por Dennis de Oliveira¹
Mark Zuckerberg, CEO da empresa Meta, que controla as plataformas de rede social Facebook e Instagram anunciou o fim das moderações e checagens feitas por analistas das informações postadas nas redes sociais da empresa. A partir de janeiro deste ano, os conteúdos postados no Facebook e Instagram não estarão mais sujeitos a avaliação e checagem de analistas da empresa e sim submetidos a um sistema chamado de “notas à comunidade”, semelhante ao usado na plataforma X, de Elon Musk. Este sistema deixa a moderação a cargo dos próprios usuários da rede. Na plataforma X, o sistema funciona da seguinte forma: usuários se inscrevem voluntariamente para redigir notas a respeito de determinado conteúdo, e depois outros usuários avaliam se estas notas são pertinentes ou não – de acordo com o número de avaliações positivas recebidas, a nota é incluída abaixo do conteúdo postado.
Tal decisão do comando da empresa Meta ocorreu às vésperas da posse do presidente Donald Trump que, entre outras coisas, vem enfatizando a defesa de uma concepção de liberdade de expressão sem qualquer restrição ou regulação. Alinhado ao mesmo discurso da extrema direita, Zuckerberg criticou posições de judiciários principalmente do continente latino-americano que tentam responsabilizar as plataformas de rede por conteúdos disseminados. Há aqui uma evidente convergência política com a extrema-direita mundial que já conta com outro expoente da plataforma digital, Elon Musk.
Este episódio é importante para sinalizar aspectos contemporâneos da sociedade capitalista. Jordi Dean chama o atual momento de “capitalismo comunicativo”² pois os fluxos de informação adquirem um valor estratégico nas dinâmicas de produção (por exemplo, o just-in-time só é possível com a existência de um fluxo eficiente de informação entre as várias pontas do circuito produção-distribuição-consumo) e é evidente que esta lógica da organização produtiva se irradia como referência ideológica que conforma as subjetividades. Todas as características da sociedade contemporânea que demandam vários estudos sobre problemas como hipervelocidade, ansiedade, angústias, “sociedade do cansaço”³, entre outras decorrem da conformação social como necessidade de adequação a uma lógica produtiva.
Consequências de ordem sociopolítica
Do ponto de vista político, chama a atenção a característica desta mudança – da moderação feita por uma equipe de checagem para uma classificação ou contraponto a partir da “quantidade de usuários” que avaliam positiva ou negativamente uma postagem. Trata-se de uma subsunção das questões éticas à preferência dos usuários, uma nítida demonstração do critério da audiência como métrica avaliativa.4
Observa-se aqui claramente uma prática que sinaliza o que Horkheimer chama da passagem de uma razão subjetiva para uma razão instrumental.

Por razão subjetiva, Horkheimer define uma racionalidade baseada na capacidade do ser humano pensar e refletir de forma autônoma em busca dos significados da existência e da justiça social. Tal razão extrapola a utilidade prática e sinaliza para uma postura crítica, ou nos dizeres de Agnes Heller5, de suspensão do cotidiano e de sua pragmática. Já a razão instrumental é a própria justificativa dos meios em função das suas finalidades. O objetivo é a eficiência, o controle e a busca de resultados práticos. No caso aqui – e isto é uma lógica da indústria cultural na qual se enquadra toda a indústria midiática – o objetivo principal é fazer gerar a máquina de reprodução de riquezas por meio do circuito produtivo midiático-informacional.
Entretanto, há que se considerar algumas nuances singulares da economia política das plataformas digitais.
O que move o circuito de geração de renda desta cadeia das plataformas digitais é o que se chama de “economia da atenção”. Em uma sociedade de “inflação de informações”, a dispersão é a tônica e por isto a conquista da atenção do sujeito torna-se um insumo valioso. Daí que polemizar passou a ser a principal estratégia para se conquistar a atenção em uma sociedade da dispersão e, assim, gerar valor. Fake-news, negacionismos, atitudes que contrariem valores éticos e morais estabelecidos socialmente impactam fortemente e são estratégias de se buscar a tão almejada “atenção”.
Tais atitudes que alimentam o circuito de reprodução do capital nesta economia das plataformas digitais esgarçam totalmente a pactuação sociopolítica da democracia liberal. Desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789; passando pelos clássicos documentos de pactuação liberal como a Constituição dos Estados Unidos e até a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 que estabelece um novo pacto social a nível global após a derrota do nazifascismo na II Guerra Mundial, as lógicas da economia de mercado capitalista convive – ainda que com tensões constantes – com esta esfera de direitos e regramentos coletivos.
O que se observa no capitalismo comunicativo de que fala Jodi Dean é um acirramento da contradição das formas de acumulação e reprodução de riquezas com qualquer ordenamento político democrático mínimo, o que coloca em xeque o clássico papel do jornalismo como “cão de guarda” da cidadania, como atividade do “esclarecimento” (no sentido iluminista). A existência dos códigos de cidadania e de contratação como modelo de sociabilidade era uma forma necessária em um capitalismo em que as relações de trabalho eram organizadas de forma contratual. Se os contratos estabeleciam um padrão comportamental muitas vezes criticado por desconsiderarem especificidades e particularidades, a sua total inexistência pode aparentar um fim de um ordenamento autoritário mas na prática impõe uma “lei da selva” onde quem é mais forte não encontra nenhum contrapeso ou limite para suas ações. É o que podemos chamar de uma “ação direta do Capital” onde o poder econômico atua sem qualquer mediação ou contrapeso.
Neste sentido, a apropriação do conceito de “liberdade de expressão” que sustenta estas decisões de empresas de plataformas digitais é uma forma de desregulação mercantil da produção do “insumo-atenção” necessário no circuito econômico das plataformas digitais. É o ultra-liberalismo chegando na “Economia da Atenção” que tem como resultado o fomento de redes de ódio, de preconceito de todo tipo e disseminação de fake news e negacionismos. É um retorno farsesco aos sofismas em que o que vale é a capacidade de convencer e não a veracidade ou os valores éticos intrínsecos ao que se expressa.
Por isto, a decisão da Meta é extremamente preocupante porque expressa uma distopia social na qual todos os valores intrínsecos à democracia, direitos humanos e, por tabela, ao sentido do jornalismo caem por terra. E o pior, apropriando-se de forma oportunista o conceito de liberdade de expressão.
1 Professor titular do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor do livro “Racismo
Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica” (Dandara, 2021) e “Iniciação aos estudos de jornalismo” (Abya Yala,
2024). E-mail: dennisol@usp.br
2 DEAN, Jordi. Capitalismo comunicativo e luta de classes. in: Lugar comum: estudos de mídia, cultura e democracia. n.61 (2021). Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/lc/article/view/46542 (acesso janeiro/2025)
3 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015
4 HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. S. Paulo: Unesp, 2016
5 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008