O resgate de histórias como uma forma de justiça

Por Adriana Franco, Eduardo Viné Boldt e Priscilla Chandretti

60 mil mortos e inumeráveis pessoas encarceradas por décadas em um hospício, um verdadeiro genocídio institucionalizado e esquecido. Um jovem militante morto sob tortura pelas Forças Armadas, as quais forjaram seu suicídio e sumiram com seu corpo. 242 jovens que perderam a vida em um incêndio numa boate. E, finalmente, 270 pessoas vítimas de rompimento de barragem, cinco das quais continuam desaparecidas.

Independentemente dessas grandezas, Daniela Arbex trabalhou “para que essas pessoas não morressem da mesma forma que viveram, no anonimato”. E para ajudar a construir uma memória coletiva que levasse à justiça. Com isso, publicou os livros Holocausto Brasileiro, Cova 312, Todo Dia a Mesma Noite, Arrastados (este, lançado em janeiro de 2022). Escreveu ainda a biografia da médium Isabel Salomão de Campos, Os Dois Mundos de Isabel, também para  contribuir na construção dessa memória do Brasil.

Mineira de Juiz de Fora, Daniela se formou em 1995, entrou no jornal Tribuna de Minas para cobrir férias e só saiu de lá em 2019, quando decidiu se dedicar integralmente à literatura. A lista de premiações ao longo da carreira é extensa, conta com três prêmios Esso e o Knight International Journalism Award.

A jornalista que passou 23 anos em um jornal impresso diário se consolidou com seus livros-reportagem e se aventura por outras linguagens. O seu livro de estreia, Holocausto Brasileiro, levou a um documentário para a HBO (codirigido por Daniela) e, mais recentemente, à série de ficção Colônia, livremente inspirada na obra e lançada no Canal Brasil e na Globoplay. Todo Dia a Mesma Noite está virando uma série de ficção na Netflix. E outros dois livros também devem ser adaptados em breve. Ao Unidade, ela explicou como conteúdos jornalísticos socialmente relevantes vão encontrar público em qualquer plataforma.

Em Brumadinho (MG), em 2019, em cobertura sobre o rompimento da barragem da Vale S. A. que transformou a paisagem em mar de lama de rejeito do minério de ferro / Foto: Arquivo pessoal

Você trabalhou por 23 anos na Tribuna de Minas, e parte de suas reportagens que viraram livros também foram pauta do jornal. Em Arrastados, você escreve que o jornal não tinha condições, naquele momento, de te enviar para cobrir a tragédia em Brumadinho (rompimento da barragem da Vale, em 2019). Na redação, você tem uma equipe. Quando você passa a escrever seus livros, como lida com isso?

Jornalismo não se faz sem equipe, mesmo que seja uma matéria a duas mãos. Você tem o fotógrafo, o editor, o diagramador, tem o motorista que te leva. Apesar disso, sempre fui uma jornalista muito preocupada não só em entregar, mas em acompanhar tudo até o final, até a hora de ver a manchete diagramada na página. Eu só ia embora quando o último computador da redação era desligado. E isso me ajudou muito a entender todo o processo, a conseguir me virar.

Quando fui fazer o livro Holocausto Brasileiro, fui sozinha. Não tinha um fotógrafo, não tinha verba da editora para pagar as viagens, não tinha nada. O que tinha era um adiantamento de US$ 2.500, e eu que pagasse tudo e me virasse. Mas como estava muito acostumada a me virar, porque na Tribuna éramos uma redação muito enxuta e sem muitos recursos para fazer coisas extravagantes, fui fazer o que sabia, me virar.

Eu fiquei um ano indo a Barbacena [cidade a 100 quilômetros de Juiz de Fora] todos os finais de semana. Eu trabalhava de segunda a sexta no jornal, ficava sábado e domingo em Barbacena e segunda de manhã voltava, passava em casa, via meu filho pequeno e ia para a redação. Fiz isso durante um ano. E eu fiz as fotos, fiz as entrevistas, fiz tudo. No final, estava dirigindo também – eu, que não pegava estrada!

