PUBLICAMOS A TERCEIRA E ÚLTIMA PARTE DA MATÉRIA SOBRE OS JORNALISTAS QUE FIZERAM A ÚNICA MATÉRIA EXTENSA SOBRE A MORTE DE VLADIMIR HERZOG, EM 1975
por Sergio Kalili

Em 1974, poucos na redação do jornal EX- viviam do que escreviam ali. A maioria tinha outro emprego formal. Narciso Kalili, Myltainho, Palmério Dória e Gabriel Romeiro trabalhavam na TV Cultura, com Vlado. Kalili dividia a chefia de reportagem com Georges Bourdoukan, e os dois foram presos no mesmo dia. Para Bourdoukan, o motivo: uma informação de saúde pública que a ditadura queria encobrir.
Naquele momento, um surto de meningite atingia o pico. Em quatro anos, a taxa da doença passou de 2,16 casos por 100 mil pessoas para 179,71, de acordo com o estudo “A doença meningocócica em São Paulo, Brasil, no século XX”. Sem informar o povo nem tomar as medidas preventivas, somente na capital paulista, morreram cerca de 2.500 pessoas.
A TV Cultura preparou uma reportagem, mas o governador de São Paulo, Laudo Natel (Arena), ligado ao regime militar, queria esconder a tragédia. Henri Couri Aidar, chefe da Casa Civil do Estado de São Paulo, telefonou para Bourdoukan.
– Olhe, sugiro que você não coloque no ar.
– Mas precisamos alertar a população.
– Não faça isso. Vai se arrepender.
A emissora exibiu a matéria, e a prisão da dupla ocorreu no dia seguinte. Kalili ficou mais tempo preso. Depois de uma semana na Oban, Operação Bandeirantes [centro de informações e investigações do 2º Exército], passou outra no Deops [Departamento de Ordem Política e Social].
– De manhã cedo, tocaram a campainha do apartamento no qual morávamos [lembra Ethel V. Kosminsky, minha mãe] com nossos quatro filhos, na rua Luís Coelho. Narciso estava desconfiado que tinham vindo buscá-lo. Estavam na sala, vestidos com roupa comum. Perguntei de onde eram; da Oban, responderam. Da varanda, vi quando os três entraram num carro comum, sem identificação.
Kalili e Bourdoukan na prisão
À época, Ethel procurou sua orientadora no mestrado, professora da USP, que conhecia a família Mesquita, proprietária do Estadão e do Jornal da Tarde. Júlio ou Ruy perguntou para Ethel se Narciso estava metido em algum grupo político. Não, ela respondeu, e contou o que tinha ouvido do marido. Havia um jornalista chamado Claudio Marques que denunciava qualquer jornalista que lhe parecesse suspeito. Ele tinha atacado publicamente Narciso e Bourdoukan por causa de uma matéria sobre a guerra do Vietnã. Um dos donos do grupo Estado de S. Paulo perguntou a ela o que poderia fazer. Ela pediu que publicasse no jornal a notícia da prisão do marido. E assim foi feito. A notícia foi publicada no mesmo dia, no Jornal da Tarde.
Bourdoukan narra que chegou algemado à rua Tutóia, n° 921, no Paraíso, onde funcionava a Oban. Um homem encostou a arma no rosto dele, coberto por um capuz, e disparou, sem balas. Além dos gritos e xingamentos, tinha que manter no alto, com uma das mãos, uma caneta, sem deixar cair.
Kalili jamais contou o que sofreu. “Narciso chegou calado e nunca quis falar do que viu e ouviu enquanto esteve na Oban e no Deops, e muito menos se chegou a ser torturado”, disse Ethel.
Severiano recorda-se:
– Um tal de Cláudio Marques chamava a nossa redação na TV Cultura, na coluna dele, no Shopping News, de “Vietcultura” [referência aos vietcongues, comunistas do norte, que lutavam pela independência do Vietnã].
Marques também tinha um programa de TV, no qual grunhia: “Viram o noticiário de ontem na TV Cultura? Falando do esquerdista vietnamita Ho Chi Min?” Essa mesma campanha vai contribuir para a prisão e morte de Vladimir Herzog cerca de um ano depois.
Na edição do EX- sobre Vlado, entre os colegas que se ofereceram para ajudar a fazer a reportagem, está Edison Brenner. Ele recebeu a missão de entrevistar o algoz Claudio Marques.
“Sexta-feira, 31/10 [/1975]; faz duas horas que 8 mil pessoas deixaram a catedral da Sé, após o culto ecumênico em homenagem à memória de Vladimir Herzog. Cláudio Marques, sem saber, tem encontro marcado com o EX-, nos estúdios da TV Bandeirantes. São 20.45 horas.
