Reportagens em quadrinhos ganham espaço em livros, na internet e nos jornais como linguagem jornalística, recebem prêmios e permitem que repórteres desenvolvam trabalhos com abrangência e profundidade sobre temas complexos
por Eduardo Viné Boldt e Flavio Carrança
O jornalista Jake Halpern e o ilustrador Michael Sloan receberam em 2018 o prêmio Pulitzer, na categoria Editorial Cartooning, por uma série de reportagens publicadas no jornal norte-americano The New York Times. A categoria, que costuma premiar charges, optou por escolher uma reportagem de fundo naquele ano. No trabalho premiado, os autores haviam narrado a chegada de dois irmãos sírios nos EUA, fugindo do regime de Bashar al-Assad.
A história da chegada de Jamil e Ammar em solo americano foi acompanhada pelos jornalistas durante um ano, o que resultou em uma série de reportagens em quadrinhos. Welcome to the New World, nome dado à série, foi publicada ao longo de 2017.
A comparação com Maus foi inevitável. A graphic novel premiada em 1992 também pelo Pulitzer é um ensaio que narra os horrores do holocausto na 2ª Guerra Mundial por meio da história vivida por Vladek e Anja, pais do jornalista Art Spiegelman, autor do livro. Ele retratou alegoricamente os judeus como ratos, os poloneses como porcos, os nazistas como gatos e os americanos como cães. O antropomorfismo, usado simbolicamente, acentuou o caráter autoral, dando peso à narrativa gráfica e aos horrores vividos pelos seus pais.
A obra continua sendo referência até hoje, influenciando uma geração de realizadores. Apesar de receberem o reconhecimento em categorias diferentes (a obra de Spiegelman recebeu o prêmio em uma categoria especial) e terem naturezas diferentes (Maus é um ensaio autoral, Welcome to the New World, uma reportagem), ambas receberam o Pulitzer por terem como base fatos da realidade.
O que mudou significativamente desde a premiação de Art Spiegelman foi a consolidação dos quadrinhos como suporte para narrar histórias reais. Há quem se pergunte se o jornalismo comporta ser expresso por uma narrativa em quadrinhos. O fato é que, nas últimas décadas, o estigma de linguagem voltada à fantasia, ao humor ou a histórias infantis foi diminuindo, ao mesmo tempo em que narrativas densas, muitas vezes biográficas ou autorais, ganharam destaque entre os trabalhos com HQs.
Com isso, os quadrinhos e o jornalismo puderam dialogar para além de charges e tiras. Nos últimos anos, as reportagens passaram a ser reconhecidas e premiadas dentro e fora do Brasil. Ao longo das quase três décadas desde a publicação de Maus, autores como Joe Sacco (Palestina), Didier Lefèvre e Emmanuel Guibert (O Fotógrafo) e, no Brasil, Alexandre de Maio (Raul) e Robson Vilalba (Um Grande Acordo Nacional) realizaram obras em que as técnicas de ilustração e o trabalho de reportagem puderam construir narrativas jornalísticas de fundo, com tempo de apuração e profundidade característicos de grandes reportagens.
HQ e jornalismo
No final do século 19, o New York Journal publicava em suas páginas histórias em quadrinhos. Criadas por Richard Outcault, as tiras do personagem Yellow Kid foram, por muito tempo, consideradas os primeiros quadrinhos em jornais. Não é verdade. Essa abordagem não levava em conta a longa trajetória acumulada em diversos países, no decorrer da história.
Mais propriamente do que uma novidade, pode-se dizer que há uma retomada na utilização da linguagem de histórias em quadrinhos (HQs) para o fazer jornalístico. “Os quadrinhos e o jornalismo nasceram juntos”, afirma Rogério de Campos, autor do livro Imageria – o nascimento das histórias em quadrinhos (Veneta, 2015). A obra resgata, ao longo do tempo, manifestações artísticas similares às HQs e a relação intrínseca entre essas obras e a imprensa. “No final da Idade Média, não se sabe exatamente quando, surge a imprensa. É quando aparecem os primeiros quadrinhos. São folhetos descrevendo cenas de crimes, histórias das barbaridades feitas pelos hereges, histórias das orgias dos papas”, conta o autor, diretor editorial da Veneta, importante editora de livros e quadrinhos no país. Essa realidade estendeu-se pelos séculos seguintes, nos quais se desenvolvia a comunicação impressa.
No passado, o Brasil também teve seus autores. Angelo Agostini foi um desenhista ítalo-brasileiro que atuou na imprensa paulista no século 19. Junto com o doutor honoris causa póstumo pela USP, o abolicionista Luiz Gama (veja na página 11), fundou o primeiro jornal ilustrado da cidade de São Paulo, o Diabo Coxo. O cotidiano no período do Império trazia boas pautas. “Eles ficavam fazendo as notícias na hora, na saída do teatro, desenhando”, diz Campos.
Ele conta que o processo de industrialização da imprensa norte-americana, no final do século 19, alterou os periódicos e a forma como eram feitos e consumidos pelo público. A imprensa “descobre” um formato novo para a utilização das HQs. “Os jornais criam um espaço de quadrinhos de humor por causa da evolução da tecnologia de impressão. Houve uma explosão dos suplementos de humor nos jornais americanos, e aquilo rapidamente fez tanto sucesso que se criou uma indústria”, descreve.
