por Camila Silva e Thais Folego Gama
Um provérbio africano diz que “quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens”. Ele evoca, entre outras interpretações, que uma história individual se confunde com a memória coletiva tanto do pre- sente quanto do passado. Foi o que se viu na noite de premiação da primeira edição dos +Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira, organizado pelo site Jornalistas&Cia.
Os 50 jornalistas premiados tiveram seus caminhos pavimentados pelos que vieram antes, ali representados por dois importantes decanos do jornalismo: Flavio Carrança e Rosane Borges, homenageados na premiação com o Troféu Luiz Gama pelas suas trajetórias de décadas de luta pela equi- dade racial dentro e fora das redações e das universidades.
“Esse prêmio não é só meu, ele é das vozes que nos antecedem. Das mulheres negras silenciadas. Esse prêmio é do nosso presente”, disse Rosane no discurso de agradecimento no evento de entrega do prêmio, em novembro de 2023. “Não é sobre histórias individuais de superação. Novembro é negro porque vários de nós decidiram resistir, não morrer.”
Rosane Borges é jornalista, pós-doutorada em ciências da comunicação, professora colaboradora do grupo de pesquisa Estética e Vanguarda (ECA-USP), integrante do grupo de pesquisa Teorias e práticas feministas (Unicamp/USP), conselheira de honra do grupo Reinventando a educação. Autora de diversos livros, entre eles: Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro” (2004), Mídia e racismo (2012) e Esboços de um tempo presente (2016).
Rosane e Flavio são cofundadores, juntamente com outros jornalistas negros, da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial de São Paulo (Cojira-SP), órgão consultivo do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo. Fundado em 2001, ele serviu de inspiração para a criação de outros órgãos semelhantes pelo país. “Essas comissões foram ferramentas importantes para expandir a discussão sobre o impacto da questão racial no jornalismo e entre jornalistas. As Cojiras foram pioneiras nesse sentido”, conta Flavio.
Flavio é jornalista há mais de 40 anos, com passagem por diversas redações de rádio e TV, jornais e revistas, revisor, integrou a diretoria do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo, onde coorde- nou a Cojira-SP por anos. É co-autor dos livros Espelho Infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004), junto com Rosane Borges, e Diversidade nas Empresas & Equidade Racial (2017), com Cida Bento.
A tarefa de debater raça dentro do jornalismo não foi (e ainda hoje não é) fácil. Foi preciso incluir a temática racial na comunicação e no debate público diante de um contexto social e do campo bastante árido. O mito da igualdade racial se reflete no jornalismo, tanto nos estereótipos negativos associados à população negra como na invisibilidade desta nas pautas jornalísticas e nas redações midiáticas.
Há, ainda, quem negue que o problema sequer exista, o que torna o combate ao problema ainda mais difícil. Exemplo disso é o livro “Não somos racistas”, publicado em 2006 por Ali Kamel, à época diretor de jornalismo da Globo, maior emissora de televisão do país. “Desde que surgiu, o jornalismo é uma forma minimalista de ler e dizer o mundo, tem um papel primordial de qualificar o debate público, porque forma a opinião pública”, afirma Rosane em entrevista ao Unidade.
Troféu Luiz Gama
A luta por representatividade negra no fazer e no reportar no jornalismo é antiga e o nome que leva a premiação concedida a Flavio e Rosane se refere a um de seus maiores ícones. O abolicionista e também advogado Luiz Gama é personagem central da história da imprensa no Brasil e inscreveu seu nome entre os pioneiros da comunicação.
“Dar um prêmio com o nome de Luiz Gama é sinalizar que, de fato, a gente precisa primeiro recolher aquilo que a empresa colonial tentou soterrar, tentou invisibilizar, tentou esquecer e trazer pra superfície. O segundo é a gente dizer que não pactuamos com o jornalismo racista, um jornalismo que subscreve o racismo”, diz Rosane.
Gama foi fundador do primeiro jornal ilustrado da cidade de São Paulo, chamado Diabo Coxo, em 1864, e colaborador regular de diversos periódicos. Mas seu grande pioneirismo na comunicação foi a forma como modificou a representação do sujeito negro na mídia, segundo a jornalista Cinthia Gomes, que analisou no mestrado artigos de Gama publicados em diversos periódicos entre 1864 e 1882. Também membro da Cojira-SP, Cinthia mostra que o discurso de Gama busca promover uma mudança no imaginário social, desnaturalizando a escravidão e restituin- do a humanidade ao sujeito negro.