– Cláudio, você não me conhece, mas eu conheço você. Eu sou do jornal EX-. Estou aqui a propósito do que aconteceu com o Vlado. Você está sendo acusado de dedo-duro, de ter movido uma campanha contra o Vlado…
O repórter vai registrando e, mais tarde, procurou reproduzir o mais fielmente possível as palavras textuais de Cláudio:
– É, eu sei, mas é uma campanha sacana, que um profissional como eu, com 20 anos de profissão, não merece. […] Olha aqui, da morte do rapaz eu não vou falar. Seria um absurdo dizer qualquer coisa. […] Agora, sobre a minha posição, eu não mudo nada. […] Eu nunca fiz campanhas pessoais na minha vida. Em minha coluna sempre defendi ideias. Aliás, não fui eu quem levantou o assunto da TV Cultura, nem o comunismo. O da TV Cultura foi o Estadão, e o comunismo foi o presidente Geisel.”
Sobre as prisões de Narciso e Bourdoukan, Gabriel Romeiro puxa da memória:
– Organizamos uma comissão, e Ruy Mesquita nos recebeu. O Estadão e o Jornal da Tarde publicavam todo dia a história dos dois.
– Foi quando, pela primeira vez, o Jornal da Tarde, em vez de publicar uma receita, publicou que houve uma manifestação, um abaixo-assinado, com cerca de 500 jornalitas, pedindo a nossa libertação também, afirma Bourdoukan.
O Jornal da Tarde substituía os textos censurados por receitas culinárias, e O Estado de S. Paulo, por versos de Camões.
A campanha de Marques havia começado a desmontar a equipe da TV dias antes. Fernando Pacheco Jordão, diretor de Jornalismo da Rádio e TV Cultura e grande amigo de Vlado, é o primeiro demitido. No lugar dele, entra em cena o interventor Valter Sampaio
Romeiro acredita que desavenças de Kalili e Bourdoukan com Sampaio vão contribuir para as prisões.
Houve uma discussão entre Vlado e Narciso sobre a melhor forma de resistir a Sampaio. Herzog defendia a tese de que era preciso lutar de dentro da empresa, recusando-se a fazer matérias indecentes, buscando pautas corretas. Narciso, acompanhado de outros colegas, como Bourdoukan e o cineasta João Batista de Andrade, queriam que “peitássemos” a direção, criando situações que provocassem demissões, numa tentativa de constranger e denunciar a intervenção na emissora.
Não demorou muito. Valter entrou na redação e fez um discurso de praxe de chefe recém-contratado:
– Pretendo manter todos, porque, afinal de contas, temos um objetivo comum, que é fazer jornalismo.
E aí, Narciso pede a palavra:
– Valter, o problema não é que todos queremos fazer jornalismo. Até queremos. Você quer, eu quero… todo mundo quer. O problema é que existem muitos tipos de jornalismo. Hoje em dia, tem jornalista que acha que faz parte da profissão trabalhar para a assessoria de relações públicas da Presidência da República.
Não era segredo para ninguém que Sampaio tinha trabalhado para a assessoria da Presidência. Irritado, ele respondeu:
– Que mal tem em trabalhar para a assessoria da Presidência da República?, perguntou Valter.
– Taí o que eu quero dizer: tem gente que acha que isso é jornalismo, e tem gente que acha que não é.
Gabriel Romeiro lembra: “Ele foi demitido praticamente naquele momento, na frente de todo mundo. Depois, o Bourdoukan também provocou sua demissão. Três ou quatro dias mais tarde, estavam presos.”
Dessa vez, a acusação por violação da Lei de Segurança Nacional virou processo. Nos autos, estavam indícios de que o regime acompanhava Narciso havia tempos: trechos de reportagens dele, deduragens de encontros suspeitos e informações de que era da APML (Ação Popular Marxista-Leninista).
O advogado do Departamento Jurídico do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo e de presos políticos Luiz Eduardo Greenhalgh adotou a linha de defesa de que Narciso não era militante, mas sim um jornalista cobrindo o momento político, falando com opositores do regime, acompanhando manifestações estudantis e protestos somente para fazer reportagens profissionais.
