois meses após ter sido diagnosticada com a doença. “Não há como compreender essa fatalidade a não ser imaginar que esse era o destino e a missão dela”, diz Laura, sem esconder a emoção ao falar da filha, vítima precoce de uma pandemia que ceifa milhares de vidas, entre elas centenas de profissio­nais de imprensa.

Pesquisa realizada pelo Departamen­to de Saúde da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) revelou que, desde o início da pandemia no Brasil até o final de janeiro de 2021, pelo menos 93 jornalistas (da ativa e aposentados) perderam a vida depois de contrair a doença. Após essa data, outros colegas se foram.

Os dados podem não refletir a realidade das mortes na categoria, pois não existe um mecanismo oficial de registro dos ca­sos. A pesquisa foi realizada por meio de buscas em jornais e blogs de todo o país, informações coletadas com os sindicatos de jornalistas de cada estado e relatos vindos diretamente de amigos e parentes das vítimas.

ÀS MILHARES DE VÍTIMAS DA PANDEMIA, AOS PROFISSIONAIS DE IMPRENSA QUE ARRISCAM DIARIAMENTE A VIDA, AOS FAMILIARES QUE SOFRERAM PERDAS IRREPARÁVEIS, NOSSA SOLIDARIEDADE

Segundo o relatório da Fenaj, São Pau­lo é o estado com maior número abso­luto de casos, mas chama a atenção a incidência no Amazonas, que, com uma população dez vezes menor (4,2 milhões em AM ante 44,6 milhões em SP), regis­trou, no período, o mesmo número de mortes, 14, com tendência de aceleração a partir do início deste ano. O número de mortes em janeiro é maior do que a somatória dos três primeiros meses da série, indica o relatório.

Tô meio gripado

Se o gigantismo desses números choca, eles ganham contornos de tragédia quando se desnudam por trás deles nomes, rostos e vidas perdidas. Assim foi com Marcello Bitencourt, com José Paulo de Andrade, Joaquim Junior, Zildetti Montiel, Orlan­do Duarte, Vanusa Torchi, Letícia Fava e tantos outros.

Foi assim também com Fernando San­doval, de 78 anos, que nos deixou em 1° de maio. Ex-atleta olímpico, ganhador de uma medalha de prata em natação no Pan-Americano de Winnipeg, no Canadá, aos 25 anos, Sandoval se tornou jorna­lista com uma brilhante carreira. Nunca atrasou uma mensalidade em 37 anos de filiação ao Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (SJSP)

Aos 88 anos, o experiente jornalista Or­lando Duarte sofria de várias comorbida­des, dois aneurismas no coração, desvio de aorta e Alzheimer, segundo conta Concei­ção Duarte, com quem esteve casado por quase 40 anos. Ao falecer, três dias antes de completar 89 anos, o eclético jornalista esportivo estava com 49 quilos e bastante debilitado. “No atestado de óbito, a causa da morte está como covid-19, mas pelo estado de saúde dele não posso afirmar se ele morreu ‘de’ covid ou ‘com covid’”, afirma Conceição.

Se Orlando Duarte já apresentava um quadro de saúde grave ao contrair a doença, o mesmo não se pode dizer de Joaquim Junior, de 38 anos, jornalista proprietá­rio da Folha Regional, de Ribeirão Branco (SP). “A morte dele foi um choque, ele tinha acabado de ganhar um processo contra a Câmara de Vereadores, estávamos come­morando e discutindo como o jornal iria cobrir as eleições. Ele se queixou: pô, tô meio gripado. Dias depois liguei para ele e fui informado de que havia sido internado, no dia seguinte foi intubado e faleceu na sequência, tudo muito rápido”, conta Ri­cardo Alcântara, que lembra com carinho do amigo e primeiro chefe. “Ele não tinha nenhuma doença, andava sempre de bici­cleta, era um cara saudável, a morte dele pegou todo mundo de surpresa, houve uma carreata na cidade em sua homenagem”, conta o amigo. Joaquim Junior deixou mu­lher, uma filha adolescente e um menino.

O caso de Letícia Fava mostra que o vírus não afeta apenas idosos. Aos 28 anos, Letí­cia trabalhava havia quatro na Universida­de do Futebol, em Jundiaí, como analista de mídias digitais. Era mulher de perso­nalidade forte, exigente consigo mesma e com os colegas, características destacadas tanto por sua mãe, Laura, como por João Paulo Medina, idealizador e presidente da Universidade. “Como trabalhamos muito com EAD, sempre houve bastante trabalho remoto, o que se acentuou na pandemia, mas a Letícia fazia questão de ir algumas vezes por semana ao escritório para cuidar das coisas, era uma pessoa muito dedicada ao trabalho, foi um enorme baque para nós a notícia de sua morte”, afirma Medina.

“Meu marido, minha filha mais nova e a Letícia contraíram covid. Meu marido fez a quarentena de 14 dias; na menor, a doença foi leve, mas na Letícia a febre não passava. Com os exames descobriu-se que estava com fibrose pulmonar como consequência da covid. Ela ficou 25 dias internada na UTI, nos falávamos todos os dias. Na véspera da morte, os rins pararam de funcionar. Era uma moça cheia de vida, de planos e viveu intensamente sua breve passagem”, lamenta Laura.

Necropolítica

O Brasil representa pouco mais de 2% da população mundial e responde por mais de 10% dos óbitos. Se o número salta aos olhos, perceber que em menos de dois meses somaram-se mais de 50 mil mor­tes é estarrecedor. No fechamento desta edição, o Brasil registrava quase 280 mil óbitos por covid-19.

A maior responsável pela posição do Bra­sil como o segundo país em que a pandemia mais mata é a necropolítica negacionista do governo Bolsonaro, mas empresas de comunicação também têm sua parcela ao expor trabalhadores a condições não seguras.

O presidente do SJSP, Paulo Zocchi, informa que “em 16 de março de 2020, o Sindicato encaminhou para as empresas o primeiro documento com medidas para serem adotadas em todas as redações vi­sando preservar a saúde da categoria fren­te à pandemia. Em um primeiro momento, algumas empresas se negaram a discutir esses protocolos. Em alguns casos, como na Record e na CNN, o Sindicato encami­nhou denúncia ao Ministério Público”.

Enquanto o governo genocida patrocina a morte e age com descaso pela vida, cabe a cada um, junto com sua entidade de classe, zelar por sua saúde e segurança e a de seus colegas. Às milhares de vítimas da pande­mia, aos profissionais de imprensa que ar­riscam diariamente a vida (e os que ficaram pelo caminho), aos familiares que sofreram perdas irreparáveis, nossa solidariedade e alerta: enquanto esse governo perdurar, não haverá eficaz combate à pandemia.

Norian Segatto é jornalista, membro do Conselho Fiscal do SJSP e diretor do Departamento de Saúde da Fenaj