A minha sorte no Holocausto é que a gente tinha aquelas fotos incríveis do Luiz Alfredo que me foram cedidas, são emblemáticas e marcam essa história. Inclusive, foram o motivo pelo qual resolvi escrever essa história. A partir do momento que vi essas fotos, pensei em procurar os sobreviventes.

Na redação, quando você é uma jornalista de Geral, você faz tudo, passa por Polícia, Política, o que aparecer. Você não sabe nada, mas faz tudo. Isso te ajuda e te prepara. Me virei   totalmente no Holocausto, que me deu um retorno financeiro muito grande. Com esse  dinheiro, escrevi o Cova 312. Aí, já foi um livro que tive que viajar pelo país, mais de cinco  estados. Eu banquei tudo.

Quando mudei de editora e fui para a Intrínseca, já vivi o luxo dos luxos. A Intrínseca paga todas as minhas viagens, paga motorista, paga transcrição, fotógrafo, tudo o que você puder imaginar, ela paga pra mim. Então, eu só preciso me preocupar com o tema que eu vou escrever e com mais nada. E em Brumadinho  foi um luxo maior ainda, porque a gente conseguiu comprar mais de 50 fotos que foram feitas por três fotógrafos mineiros. Incríveis.

Então, você tem que ter uma estrutura que, ao longo do tempo, fui ganhando. Mas a maioria do tempo da minha carreira sempre foi de vacas muito magras e isso também nunca foi impedimento.  Eu me lembro quando a gente ganhou o prêmio da Conferência Latino-americana de Jornalismo Investigativo (Colpin), organizado pelo Instituto de Imprensa e Sociedade, IPYS, no Peru, o trabalho mostrou que não precisa de um recurso astronômico para fazer investigação jornalística de qualidade. E foi engraçado até, porque, na hora das  apresentações, todo mundo questionava o custo das matérias, e era cinco mil dólares, dez mil dólares. A minha tinha custado cem reais, porque era o valor para xerocar os documentos. Ainda falei em dólar, para ficar mais chique, porque estava morrendo de vergonha.

Dos seus livros, dois já foram adaptados em projetos audiovisuais. Você tem vontade de produzir conteúdos jornalísticos em outro formato? Como você vê o uso das suas obras nestas outras adaptações?

Vejo com muito otimismo o consumo de um conteúdo de qualidade, que produzo para o impresso, em outras plataformas de audiovisual. Isso dá um respiro muito grande para quem está vivendo só de literatura, porque quando você consegue contar essas histórias para um maior número de pessoas, financeiramente é muito bom. E em relação ao que a gente quer,

que é contar essas histórias, fazer com que cheguem para o maior número de pessoas, é incrível. Você tem a chance de conversar com outros públicos.

As experiências dessas duas adaptações me mostraram que eu não preciso mais ter um veículo. Eu não preciso mais estar em um jornal para produzir um conteúdo relevante de qualidade, que pode ser consumido em qualquer plataforma. Seja em podcast, seja um livro, seja na TV, seja o que vai pro cinema.

Nós jornalistas, como contadores de histórias, precisamos produzir conteúdos que sejam socialmente relevantes, necessários e, se a gente conseguir fazer a diferença com nosso trabalho, esses conteúdos vão ser consumidos em qualquer plataforma. Aquela preocupação inicial que eu tinha de como faria quando saísse do jornal, quando me vi sem sobrenome –  porque eu era “Daniela Arbex da Tribuna”, e passei a ser “Daniela Arbex”, só, a jornalista independente – no começo, isso apavora. Porque trabalhei com carteira assinada por 23 anos.