A ação se arrastou por pouco mais de um ano e tramitava à época da morte de Vlado e da publicação da matéria a respeito do assunto no EX-. Se isso influenciou de alguma maneira na decisão final da Justiça, não há informação. Em 11 de dezembro de 1975, Narciso Kalili recebeu a absolvição por um placar de 8 a 2, no Superior Tribunal Militar. Os dois ministros que votaram pela condenação, e foram derrotados, condenariam o jornalista a um ano de prisão com base no seguinte artigo da Lei de Segurança Nacional:
“Decreto-lei número 314, de 13 de março de 1967:
[…] Art. 12. Formar ou manter associação de qualquer título, comitê, entidade de classe ou agrupamento que, sob a orientação ou com o auxílio de governo estrangeiro ou organização internacional, exerça atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional: Pena – reclusão, de 1 a 5 anos.
Parágrafo único. No caso de simples culpa, a pena será: Detenção: de 3 meses a 1 ano.”
Jornalismo em Londrina
Demitido, em meio ao chumbo grosso e à falta de dinheiro, Narciso decide sair de São Paulo em 1974, assim como havia feito Serjão poucos meses antes.
A convite de Ruy Fernando Barbosa, outro colega da revista Realidade, Kalili leva amigos para Londrina (PR), incluindo parte da turma do EX-: HAF, Myltainho, Amancio Chiodi, Georges Bourdoukan, Trajano e outros. Teriam recebido carta branca e a promessa de independência total do empresário e ex- -governador Paulo Pimentel para criar o primeiro grande jornal fora do eixo Rio-São Paulo-Brasília.
Até Vlado pensou em seguir a cambada ao Paraná. Dormiu uma noite na casa de Bourdoukan enquanto refletia se deveria ficar por lá. Preferiu voltar para São Paulo. Além de seguir trabalhando na revista Visão, retornou à TV Cultura em janeiro de 1975, dessa vez como diretor de jornalismo, cargo que fora do amigo Pacheco Jordão.
Sem a patota de Realidade e agregados, o EX- entra em sua terceira fase, sob predomínio maior do gaúcho Marcos Faerman, repórter-especial do Jornal da Tarde. Do n° 7, em outubro de 1974, ao n° 11, em março de 1975, imprime à publicação uma orientação mais literária. “Eles achavam que o jornal ia fechar e não fechou”, deduz. “O pessoal de EX- tinha uma visão mais suicida. Queriam dizer tudo independentemente das circunstâncias. Eu era mais cauteloso, leninista. E sempre havia brigado mais pela cultura, mesmo à custa de vender menos” (entrevista de Faerman a Bernardo Kucinski).
No Paraná, preparam o lançamento do futuro diário Panorama. Trabalharam por cerca de cinco meses. Produziram números zeros, planejaram cadernos e reportagens especiais, treinaram jornalistas locais. Mudaram-se com toda a família. Em 9 de março de 1975, publicam o primeiro número. Mas, menos de um mês depois, em 31 de março, veio a intervenção.
– Londrina é uma cidade colonizada por dizimadores, sob pretexto do progresso. Os big shots da cidade começaram a olhar enviesado para o jornal, contou Mylton Severiano.
O JORNAL DA TARDE SUBSTITUÍA OS TEXTOS CENSURADOS POR RECEITAS CULINÁRIAS, E O ESTADO DE S. PAULO, POR VERSOS DE CAMÕES
O fim da aventura em solo londrinense começou com a derrubada de uma árvore histórica da cidade. Narciso pede a apuração da notícia, que vira manchete de primeira página: “Assassinada!”. O autor do crime é amigo do dono, que pede uma errata.
A equipe segue incomodando. Um repórter descobre que indústrias fortes da região estão sujando o lago Igapó, que serve ao lazer dos londrinenses. Outra manchete de Kalili: “Igapó está poluído”. O prefeito é José Richa, que reclama.
Até que Pimentel vai à redação para saber por que o jornal estava causando uma revolução na cidade e um alvoroço na elite. Ele chega dizendo: “Vou acabar com essa palhaçada. O jornal é meu.” Narciso, com o dedo em riste, dá uma paulada:
– O senhor é um mentiroso! A promessa era de independência total.
– Ninguém me chama de mentiroso na minha casa.
– Estou na sua casa e você é um mentiroso!
– Repete se for homem.
– Mentiroso, mentiroso, mentiroso!
– Tá demitido!
A turma do deixa-disso entrou em cena para a sorte de Kalili; Pimentel era um cara grande.
Em solidariedade, praticamente toda a redação pediu demissão, em carta-manifesto.
Narciso e Ruy Barbosa ainda fizeram o Viver, um jornal semanal de serviços, no Paraná. “A concorrência local era extremamente desleal”, afirma Ruy. “Éramos acusados de financiar o movimento estudantil, e perseguidos pela polícia política, sem qualquer motivo. Não resistimos.”
