Os riscos do jornalismo sobre duas rodas

O jornal Unidade ouviu profissionais que atuam como motolink nas emissoras de São Paulo e inicia uma série de reportagens sobre o tema. O objetivo é discutir o assunto com os principais envolvidos e elaborar ações em defesa dos trabalhadores

por Eduardo Viné Boldt

A informação sobre o acidente sofrido pelos profissionais do motolink da TV Bandeirantes rapidamente ganhou os grupos de WhatsApp de jornalistas no estado de São Paulo na noite de sexta-feira, 10 de setembro. A notícia sensibilizou jornalistas e radialistas de diferentes redações e mobilizou um contingente de pessoas para apurar o que de fato aconteceu. Na redação da Band o sentimento de tristeza pairava no ar. O assunto corria de boca em boca, enquanto o comunicado oficial da empresa não era publicado.

Ronaldo das Graças faleceu em setembro depois de sofrer acidente na rodovia Anchieta (Foto: Reprodução)

O repórter cinematográfico Ronaldo das Graças de Carvalho, de 45 anos, faleceu no acidente ocorrido no início da noite no km 58 da rodovia Anchieta, importante via que liga a capital paulista à Baixada Santista. Seu assistente e piloto, o radialista Rodrigo Almeida Castro, sofreu ferimentos leves. Uma carreta abalroou o veículo dos profissionais enquanto estavam parados no acostamento da autovia. Eles voltavam de uma pauta, onde acompanharam uma ação da polícia na Baixada. A moto apresentou problema no pneu dianteiro, o que os forçou a pararem no acostamento, local da tragédia.

A morte de Ronaldo, que trabalhava na Band desde 2014, lançou luz sobre a função de motolink e reabriu uma discussão que há duas décadas está no seio da atividade das emissoras de TV paulistas: a utilização de motocicletas para a cobertura do jornalismo diário. Sob a condição de anonimato, a reportagem do Unidade conversou com pilotos, repórteres cinematográficos e profissionais de diferentes emissoras que se utilizaram e ainda utilizam a moto como recurso para a sua atividade. Com condições díspares, pressão pela notícia e risco de vida, a atuação como motolink encontra-se entre as mais vulneráveis para o jornalista na atualidade.

Do improviso à obrigação

As tradicionais enchentes da cidade de São Paulo, quando não viram notícia, atrapalham o deslocamento diário das equipes de reportagem. No ano de 1998 não foi diferente. Com a cidade parada e um factual na zona leste, foi o “fiteiro” (1) da TV Record, o Anastácio, quem resolveu o problema. “Por que a gente não vai de moto? Pega o Alexandre Marçal, a gente leva a câmera em uma capa e chegamos mais rápido”, conta ter presenciado Arnaldo*, experiente repórter cinematográfico que atua como motolink na capital paulista. A equipe conseguiu chegar a tempo da reportagem, e a direção da emissora decidiu montar equipes permanentes.

O formato caiu como uma luva para o programa Cidade Alerta, comandado de 1998 a 2002 pelo jornalista José Luiz Datena. “Em 2002, quando o Datena foi para a Rede TV, a Record tinha 10 motolinks”, ressalta Arnaldo. O apresentador levou com ele o know how da atividade, que em pouco tempo se disseminou por todas as emissoras da capital.

A PARTIR DE 1998, AS EMISSORAS ENCONTRARAM UMA MINA DE OURO, ACOMPANHANDO AO VIVO DILIGÊNCIAS POLICIAIS E COBRINDO EM TEMPO REAL PRISÕES E DESLOCAMENTOS DE VIATURAS PELA CIDADE

A solução do problema se tornou prática corriqueira entre os programas de jornalismo policial que se multiplicaram pelas emissoras nos anos 2000. À custa do sacrifício de seus profissionais, as empresas encontraram uma mina de ouro, acompanhando ao vivo diligências policiais e cobrindo em tempo real prisões e deslocamentos de viaturas pela cidade.

Risco de vida

A atividade em si carrega extremo risco para os profissionais envolvidos por questões óbvias: a união entre a pressão do jornalismo factual e a insegurança da motocicleta inevitavelmente deixou um rastro de acidentes ao longo do tempo. A falta de critérios rígidos de segurança é outro problema apontado pelos profissionais ouvidos, que expõem enormes diferenças de procedimento entre as empresas.

Já em 2003 os sindicatos dos jornalistas e de radialistas de São Paulo se uniram reivindicando o fim do uso da moto como transporte de equipes de reportagem. Foi enviado um pedido formal para a Band, a Record e a Rede TV no dia 13 de novembro daquele ano, exigindo “o imediato cancelamento das motocicletas como meio de transporte dos operadores de câmera e repórteres”. A nota apontava ainda que os “trabalhadores devem voltar a serem transportados em veículos seguros e com grade de proteção”. A carta foi replicada em boletim das entidades. O informe não especificava os envolvidos, mas registrava que, naquele momento, ocorreram duas mortes no período de duas semanas envolvendo equipes de motolinks.

Em 2006, Alexandre Marçal, um dos precursores do motolink em São Paulo, faleceu em acidente se deslocando para a empresa. Em julho de 2014, o então assistente de motolink do SBT Ricardo Moreno foi baleado no abdome em tentativa de assalto, outro risco corriqueiro para os profissionais. O incidente encerrou as atividades de motolink na emissora.

“Que eu saiba, ao menos oito motos foram roubadas aqui na emissora”, disse Antunes*, profissional gabaritado de grande empresa de São Paulo. Intimidações e risco de danos ao equipamento são recorrentes, fazendo parte das preocupações diárias dos trabalhadores.

Recentemente, profissional da Record se acidentou, o que obrigou a empresa a realocá-lo em equipe com viatura. Em setembro, Ronaldo perdeu a vida deixando cinco filhos.

Condições de trabalho

Apesar da histórica posição do Sindicato, os trabalhadores entrevistados foram categóricos: a função de motolink não deve ser extinta. Após o acidente, a Band interrompeu as atividades dos profissionais por algumas semanas, mas rapidamente as motos voltaram para as ruas.

“A função do motolink em uma metrópole como São Paulo é essencial. O jornalismo é totalmente dependente da função de motolink. Sem ele, não tem como fazer um jornalismo presente, factual, na cidade de São Paulo, infelizmente”, ressaltou Anderson*, repórter cinematográfico que atua na capital. Posição acompanhada por todos os profissionais consultados. A resistência dos profissionais em condenar a atividade é clara e compreensível: o receio do encerramento das vagas de trabalho, que teria impacto em um mercado já enxuto e restrito.

A discussão que se coloca é como desenvolver a atividade no contexto colocado, e que ações os sindicatos, em conjunto com a categoria, devem tomar para proteger os principais atores e envolvidos: os jornalistas e radialistas que expõem suas vidas ao perigo para cumprir a função social do jornalismo.

* Nome fictício

(1) “Fiteiro” era o motociclista responsável por levar as fitas com as imagens gravadas pelo repórter cinematográfico até a emissora. A função economizava tempo da equipe e garantia agilidade para a edição dos telejornais