Tenho um amigo, muito querido, que me disse: “Dani, você é seu próprio veículo”. E naquele momento eu não entendi. Hoje, entendo. Sou meu próprio veículo e não preciso estar em uma redação para fazer o que mais acredito que é jornalismo de qualidade. Esse caminho que os meus livros tomam e o meu trabalho vem tomando vai dando fôlego para continuar fazendo o que acredito, com a independência que quero e para investir nos temas que eu quero, e vai me dar um fôlego financeiro para me manter independente, sem um emprego formal. A gente pode fazer qualquer coisa, desde que a gente faça um jornalismo ético e de qualidade, vamos ter espaço em qualquer lugar.

À esquerda, filmagem do documentário Holocausto brasileiro, com a equipe da Vagalume Filmes. À direita, em reportagem na reserva indígena dos xacriabás, em 2015 / Foto: Arquivo pessoal

Temos visto pelo Brasil todo muitos jornais locais e regionais fechando, ou reduzindo suas redações. Como jornalista que esteve por mais de duas décadas em um jornal regional, é possível ver outras possibilidades abertas justamente por essas mudanças que estamos vivenciando?

Quando entrei na faculdade, em 1991, os professores já diziam que o mercado era restrito, que a imprensa estava acabando. Então, imagina, cheguei na faculdade cheia de esperança e já ouvi isso. Eu dizia: não é possível, estou fazendo um curso que estão dizendo que não vai dar em nada! E nunca acreditei.

Vivi momentos áureos do jornalismo, tínhamos uma equipe na Tribuna que era fantástica, comprometida, apaixonada, movida a jornalismo na veia, com capacidade de investigação. Vivi o auge de a gente fazer coisas incríveis, reportagens que eram muito maiores do que o jornal. Mas que ele bancava justamente pela qualidade, pelas provas que a gente conseguia reunir. Trabalhei com pessoas incríveis das quais me orgulho muito.

E vivi a escassez, essa crise do papel e dos veículos impressos, uma decadência. E as pessoas, que faziam o trabalho há anos, não tem mais ninguém lá. Hoje, o jornal tem outra cara, está completamente reduzido, com estagiários, e a redação está vazia.

Ao mesmo tempo, tive a felicidade de começar esse trabalho paralelo, dentro do que eu sabia fazer, o jornalismo, mas em outra plataforma, que é o livro. Foi fundamental para que eu pudesse arriscar outros voos.

Sempre quis ser jornalista e quero continuar sendo jornalista. Boas histórias podem ser contadas na TV, no cinema, no podcast, no teatro, no livro, no jornal, em qualquer lugar.

Juiz de Fora é uma cidade importante, historicamente, mas é interior, não é o centro. Como isso se relaciona com o jornalismo que você produz?

Estar fora do eixo Rio-São Paulo nunca foi um problema e sempre foi um problema. Para mim, nunca foi, mas para os entrevistados era.

Me lembro quando fiz uma matéria sobre estupro em série aqui em Juiz de Fora, em que as vítimas não tinham acesso à profilaxia preventiva da aids, aos medicamentos que profissionais da área da saúde tomavam quando se expunham ao vírus. Em caso de estupro, isso não era previsto no Brasil. E fiquei incrédula. Se existe prevenção para os profissionais de saúde, por que não existia para as mulheres vítimas de estupro? Começamos um trabalho investigativo em uma série imensa, fiquei um ano dedicada a esse trabalho. O Brasil tinha um conselho de infectologistas com bambambãs da área e comecei a tentar entrevistar eles, inclusive esse David Uip, que está toda hora no Jornal Nacional. Lembro de tentar falar com ele várias vezes e a secretária falava assim: “Tribuna de onde?” Então comecei a mandar as matérias que havia produzido para os consultórios, e só depois eles se interessaram em falar. Foi lindo, porque conseguimos fazer com que o governo aprovasse a distribuição da profilaxia preventiva para mulheres em todos os lugares do Brasil, em caso de estupro, a partir dessa série. Alguém sabe disso? Não. E é uma série de 1999, incrível, e que levo no coração.