A última fase do EX-
Antes do fim do Viver e de partir de Londrina de vez, Narciso fica num vai e volta de São Paulo. Ele retoma o EX- na edição n° 12, do mês de maio. Hamilton e Mylton Severiano já haviam participado do n° 11, de março, com Faerman, mas quando Kalili reassume começa a quarta e última fase do jornal.
– Houve bate-boca com gritos do Hamiltinho. Sentaram para tentar fazer um EX-, todos juntos, mas não deu. Cada um queria uma pauta. Foi uma discussão entre chefes de tribo, define Dácio Nitrini.
– Marcão [Marcos Faerman] tinha se assenhorado do EX- e achado que agora era dele, acusa Myltainho.
– Fernando B [apelido do jornalista Fernando Morais] e Faerman passaram a fazer um jornal de cultura. Não era a cabeça da gente, explica Romeiro.
Numa tarde, HAF explode e abre o jogo:
– Ó, nós voltamos para assumir. O jornal é nosso. Quem quiser fica com a gente.
O EX- 12 marca a retomada da ousadia, com uma capa de Pelé nu e a proposta milionária para jogar no Cosmos de Nova York: “Pelé dá lá, toma cá! E você, resistiria?”, com outras chamadas ao lado: “Bebê-diabo está no céu”; “Revolução de Augusto Boal”; “Vandré pra quem quiser!” A edição marca também o ingresso de Paulo Patarra na equipe.
O pioneiro chefe de redação da revista Realidade havia negociado uma demissão gorda depois de uma década de editora Abril. Pegou um quinto do dinheiro e pagou salários para parte da moçada, além de bancar dois números da publicação. A tiragem deu um salto. Venderam 18 a 20 mil exemplares. No EX- 14, Patarra já tinha recuperado o dinheiro investido.
É com esse time que será produzido o último EX-, o histórico 16. A edição já estava pronta. Com o assassinato de Vlado, cai a entrevista e a capa do cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, para dar lugar à reportagem da morte de um companheiro.
Todos fizeram de tudo um pouco, mas “Narciso Kalili foi mais pauteiro, coordenador e orientador; HAF, repórter e chefe de reportagem; eu, responsável por editar o texto – resultado do trabalho de todos do EX- e de colegas que, corajosamente, nos procuraram pondo-se à disposição”, arremata Myltainho. “Do 12 ao 16, senti o Narciso na ponta dos cascos, como diagramador, nas manchetes… Era o mais completo. Deu um salto. Não fazíamos mais nada sem a liderança dele.”
Mas, por que desse nome EX-? Viraram turma na época da revista Realidade, em 1966. Depois de quase três anos, a maioria deixa os Civita, dois meses antes do AI-5. Sérgio de Souza comandou a retirada. Saem depois de os patrões afastarem Patarra e nomearem um “interventor”, um “capacho”, “capataz”, “filho da puta”. Até hoje se referem assim a Alessandro Porro. Logo Serjão perde a paciência. E a senha para a debandada de quase todos é esta: ele se dirige à sala de Porro e diz em alto e bom som o que a equipe quer dizer: “Você é um rato!”
Partem em busca do sonho de construir uma imprensa sem patrão, sem censura. Criam editoras e semeiam revistas. Sérgio e Narciso, depois de várias publicações fechadas, buscam pelo nome de mais uma para seguir na luta. Sacada do Serjão: eram ex-Realidade, ex-Ideia Nova, ex-Revista de Fotografia, ex-FotoChoq, ex-JornaLivro, ex-Palavrão (revista de palavras cruzadas), ex-Bondinho e ex-Grilo. Óbvio: “EX-”
O EX- 16, sobre a morte de Herzog, com a manchete “LIBERDADE LIBERDADE ABRE AS ASAS SOBRE NÓS”, esgotou. Vendeu 30 mil exemplares na banca. Mais 20 mil, numa segunda edição. “Veio uma bolada.” Narciso teve uma ideia para dobrar esse dinheiro, antes do próximo, 17. Era dezembro, por que não um especial de Natal? “Nos primeiros números, vendíamos 8, 10 mil. Agora, pelo menos 50 mil nos conheciam. Era animador.”
Patarra raspou o tacho e somou mais algum à receita. Sai “O melhor do EX-”, 60 páginas, 50 mil exemplares, com as melhores reportagens, artigos, fotos e tirinhas desde o n° 1. Até mesmo a fotomontagem do Nixon ali. “Ia vender”, tinham certeza.
Despertada pela edição que continha a reportagem do Vlado, a repressão esperou o momento certo para agir contra o jornal.