“Luiz Gama inaugura uma tensão dicotômica que perdura até os dias de hoje, entre a sub-representação, com a associação de imagens negativas ou mesmo a ausência da população negra no noticiário, e o surgimento dessa figura re-humanizada, distante da redução e da estereotipia, um novo discurso possibilitado pela insurgência de uma escrita e de uma voz negra”, escreve Cinthia em sua dissertação de mestrado “O que era preto se tornou vermelho: representação, identidade e autoria negra na imprensa do século XIX por Luiz Gama”.
“Luiz Gama foi um abolicionista, advogado, um intelectual, escritor e leitor de um país cruel e desigual que permanece. É o passado que não passa. Então, receber um prêmio com esse nome é alegria, é lisonjeiro de um lado, mas também é desafio, é responsabilidade e compro- misso”, diz Rosane. Para ela, um prêmio com esse nome tem o papel de tensionar o que a gente vem designando de interesse público. “Venho insistindo muito: o que é interesse público? O que é mais de interes- se senão a alta mortalidade da juventude negra que nos afeta enquanto nação?”, questiona Rosane, para quem o prêmio renova e reposiciona essas questões.
UM PRÊMIO COM O NOME DE LUIZ GAMA SINALIZA QUE PRECISAMOS RECOLHER O QUE A EMPRESA COLONIAL TENTOU INVISIBILIZAR E TRAZER PRA SUPERFÍCIE, E DIZER QUE NÃO PACTUAMOS COM O JORNALISMO RACISTA, QUE SUBSCREVE O RACISMO
Flavio também ressaltou a dimensão coletiva que a premiação tem. “Tem um lado pessoal do reconhecimento, mas, por outro, ele é o reconhecimento de uma atividade coletiva. Só foi possível merecer o prêmio porque o organismo do qual eu participei todos esses anos [Cojira-SP] ganhou uma expressão que foi reconhecida, da importância do trabalho deste coletivo dentro do qual a gente está.” Em seu discurso de premiação, Flavio citou todos os funda- dores da Cojira-SP: Amélia Nascimento, Benedito Egydio dos Santos, Esmeralda Ribeiro, Francisco Soares, Maurício Pestana, Oswaldo de Camargo, Oswaldo Faustino, Paulo Vieira Lima, Ricardo Alexino Fer- reira e Ronaldo Junqueira. Rosane Borges ingressou no grupo logo após sua fundação.
Cojira e Luiz Gama
A Cojira-SP tem também um papel importante no resgate da memória de Luiz Gama como um comunicador e de ressaltar a sua importância histórica para o jornalismo brasileiro. “Foi uma ideia feliz essa de dar o nome de Luiz Gama para o prêmio. Vale lembrar que foi iniciativa da Cojira trazer para o SJSP a figura do Luiz Gama e a proposta de reconhecê-lo como jornalista atuante em São Paulo, que é um dos aspectos dos inúmeros que fazem Luiz Gama importante. Atesta a importância do que o prêmio assumiu, o exemplo que ele passa para a categoria e para a sociedade de uma disposição dos jornalistas de atuarem no sentido da promoção da equidade racial”, diz Flavio.
Em 2018, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo reconheceu Luiz Gama como jornalista atuante no estado. Uma placa de honra ao mérito foi inaugurada, no mesmo ano, no Auditório Vladimir Herzog, localizado na sede do sindicato, no centro de São Paulo. Em novembro de 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já ha- via concedido a ele o título de advogado. Autodidata, Gama aprendeu direito e atuou como defensor e jornalista, tendo deixado um legado de luta pelo fim da escravatura e pela proclamação da República. Ele libertou, ao longo da vida, mais de 500 escravos.
Premiação vs realidade
Em um país com uma população majoritariamente negra, 56% segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a presença de jornalistas negros nas reda- ções, e consequentemente nas premiações, ainda é escassa. De acordo com pesquisa do próprio Jornalistas&Cia, que organizou a premiação, jornalistas brancos são 77,6% dos profissionais nas redações do país, mais que o triplo de pessoas negras, que somam 20,1%, enquanto amarelas representam 2,1% e indígenas não chegam a 1%.