Eu tinha que provar o tempo todo que era competente, mesmo estando fora do eixo Rio-São Paulo, o que foi uma opção porque eu não quis sair. Então, usei o que era ruim para  transformar em algo bom. Estar em um jornal no interior me ensinou muito a estar próxima da comunidade. É ter a chance de conhecer como ela funciona, de entender a sua região, um jornalismo comunitário, e isso me fez enxergar um mundo. O mundo da casa da dona Maria é  o mundo dela. E, às vezes, em um jornal diário você não tem essa chance.

A Eliane Brum escreve no prefácio do seu livro Holocausto Brasileiro que o repórter luta contra o esquecimento. E você menciona o objetivo de construir essa memória coletiva  como uma forma de buscar justiça. As matérias que você já produziu impactam na busca da justiça?

Meu trabalho sempre foi de construção da memória coletiva do Brasil, e se fortaleceu na   última década com meu caminho na literatura. Desde muito jovem, na redação, percebi que o que a gente fazia, as histórias que contava, para muito além de emocionar e tocar as pessoas, podiam transformar os olhares e criar uma nova consciência coletiva, um olhar em relação ao outro, um olhar crítico em relação a nós mesmos e à sociedade em que a gente vive e a forma em que estamos exercendo a cidadania. Percebi essa potência que o jornalismo tem de  transformar, mesmo, e de construir histórias novas, de escrever novos capítulos, de plantar mudanças.

E, percebendo isso, essa potência e esse papel do jornalismo, ao longo do tempo eu fui vendo que construir memória coletiva é um caminho para buscar justiça porque essas pessoas que foram silenciadas, que sofreram apagamento social, têm a sua dignidade e sua própria história resgatadas. E isso é uma forma de justiça. Quando você dá visibilidade e conta a história a partir do olhar dos sobreviventes do nosso holocausto, você constrói um caminho para a busca da justiça. Para que essas pessoas não morressem da mesma forma que eles viveram, no anonimato. Quando elas passam a ter um rosto, um nome e sobrenome, você mobiliza um país, e aí fica impossível você esquecer essa história de novo. Então, o Holocausto Brasileiro veio para mudar o olhar da sociedade para a saúde mental no Brasil, atravessou as áreas do conhecimento e, hoje, é um livro adotado tanto na área da saúde quanto na área de humanas e outras áreas do conhecimento. Buscar caminho para justiça é isso: quando você torna essa história conhecida. Quando a gente deixa de contar uma história, você permite esquecer essa história.

Todo dia o Holocausto Brasileiro é descoberto. É muito lindo ver isso, de uma geração que descobre, seja no ensino médio, na faculdade. São histórias atemporais e esse é o principal papel do jornalismo.

E qual a importância do olhar do repórter ao abordar temas sensíveis e socialmente relevantes como os que você aborda?

É fundamental, para que a gente consiga olhar para um tema como esse, se impactar e perceber que ali tem uma história a ser contada. Tem pessoas que foram silenciadas e sofreram esse apagamento. E para isso precisa ter sensibilidade, precisa ter interesse pelo outro. Para ser jornalista, a gente precisa gostar de gente.

Na década de 1990, em reportagem sobre inundação na cidade mineira de Dores do Paraibuna / Foto: Arquivo pessoal

No Cova 312, você tem uma narração na qual se coloca como uma pessoa que está procurando a verdade. Em determinado momento, a sua ação foi importante para que se descobrissem os restos mortais dos personagens. Até onde você vai para fazer o material que você se propõe?

Eu vou até onde conseguir chegar, mas acho que não é por aí que você está perguntando. Tem toda uma questão dos limites éticos, que tenho muito cuidado para não ultrapassar nada.  Então, não faço pacto com fonte nenhuma, nunca fiz e não aceito. Não existe acordo, não existe troca de favor, porque é fundamental para a manutenção da minha independência.