Os grandes jornais norte-americanos então buscaram personagens fixos. As tiras se padronizaram e passaram a ser comercializadas entre os periódicos. “Os quadrinhos foram se encaixando dentro disso”, aponta. Com o tempo, essas histórias deixaram de refletir o cotidiano das cidades, sendo tomadas pelo humor e a fantasia.
Na década de 1960, na contramão da indústria de quadrinhos norte-americana desse período, ocupada majoritariamente por super-heróis, autores do underground insistiam em narrar o comportamento de sua época. Robert Crumb era um dos que trazia a vivência do dia a dia para as tiras de jornais e publicações independentes com muita verve e talento. O cotidiano voltava a ocupar o suporte, abrindo espaço para uma nova geração de autores.
Histórias de fôlego
Quando abordamos o jornalismo em HQ, é preciso ter em mente que o tempo de produção de uma reportagem em quadrinhos a distancia do noticiário cotidiano, de hard news. O processo de produção das HQs demanda tempo, fôlego. “O jornalista fica meses em uma pauta”, observa Campos, citando um dos mais importantes autores desse gênero. “O Joe Sacco fez o que o John Reed fazia: vai lá, bebe junto com os caras, volta e manda a matéria”, explica.
Campos aponta que jornalistas em HQs buscam, por meio do desenho, uma descrição de detalhes, típica do suporte, para dar o peso de realidade à informação abordada. “Aquilo desenhado adquire uma subjetividade, mas também uma objetividade às vezes maior do que quando você vê uma foto ou uma descrição”, afirma. “Por exemplo: o cara estava sentado na mesa. No quadrinho, o artista tem que desenhar o sujeito, tem que desenhar mesa, tem que desenhar o tinteiro. Cada coisa é registrada não ao acaso. Cada coisa tem de estar lá”, salienta.
Sacco é um dos autores de reportagens em quadrinhos com maior reconhecimento mundial. O jornalista apurou, redigiu e desenhou obras importantes nesse formato, como Palestina (Veneta, 2021), Uma História de Sarajevo (Conrad, 2005) e Notas sobre Gaza (Quadrinhos da Cia, 2010).
Palestina, obra seminal do autor, foi uma realização independente, bancada por recursos próprios, no final de 1991. Ele acompanhou por mais de dois meses a rotina das áreas ocupadas pelo Estado de Israel, vivenciando o dia a dia do povo palestino. Sacco ajudou a redefinir, com sua obra, as características de uma reportagem em quadrinhos. O trabalho originalmente foi publicado em nove edições, de fevereiro de 1993 a outubro de 1995, e até hoje é a principal referência no gênero.
Reportar e desenhar
O autor de Palestina foi um dos nomes pesquisados pela jornalista Thynaila Moura para o seu trabalho de conclusão de curso. A pesquisa incluía também autores brasileiros. Ela se formou há dois anos e conta que teve muitas dúvidas ao longo de seu curso universitário (veja ao lado).
Thynaila definiu a reportagem em quadrinhos como o seu trabalho de conclusão de curso a partir de uma palestra ocorrida no último ano de faculdade. O evento contou com a presença do jornalista Luiz Fernando Menezes, que produziu, junto com Amanda Ribeiro, o livro Socorro! Polícia! (Draco, 2018). A obra ficcional parte dos relatos de dezenas de policiais e agentes de segurança para mostrar os problemas inerentes à atividade policial. Conhecer o processo de produção e dialogar com o palestrante foi decisivo para a escolha da jornalista.
Com apenas seis meses para se formar, Thynaila correu para realizar o seu trabalho: foi para a rua fazer uma reportagem. “Eu já participei de muitos projetos voluntários num centro cultural perto de casa. Conhecia muitos jovens por lá. Então, foquei o meu trabalho neles e comecei a desenvolver as histórias”, relata. Assim nasceu OZ – Nossa História (edição da autora), que conta a trajetória da companhia de teatro e capoeira Ozarte, de Osasco.
O Brasil também tem nomes na reportagem em quadrinhos. “Joe Sacco é o Alexandre de Maio dos gringos”, disse certa vez em tom de brincadeira o rapper Emicida. A referência ao rapper paulistano alude também ao início da trajetória profissional de De Maio, que começou numa revista focada no universo hip hop. Depois, enveredou por veículos alternativos, voltados para as atividades dos movimentos sociais, especialmente a luta pelos direitos humanos, e por aí chegou aos grandes veículos de comunicação.
De Maio diz que a maior parte de seu trabalho tem como foco os direitos humanos, mas que também produz jornalismo em quadrinhos sobre outros temas, como esportes. “Acho que direitos humanos e esses tipos de pauta são o que mais me move: 80% do meu trabalho é sobre direitos humanos, e 20% é nessa linha de esportes”, explica.