Outro levantamento, este realizado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa do Instituto de Estudos Sociais e Políticos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (GEMAA/IESP-UERJ), mostra que as redações dos três maiores jornais do país (Estadão, Folha de S. Paulo e O Globo) são formadas em sua maioria por homens brancos e com pouquíssimas pessoas negras ou até nenhuma em seus editoriais, caso do Estadão.
A organização de uma premiação exclusiva para destacar o trabalho de profissionais negros do jornalismo é um marco, mas também evidencia como ainda somos poucos nas premiações gerais. Exemplo disso é a própria filha de Flavio, a jornalista Thaís Carrança, que atualmente trabalha na BBC News Brasil. Ela foi uma das poucas mulheres negras indicadas ao prêmio +Admirados Jorna- listas de Economia, Negócios e Finanças.
AS EXPECTATIVAS EM RELAÇÃO AO ACESSO À UNIVERSIDADE E OPORTUNIDADES NO MERCADO DE TRABALHO AVANÇARAM, PORÉM, A PAUTA ANTIRRACISTA AINDA É VISTA COMO PROSELITISMO POLÍTICO OU ATIVISMO
20 anos depois
Flavio e Rosane também trabalharam juntos na organização do livro “Espelho Infiel: o negro no jornalismo brasileiro”. Lançado em 2004, o livro trata da representação da imagem dos negros e de outras populações historicamente minorizadas nos meios de comunicação, além de refletir sobre a desigualdade racial no campo profissional do jornalismo. “O livro é uma coletânea de textos variados sobre os aspectos da incidência do racismo no trabalho do jornalista e no produto do trabalho de jornalismo”, explica Flavio.
Fazendo uma reflexão sobre o que mu- dou nesses 20 anos, Rosane avalia que parte das expectativas em relação ao acesso à universidade e oportunidades no mercado de trabalho foram alcançadas, mas muitas reivindicações ainda seguem atuais. “A gente avançou: temos um cenário de mais negros na comunicação de jornalismo e em territórios de visibilidade, como na tela da TV. Conseguimos fazer da temática do racismo no jornalismo uma esfera, um campo disciplinar de pesquisa teórico que traga o debate racial não como apêndice, mas estrutural do currículo”, avalia Rosane.
Ela acredita, porém, que a pauta antir- racista ainda é vista como proselitismo político ou ativismo. “Mesmo com as conquistas que a gente teve, algumas coisas ainda são inadmissíveis. O debate contemporâneo sobre mudança, sobre questões de pluralidade, diversidade e inclusão, não pode ser visto como bandeira política, como proselitismo, mas como vértice, com uma coluna central, a estru- tura que pode devolver ao jornalismo o que ele efetivamente deveria ser: uma atividade que visa cobrir os movimentos do mundo, pensar o mundo a partir da sua miséria. E o racismo continua sendo a grande miséria do mundo e a grande miséria brasileira”, completa a professora.
Flavio avalia que o que poderia ter acelerado a inclusão de jornalistas negros na profissão seria a adoção de medidas mais concretas por parte dos sindicatos dos jornalistas. Baseado na sua experiência e em pesquisas que desenvolveu juntamente com Cida Bento no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), Flavio observa que para avançar na questão racial outros sindicatos enca- minham a questão por meio da aprovação de cláusulas de promoção de equidade racial nos acordos coletivos.
“Foi um dos caminhos que se tomou para tentar combater a desigualdade e os impactos do racismo em diversas profissões. Isso entre os jornalistas não aconteceu”, avalia ele, que faz uma autocrítica sobre o papel da Cojira na proposição e no fomento a esse tipo de ação. “Mas a gente vem aí num quadro de retirada de direitos, de fragilização dos sindicatos, de todos os retrocessos dos governo Temer e Bolsonaro. Algumas empresas chegaram a desenvolver iniciativas próprias, como a Folha de S. Paulo com o programa de treinees negros. Não temos uma ideia exata do resultado efetivo, mas de fato eles criaram”, afirma.