Agora, desistir? Eu nunca desisti de uma pauta, mas para isso você tem de ter uma relação quase visceral com o tema a que está se dedicando. Se não tiver uma determinação absoluta de contar essa história, resgatar e se aproximar – porque nunca é verdade absoluta, a gente não tem esse poder – ao máximo da verdade, o máximo que puder, se você não está   visceralmente ligada àquilo, fica pelo meio do caminho. O Cova 312, por exemplo, para fazer o livro foram dez anos de pesquisa.

Ditadura, para mim, é uma coisa que sempre tive muita vontade de entender o que aconteceu naquele período, e queria contribuir com o meu trabalho de alguma forma. Quando a oportunidade surgiu, agarrei aquilo e não soltava nunca mais. Enquanto eu não soltasse o Milton, que é o personagem principal, enquanto eu não achasse o local em que ele foi sepultado, eu não pararia. Mas no jornal, você tem uma limitação de tempo. Eu consegui achar a sepultura do Milton, até em tempo recorde para a série do jornal. E consegui, naquele momento, reunir indícios de que ele foi assassinado, mas não consegui provar. É no livro que consigo provar, que consigo a prova fundamental, a foto da necropsia, a qual rodei o Brasil inteiro para encontrar.

Muitas vezes se questiona a imparcialidade, mas acho que isso já foi derrubado há muito tempo, é mito. Porque nenhum jornalista se dedica a contar uma história por tanto tempo se não estiver movido por paixão. É impossível. Assim como no Holocausto, ficar um ano longe da minha casa, do meu filho pequeno e do meu marido, todos os finais de semana, se não tivesse um compromisso e entendimento de que contar essa história seria importante para um país. É estar apaixonada pelo papel do jornalismo nessa transformação. Se você não for apaixonada por jornalismo, você não aguenta.

Você falou sobre tentar impedir que haja um apagamento das histórias e o quanto isso pode contribuir para a justiça. E isso me fez lembrar tanto da Boate Kiss quanto de Brumadinho. No primeiro caso, a gente percebe, para qualquer tipo de evento que se realiza no Brasil, há toda uma preocupação muito diferente da que existia antes. Na mineração, pelo menos por enquanto, não mudou tanto: em março, havia um prazo para o descomissionamento de barragens em Minas e somente cinco foram descomissionadas. Os livros estão contribuindo para a gente conseguir avançar tanto no processo de justiça como de medidas para evitar novas tragédias? Como você vê isso?

Vejo com muita esperança. E vejo concretamente, consigo enxergar na prática o papel que os livros têm na mudança de cenário. Então, por exemplo, o Todo Dia a Mesma Noite foi fundamental para que a gente pudesse entender o que realmente aconteceu dentro da Boate Kiss naquele 27 de janeiro de 2013. E foi tão fundamental na construção da justiça que meu livro foi anexado ao processo, pelo Ministério Público, como um documento. Já foi uma vitória pessoal, como jornalista. Se não bastasse isso, na leitura da sentença o juiz citou meu livro e meu trabalho três vezes.

Achei muito emocionante ver que meu trabalho foi, sim, instrumento para que as pessoas pudessem entender o que aconteceu e, compreendendo o que aconteceu, buscassem fazer justiça, e não vingança. Vingança não é justiça. É muito emocionante porque é para isso que a gente escreve. A gente escreve para ser lido, mas escreve também para ajudar a construir novos olhares.

Então, vi isso concretamente no Todo Dia a Mesma Noite, vi concretamente no Holocausto Brasileiro. E também percebo, apesar de fazer pouco tempo que lancei Arrastados (está muito recente e não dá para falar muita coisa), pela quantidade de mensagens que recebo de profissionais na área da mineração, de engenheiros de minas, bombeiros, falando que essas velhas práticas que levaram ao rompimento da barragem de Brumadinho são um ranço e uma herança maldita dentro da mineração, mas que o livro proporciona um novo olhar para esse modelo de negócio e eles acreditam que, a partir daí, vão poder fazer diferente. Então, tenho muita esperança que esse livro seja importante na forma como a sociedade enxerga a  mineração, porque ela sempre foi vista como a grande benfeitora, que gerava emprego, mas nunca foi vista como realmente é: predatória e que explora a força de trabalho, arranca tudo do lugar.