Seu ingresso no jornalismo aconteceu em 1999. Depois de abandonar o colegial para fazer um curso de desenho, iniciou uma revista especializada em hip hop, a Rap Brasil: “Lancei a revista e comecei a fazer matérias, entrevistas, reportagens. Fui aprendendo o ofício meio que na prática, fazendo jornalismo de cultura de rua, hip hop, e cobrindo a cena cultural da época. Ali, fui trabalhando com jornalismo diariamente”, relembra.
Desde 2006, De Maio se dedica ao jornalismo em quadrinhos. O primeiro grande reconhecimento aconteceu em 2014, quando a reportagem em HQ Meninas em Jogo, publicada pela Agência Pública, e feita em parceria com a repórter Andrea Dip, venceu o 7º Concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo na categoria especial “Violência sexual contra crianças e adolescentes no contexto da Copa do Mundo de 2014”. A partir da apuração de fatos e do trabalho de campo realizado pelos jornalistas no Ceará (veja na página 5), a série lança luz sobre o tema da exploração sexual de meninas. A repercussão positiva do trabalho abriu o caminho para os grandes veículos impressos.
Em 2018 publicou, pela Editora Elefante, Raul, seu primeiro livro de jornalismo em quadrinhos, no qual narra a história de um personagem que conheceu ainda garoto na Baixada do Glicério, região central da capital. Rafa, nome fictício, era um garoto que amava Snoop Dog e 50 Cent, tentou a sorte no mundo do rap, teve um vislumbre do sucesso, mas acabou no crime. A partir de longas entrevistas com ele, De Maio reconstrói a trajetória desse Raul, gíria da quebrada para se referir aos criminosos que aplicam o golpe do cartão dentro de agências bancárias.
Robson Vilalba, por sua vez, consolidou-se profissionalmente a partir de reportagens publicadas em veículos tradicionais. O jornalista começou sua carreira na Tribuna de Rondonópolis, no Mato Grosso. Com o tempo, percebeu que precisava enriquecer seu repertório para avançar no trabalho como chargista de política do jornal. Foi estudar ciências sociais.
Hoje, mestre em sociologia, uniu seu talento de ilustrador com as bases de sua formação acadêmica. Não sem ajuda do acaso. “Estava estudando ciências sociais quando fui comprar um Batman. Vi que tinha os quadrinhos de um cara chamado Joe Sacco, Derrotista, que é autobiográfico. Quando li aquilo, falei: cara, dá para fazer isso aqui”, relata.
Vilalba passou a colaborar com periódicos em Curitiba (PR). Foi quando, convidado pela Gazeta do Povo, publicou uma reportagem em quadrinhos sobre os 50 anos do golpe militar de 1964. “Eles pensaram em fazer um especial, e reservaram duas páginas, frente e verso. No verso, era o material em quadrinhos, e na frente um material fotográfico”, relembra.
As reportagens publicadas no jornal receberam o Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos na categoria Artes, e serviram como base para o seu primeiro livro, Notas de um Tempo Silenciado (Besouro Box, 2015).
Vilalba lançou recentemente Um Grande Acordo Nacional (Elefante, 2021). O livro é uma grande reportagem sobre o mais recente golpe sofrido pelo Brasil: o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT). Tendo como fio condutor a tentativa de entrevistar a presidenta, o jornalista buscou entender os motivos e a dinâmica que levaram à sua derrubada da Presidência.
Saindo do papel
A produção de HQs mais uma vez migra de suporte. Jornais e revistas vêm perdendo força e espaço, sendo substituídos por sites e redes sociais. A expressão em novas plataformas, mais uma vez, alterou a forma de produção e leitura das reportagens em quadrinhos. “Busquei fazer quadrinhos na vertical quando percebi que o principal jeito de ver e acessar ia ser o celular, ia ser um site. Pesquisei bastante a melhor forma de ler HQs no celular, por exemplo”, explica De Maio.
Campos diz que a natureza dos quadrinhos, de se apoiar em desenho e texto, ajudou na mudança do analógico para o digital. “Não é à toa que os quadrinhos tiveram uma expansão tão grande nesse período da internet da web, porque as pessoas que leem quadrinhos adaptaram-se muito rapidamente à tecnologia de leitura na tela do computador. Educaram-se mais rápido do que quem estava lendo livros”, afirma Campos.
A diminuição dos veículos para a publicação, contudo, faz com que os profissionais busquem outras formas para se expressar. “Com a decadência do analógico, o fim dos jornais e das revistas, eu estava meio sem perspectivas. Estou feliz por estar achando outro caminho. Até sonho um dia em fazer alguma coisa com animação”, projeta Vilalba.
Animação também é uma forma já apropriada pelo jornalismo. O documentário Valsa com Bashir (2008), do diretor israelense Ari Folman, é uma expressão disso: animação realizada a partir de entrevistas e fatos reais. Mas isso é para uma outra história. De qualquer forma, os desafios enfrentados pelos jornalistas, frutos de mudanças estruturais nos veículos de comunicação, não são um problema apenas daqueles que se dedicam a realizar suas reportagens em HQs. É uma questão colocada para o conjunto da categoria, que busca formas de afirmar o jornalismo profissional – em todas as suas expressões –, enfaticamente, mais necessário do que nunca no Brasil que vivemos nos dias de hoje.