QUANDO AS OPORTUNIDADES SÃO DADAS, AS PESSOAS FAZEM TRABALHOS RELEVANTES. ACHO QUE EXISTE ESPAÇO PARA QUE SURJAM NOVOS VEÍCULOS NOS QUAIS PROFISSIONAIS NEGROS E NEGRAS OCUPEM LUGARES DE DESTAQUE NAS DIVERSAS REDAÇÕES
Gênero e raça
As mulheres negras se destacaram na premiação: eram 35 dentre as 52 pessoas homenageadas. Elas também dominaram o topo da premiação, ocupando oito po- sições no top 10, inclusive os três nomes do pódio: Zileide Silva, da Rede Globo, seguida por Maju Coutinho, também da Rede Globo, e Semayat Oliveira, do Nós, Mulheres da Periferia. A jornalista Rebeca Borges, do portal Metrópoles, foi agraciada com o Troféu Tim Lopes como Revelação do Ano. Já o Troféu Glória Maria, que destaca uma personalidade do ano, foi entregue ao ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida.
Na base qualitativa da pesquisa realizada pelo Jornalistas&Cia, as jornalistas relataram enfrentar mais barreiras ao longo de suas carreiras por serem mulheres e negras. Quando se traça um recorte de gênero e raça na pesquisa do GEMAA, os três maiores jornais do país revelam uma tendência em comum: a maior parte das autorias das reportagens de Estadão, Folha e O Globo são assinadas por homens brancos e, na sequência, por mulheres brancas. Em menores proporções, estão os homens negros e as mulheres negras, respectivamente. Os indígenas não apa- recem nas estatísticas, pois apenas uma autoria desse grupo foi identificada na pesquisa, evidenciando a disparidade entre o jornalismo brasileiro e a composição racial da população brasileira.
Em outras premiações do Jornalistas&Cia, como +Admirados Jornalistas de Economia, Negócios e Finanças e o +Admirados de Saúde, Ciência e Bem-estar, se observa ainda poucas mulheres negras indicadas.
“Temos esse papel fundamental de ra- cializar o debate, de feminizar o debate e apresentar, pelos indicadores de ausência e de invisibilidade, de rebaixamento das mulheres e particularmente das mulheres negras, propostas de ações afirmativas que vão desde política de cotas até tantas outras ações para que a comunicação e o jornalismo brasileiro realmente reflitam a demografia desse país”, diz Rosane.
“Acredito que nos anos 90, as ONGs negras apontavam muito a comunicação e a gente tem um movimento crescente de racializar, de apontar a ausência de mulheres nas redações em posições de poder. E esse debate cresceu muito a partir da Conferência Mundial contra o Racismo, em 2001, que teve um tópico sobre comunicação”, lembra.
O futuro do jornalismo
Um trecho marcante do discurso de Rosane Borges foi sobre futuro e novas gerações.
“Tem um ditado bakongo que diz que nós que estamos aqui somos filhos e fi- lhas de quem nos antecedeu. Mas nós não somos gêmeos idênticos dos nossos pais ancestrais. Assim como nossos filhos que virão no futuro, que não são filhos biológicos, eles engendraram gestos iguais aos nossos. Eles ecoaram nesse jogo de temporalidades africanas”.
O MITO DA IGUALDADE RACIAL SE REFLETE NO JORNALISMO, TANTO NOS ESTEREÓTIPOS NEGATIVOS ASSOCIADOS À POPULAÇÃO NEGRA COMO NA INVISIBILIDADE DESTA NAS PAUTAS JORNALÍSTICAS E NAS REDAÇÕES
O cenário é desafiador para a profissão: redações cada vez menores, o efeito das big techs na reconfiguração da distribuição e remuneração do campo, indústria da desinformação, ataques a jornalistas e à liberdade de imprensa. É nesse contexto que a luta pela maior representativida- de de profissionais negros e disputa por posições de liderança se dá.
“Quando as oportunidades são dadas, as pessoas fazem trabalhos relevantes. Acho que existe espaço para que surjam novos veículos nos quais profissionais negros e negras ocupem lugares de destaque nas diversas redações e outros espaços de trabalho de jornalista, mas nada disso está garantido”, diz Flavio.
“Essa luta é contínua porque nós temos pessoas negras, inteligência negra, mãos negras tentando pensar o país e oferecer um projeto minimamente decente”, completa Rosane.