A gente ainda tem um processo em andamento, eu acredito e espero que esse livro faça o mesmo caminho do Todo Dia a Mesma Noite e ajude o embasamento para condenar e responsabilizar essas pessoas que permitiram que a mina continuasse operando mesmo sabendo que, em caso de ruptura hipotética, 200 pessoas em média morreriam. Preferiram assumir o risco do que parar a mina.

À esquerda entrevista com Débora Soares para o livro Holocausto Brasileiro. Débora nasceu no Hospital Colônia e foi “doada” com dez dias de vida. À direita, com Ricardo Kotscho, em 2002, quando recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog / Fotos: Arquivo pessoal

E nos dois casos, assim como no Holocausto, são tragédias de grandes proporções. Às vezes, quando a gente vê os números, nos assombra e nos assusta, mas também oculta o que cada um passou e viveu.

O número não tem cara, né? Não tem nome.

E a contribuição que você dá, neste sentido, é conhecer no detalhe o que cada pessoa passou. Para você escutar cada depoimento de sofrimento e de dor, como se prepara para lidar com isso?

Não tem preparação. A gente é ser humano e não dá para dizer que, agora, sou jornalista e tenho uma capa. Não tem. Se a gente não exercer a nossa humanidade, não consegue cumprir o papel que tem que cumprir ao ouvir: uma escuta qualificada para esses personagens. O que procuro é me preparar para oferecer essa escuta qualificada e fazer a melhor apuração que puder, mais incansável, ouvir o maior número de pessoas sobre aquele momento para que possa reconstruir aquela cena com esse olhar e ângulos diferentes. Quando é possível. Porque, às vezes, você tem apenas um sobrevivente, como é o caso do Lieuso, o único sobrevivente que estava no alto da barragem [em Brumadinho]. Quando a barragem cede, todo mundo que estava com ele morre. E tenho o privilégio de ter um sobrevivente para contar. Alguém que ficou aqui para contar.

Quem fala precisa ser ouvido. E quando quem fala encontra alguém disposto a ouvir, a entrega que essa pessoa vai ter e o que ela vai te oferecer é muito maior. Ela acaba entregando para você o que tem de mais precioso, que é a memória afetiva. E isso é o maior valor que uma pessoa pode ter: memória afetiva. Quando alguém entrega isso para um jornalista, a gente tem um diamante na mão e tem que cuidar como se fosse nosso. E tem que honrar isso.

É doloroso? É. Eu choro e impacta a minha rotina? Sim. Mas para além da minha própria dor e do que isso me causa, sempre penso que é um privilégio ouvir essas pessoas e receber delas o que têm de mais precioso. Então, posso chorar, ficar impactada, ficar com minha rotina familiar afetada, mas isso é tão pequeno perto de poder contar essas histórias, a grandiosidade de contar essas histórias, que vou ressignificando essas dores.

Quando você se envereda nessas histórias, você também aprende, cresce, muda, se fortalece. De todos os livros, o Todo Dia a Mesma Noite foi o que mais acabou comigo. Literalmente, eu fiquei arrasada. Eu engordei dez quilos, perdi metade do cabelo. Mas ressignifiquei tudo isso e saí desse processo muito mais fortalecida e me sentindo absolutamente honrada de ter sido uma jornalista estrangeira (porque era uma jornalista de Minas Gerais em uma história do Rio Grande do Sul), de ter sido aceita e de terem confiado em mim para contar essa história. O que passei ficando dois anos fora da minha casa é pequeno perto de tudo isso.

Como você faz para construir um relato e uma história baseada em fatos que consigam separar esses sentimentos das pessoas, as versões das pessoas, e a realidade?