O especial estava na distribuidora, pronto para chegar às bancas, quando entram na redação dois policiais federais. Um alto, largo, raivoso e truculento, com a camisa aberta e o revólver à mostra, escancarado, na cintura. Ameaçador. Outro, mais mauricinho, com a arma parcialmente escondida. Um deles mostra o mandado:
– A edição “o melhor do EX- está apreendida!”
A partir daí, o EX- foi colocado sob censura prévia: tudo que fosse publicado precisava passar por Brasília antes.
Censura, apreensão e fechamento
Tentaram driblar a ditadura mudando o nome do jornal. Produziram o “Mais Um”.
Kalili fez uma diagramação nova e pediu ao artista gráfico Jayme Leão para desenhar o logotipo do “Mais Um” igualzinho ao logo da Coca-Cola. Copiaram até a frase publicitária da marca, à época: “ISSO É QUE É!” Ao lado, um carimbo: “selo de garantia EX- Editora Ltda”. No recheio, reportagens de Octávio Ribeiro sobre o esquadrão da morte; Alex Solnik e a história de um ex-vereador que denunciou um prefeito e apanhou no quartel; além de José Trajano, entrevistando Wilson Simonal, acusado de colaborar com o Dops.
Chegou às bancas em janeiro de 1976. Vendeu um pouco, mas logo HAF e Mylton receberam uma intimação para comparecer à Polícia Federal, à rua Xavier de Toledo. Um tal de coronel Barreto os recebeu com o “Mais Um” nas mãos.
– Do que se trata isto?, pergunta, apontando à primeira página, com voz raivosa.
– É nosso novo jornal, responderam.
Só é possível rir hoje, passados tantos anos, conta Mylton.
O coronel disparou:
– É o mesmo jornal! O tal de EX-!
– Mas coronel, é outro logotipo. Veja a diagramação, é diferente…
Ele titubeou por um instante. Aí teve um chilique ao dar com o titulozinho Comicus (uma gozação em cima da palavra cômicos) da seção de charges
NARCISO ESTAVA DESCONFIADO QUE TINHAM VINDO BUSCÁ-LO. ESTAVAM NA SALA, VESTIDOS COM ROUPA COMUM
– Comi-cus? Vocês não têm compostura!, bradou.
– Ou vocês param, ou não me responsabilizo pela integridade física de vocês
Kalili bolou uma terceira publicação: “Ó nós aqui outra vez”. Mas não tinham mais dinheiro. Perderam tudo com as apreensões. Ficou só no título.
A ditadura sufocara economicamente o único veículo que cobriu a fundo o assassinato de Herzog.
A reportagem do EX- virou livro, publicado por Hamilton Almeida Filho no aniversário de dois anos da morte de Vlado. Mino Carta escreveu a apresentação.
“A morte de Vlado Herzog já é história. Ela é um divisor de águas. Se hoje, nos bastidores do poder, nos corredores do Palácio do Planalto, nos túneis do tempo de Brasília, ouvimos falar em extinção do AI-5 e em fim do arbítrio – expressões inimagináveis há dois anos –, isto também se deve à morte de Vlado. […] Foi também a partir daí que muitos venceram o seu próprio medo, ou a sua própria apatia, e experimentaram finalmente a necessidade de participar, de interferir, de protestar – ou seja, de dizer, para si mesmos em primeiro lugar, que estavam vivos.
A memória daquele outubro em que Vlado morreu, preservada por EX-, teve esse mérito, para bem da minha alma: fez-me sentir o passado para melhor enxergar o presente. Como valeu para mim, vale para todos.”
Palmério Dória narrou a importância da matéria no especial sobre o EX-, produzido com apoio do Instituto Vladimir Herzog.
“Semanas depois, num encontro fortuito na rua Major Quedinho, o magnífico repórter Ricardo Kotscho, que estava no grupo de jornalistas que visitou o EX- naquela noite, me disse: ‘Vocês ampliaram os nossos limites.’ A reportagem de um nanico – termo cunhado pelo escritor João Antônio – viria a disputar o Prêmio Esso pau a pau com O Estado de S. Paulo. O Estadão venceu com ‘Assim Vivem os Nossos Superfuncionários’, sobre o Escândalo das Mordomias, coordenada pelo próprio Kotscho. Mas o EX- teve os votos de Cláudio Abramo e Carlos Castelo Branco. Se há placar moral – criação de Otelo, o Caçador, nas páginas de esporte de O Globo –, o EX- foi o vencedor.
Cláudio e Castelinho entenderam: sem a reportagem do EX-, não teria havido a reportagem do Estadão.”