O MANIFESTO “EM NOME DA VERDADE”

DOCUMENTO COM ASSINATURA DE MAIS DE MIL JORNALISTAS QUESTIONANDO VERSÃO OFICIAL SOBRE A MORTE DE VLADIMIR HERZOG FOI PUBLICADO COMO ANÚNCIO N’O ESTADO DE S. PAULO EM FEVEREIRO DE 1976

por Paulo Zocchi

O pesado edifício de mentiras que o regime militar construiu para encobrir o assassinato sob tortura de Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, sofreu um forte abalo em 3 de fevereiro de 1976, quando o jornal O Estado de S. Paulo publicou, num espaço pago em sua página 15, um texto sobre a rubrica “Seção livre”, com o chapéu “Os Jornalistas e o Caso Herzog”, e o eloquente título Em Nome da Verdade.

O texto, assinado por mais de mil jornalistas, contestava a versão oficial de “suicídio” do jornalista e trazia vários questionamentos à Justiça Militar. Abaixo da última assinatura, de Zuenir Carlos Ventura, havia a seguinte explicação: “Esta publicação, com 1.004 assinaturas, foi custeada pelas contribuições de jornalistas de São Paulo, Rio, Brasília, Natal, Porto Alegre, Curitiba”.

Dias antes, o documento havia sido encaminhado à Auditoria Militar de São Paulo pela diretoria do Sindicato, em ofício subscrito nominalmente por Audálio Ferreira Dantas, José Aparecido, Gastão Thomaz de Almeida, Wilson Lourenço Gomes, Fernando Pacheco Jordão, Moisés Oscar Ziskinde e Hamilton Otávio de Souza. No ofício, registra-se que havia no documento 467 assinaturas. No lapso de tempo até a sua divulgação ampla para a opinião pública, somaram-se mais de 500 novas assinaturas.

Pela importância histórica do documento, publicamos nesta edição a reprodução em fac-símile das páginas 8 e 9 do jornal Unidade nº 6, de janeiro de 1976, que traz a íntegra do manifesto com os nomes que o assinam.

“Era o mínimo a fazer”

Conversamos com seis dos jornalistas que assinaram o manifesto. Então com 26 anos, Vicente Alessi Filho trabalhava como redator na editoria de Cidades/Geral da Folha de S.Paulo. Num ambiente de muita mobilização, amplificada pela reação coletiva ao assassinato de Vladimir Herzog, o Sindicato havia se tornado um centro de debates e iniciativas. “Soube do abaixo-assinado durante uma reunião realizada no Sindicato. Considerei que assiná-lo era o estágio mínimo do que fazer diante das circunstâncias”, afirmou Alessi.

Vilma Amaro, atual diretora do Sindicato, tinha 28 anos e trabalhava na editoria Internacional do Jornal da Tarde. “Chegou na redação a foto do Vlado enforcado. A gente logo duvidou. Era impossível! Ele tinha sido torturado e morto… A redação praticamente parou para discutir a situação, indignada com o que tinha acontecido”, explicou Vilma. “Fizemos uma vaquinha para pagar a publicação, como anúncio, do documento, como meio para pedir justiça. Foi uma forma de a sociedade brasileira tomar conhecimento do que acontecia.” A repressão acompanhava de perto a ação dos jornalistas, como explica Vilma: “Muitos anos depois, quando fui olhar os documentos referentes ao meu nome no Arquivo do Estado, lá estava registrado que eu havia pedido investigação sobre a morte de Vladimir Herzog”.

Fotografia provavelmente tirada no estúdio da Rádio BBC de Londres, entre 1966 e 1968. Acervo Ivo Herzog – Instituto Vladimir Herzog © INSTITUTO VLADIMIR HERZOG
Fotografia provavelmente tirada no estúdio da Rádio BBC de Londres, entre 1966 e 1968. Acervo Ivo Herzog – Instituto Vladimir Herzog © INSTITUTO VLADIMIR HERZOG

CUSTEADO PELOS PRÓPRIOS JORNALISTAS, O MANIFESTO “EM NOME DA VERDADE” CARREGOU A ASSINATURA DE MAIS DE 1000 PROFISSIONAIS QUE, CORAJOSAMENTE, EMPENHARAM SEUS NOMES PARA DENUNCIAR O ASSASSINATO DO COLEGA VLADIMIR HERZOG

Com 24 anos, Laerte Coutinho trabalhava como ilustradora na Gazeta Mercantil. Diz que não se lembra com exatidão das circunstâncias e de seus sentimentos naquele momento: “Acho que era uma mistura de tudo: medo, ansiedade, vontade de resolver as coisas”.

Na época com 25 anos, Juca Kfouri trabalhava na editora Abril, no Dedoc, como arquivista-pesquisador na área de Esportes. “Fiquei sabendo porque vivia dentro do Sindicato. Acompanhei as discussões em torno da carta entre Audálio, Fernando Pacheco Jordão, Perseu Abramo – os mais velhos. Os sentimentos eram aquilo: de medo – pelas consequências que a carta poderia ter para aqueles que a assinassem –, e, ao mesmo tempo, de obrigação cidadã, de resistência”, explicou Juca.

Giulia de Vizia era recém-formada no curso de jornalismo na Faap. Ela lembra que, numa atividade acadêmica, havia ido com um grupo de colegas entrevistar, em agosto de 1975, o comandante do 2º Exército, general Ednardo D´Ávila Mello, e o militar havia conduzido a conversa de forma muito rude e ameaçadora. No início de outubro, seus professores Rodolfo Konder e Duque Estrada haviam sido presos, abrindo uma sequência de episódios que culminaram no assassinato de Vlado. O grupo de estudantes, que concluía o curso, acompanhava tudo de perto e integrou-se à mobilização política da categoria profissional. Assinar o documento acabou sendo uma atitude consequente com o que estavam vivendo.

Uma das jornalistas contatadas para essa matéria preferiu não se manifestar, explicando: “Agradeço o chamado. Mas não tive qq importância (…)”. A resposta: “Certamente teve a importância de ter a coragem de ser um dos mil nomes que sustentaram o documento, o que tem um valor enorme. Sou grato a você por isso.” Essa gratidão é extensiva a todas e todos, pelo impacto do gesto que ajudou a abrir as portas do futuro.