O ser humano é muito complexo, ninguém é só bonzinho ou só mauzinho, a gente é tudo. Em um determinado momento, o que você fez é tão legal. Em outro momento, o que você fez é   tão vergonhoso que você tem vergonha de você mesmo. Então, apesar de a gente ter autor e vítima, na maioria dos meus livros, eu sempre procurei sempre entender e não perder a humanidade do autor e da vítima. Nunca entrei para contar uma história pré-julgando nada, pré-julgando pessoas. Se aquela família tinha uma relação conflituosa com a vítima, isso está presente porque o meu compromisso é contar a história mais próxima da verdade. Não dá para florear. Em algumas situações, já vivi isso de a pessoa dizer: “Ah, eu não queria que colocasse”. Mas não tem essa escolha, não dá para contar meia história. Não dá!

Tem também uma transparência nessa relação com os entrevistados, sobre essa proximidade e essa relação de confiança que está sendo construída. É uma relação ética, você não vai poder tirar vantagem dessa relação para ter uma versão melhorada do que aconteceu.

Quando cheguei ao Rio Grande do Sul para fazer o Todo Dia a Mesma Noite, o presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, o Sérgio, uma pessoa com a qual tenho hoje muita ligação, me perguntou quanto eu daria da venda do livro para a associação. E falei: “Nada! Porque esse é o meu trabalho, e a melhor coisa que posso fazer pela causa de vocês é pôr a minha credibilidade a serviço dessa história”. Nunca mais ele me perguntou ou tocou nesse assunto. E isso é uma coisa que tem que ficar clara desde o início, entendeu? Esse tipo de coisa é difícil de ser dita, mas tem que ficar muito claro que você não vai fazer nenhum tipo de concessão. Se eu ficasse com vergonha e dissesse que a gente poderia ver depois, e tal, poderia dar uma enrolada ali. Mas não era justo falar uma coisa que eu não ia fazer. Ter falado a verdade ali poderia ter feito com que eu perdesse tudo, inclusive o livro, porque ele, como presidente da associação, poderia ter dito: “Ah, então vou falar com os pais para não falarem com você”. Corri um risco enorme, mas preferi ser   verdadeira. Eu não ia dar nada porque eu vivo disso. Então, não me peça pra dar a única coisa que tenho para vender: minha força de trabalho.

Se uma pessoa diz: “Eu falo se você…”, eu respondo: “Você fala se quiser, mas não faço acordo”. É fácil? Não, não é. Já perdi fontes por causa disso, mas pelo menos não me vendi em nenhum momento, no sentido de aceitar condições que me afastariam de buscar a verdade.

Em quem você se inspira para produzir livro-reportagem?

Tem tanta gente boa no país. Agora, a gente não tem uma tradição de gente se dedicando exclusivamente ao livro-reportagem, mas isso vem crescendo. Hoje, a gente tem várias pessoas fazendo isso brilhantemente. Tem o Rogério Pagnan, que fez sobre a família Nardoni e se dedicou a contar a história que não estava nos jornais, pesquisou e investigou. Tem Mauri König, que trabalhou no Paraná em redação e fazendo livro-reportagem. Tem Eliane Brum, que é nossa grande referência e a maior jornalista do Brasil, de qualquer tempo, e que sabe conversar em qualquer plataforma, em documentário, no papel. Ela é uma grande narradora, a nossa narradora brasileira. Tem Caco Barcellos, com mais experiência. Audálio Dantas também é uma grande referência, José Hamilton Ribeiro.

Então, a gente tem pessoas que vieram antes e vieram pavimentando esse caminho e uma geração incrível com Chico Felitti, Ivan Mizanzuk, que me dão o maior orgulho, porque é uma geração fazendo jornalismo de qualidade em livro-reportagem.

E isso dá uma baita de uma esperança. A gente tem uma tradição de grandes jornalistas brasileiros, alguns fizeram o impossível, fizeram matérias que ficaram para a história. A gente tem muita gente incrível para se espelhar.