JORNALISTAS CORAJOSOS FIZERAM A ÚNICA MATÉRIA DE FÔLEGO SOBRE A MORTE DE VLADO NAQUELE MOMENTO, CONTRIBUINDO PARA A QUEDA DA DITADURA
por Sérgio Kalili
Narciso Kalili mostra um logotipo de uma capa de jornal. Lembra um pouco o da Coca-Cola. “Ó nós aqui outra vez”. “Foi mais uma tentativa de fazer o EX-, a última”. Meu pai era de uma turma corajosa de jornalistas, que, como fica claro, não perdia o bom humor nem o sarcasmo, mesmo sob a ditadura militar. Não vivia de passado, mas eu estava curioso, e ele tinha guardado alguns dos trabalhos que mais gostou de fazer durante os anos 1960 e 1970.
O independente EX- começou a morrer depois de uma de suas maiores, e, sem sombra de dúvida, a mais importante reportagem. “Escrevemos a seis mãos”, brinca Mylton Severiano, o Myltainho. “Cada hora sentava um à máquina. Saía um, descansava um pouco no sofá, vinha outro, continuava… Comecei eu, veio o Narciso ou o HAF [Hamilton Almeida Filho] …”
A manchete da edição da matéria sobre a morte de Vlado, reproduzida em fac-símile nesta edição do Unidade, é o estribilho do Hino da Proclamação da República: LIBERDADE LIBERDADE ABRE AS ASAS SOBRE NÓS. “Esse título é do Narciso”, lembra Dácio Nitrini, um aprendiz de feiticeiro à época.
Jornais sob ameaça
O EX- não tinha censura prévia, imposta quando a ditadura militar acreditava haver necessidade. O que dizia o decreto-lei No 1.077, de 26 de janeiro de 1970, do presidente general que mais matou gente, Emílio Garrastazu Médici:
“Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação.
Art. 2º Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal, verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior.”
Nos jornalões, para não arriscar, o governo destacou funcionários públicos censores com a função de checar o que seria publicado antes. Nos periódicos menores, as autoridades obrigavam o envio prévio do material à Polícia Federal para aprovação somente àqueles em que queriam exercer controle maior.
No início, escapavam do torniquete. Deve ser porque nem sempre os militares entendiam as denúncias, reportagens e textos em forma de ironia e sarcasmo da turma, ou vai que pela distribuição, restrita a São Paulo e a poucos pontos de venda no Rio. “A distribuição era própria, com os exemplares deixados em sistema de consignação nas bancas. Saíam da gráfica, eram colocados no porta-malas da perua do Narciso e distribuídos. Os jornalistas da equipe mal viviam do EX-, a maioria fazia freelance ou tinha um segundo emprego. E como era um grupo muito unido, com espírito coletivo, apoiava-se quando necessário”, conta Dácio.
A tiragem pode ser outra explicação para a falta de censura imediata. Não era pequena, também não era gigante. A maioria das edições ficava em torno de 18 mil exemplares. A exceção foi a do Vladimir Herzog, com duas tiragens que somaram cerca de 50 mil.
Por óbvio, a censura estava de olho. Volta e meia os jornalistas que faziam o EX- eram chamados a prestar contas. Alguns terminaram presos. Mesmo quando quem deu voz de prisão não entendia muito a matéria.
O grupo acabava descobrindo o quanto incomodava, ou conhecendo a reação da repressão, com a publicação já na rua. Se, por um lado, sem o controle prévio da ditadura, havia a chance de ousar primeiro e perguntar depois, por outro, o risco poderia ser maior.
“Nós passamos mais sufoco do que o Raimundo [Pereira]. Por que? Porque o [jornal] Movimento tinha censura prévia, então, mandava o material [para o Serviço de Censura de Diversões Públicas do Ministério da Justiça, que dizia] ‘não pode’, rabiscou, acabou”, afirma Myltainho. “Mas também não éramos idiotas de nos entregar. A reportagem sobre a morte do Vlado é um exercício de…, como é que se chama aquilo? Fio da navalha de monta. Um baita exercício de fio da navalha, dizer tudo sem dizer. Sabe o que é dizer tudo sem dizer? Quem assinou a matéria? A matéria é assinada no próprio texto.”
“Quem ouviu a notícia foi um de nós”
A reportagem começa assim:
“Quem dava a notícia, às 2:30 da madrugada de domingo (26/10), pelo telefone, era Sandro, locutor e funcionário da TV Cultura, SP. Quem atendeu e ouviu a notícia foi um de nós: Mylton Severiano da Silva.”
Quem ligou foi Sandro Villar, que falou comigo recentemente. “Seu pai foi um pai pra mim na TV Cultura. Sempre lembro dele, do Myltainho, de todos. Liguei pra dar a triste notícia, e estive em vários lugares, inclusive onde estava o corpo do Vlado.”
Em outro trecho, adiante, mais dos autores:
“Myltainho, Narciso e Palmério [Dória] relembram agora para o EX-:
‘O Vlado chegava sempre no meio da tarde, aí pelas 4 e meia. Naquela época, ele era uma espécie de secretário do telejornal. Era de chegar trabalhando: pegava a pauta, lia imediatamente com uma atitude muito sua, a de coçar alguns cabelos do alto da cabeça, de pé, e o papel na outra mão.”
Hamilton também assina algumas vezes, como em um diálogo que tem com um entrevistado:
“‘– Pelo amor de Deus! Me poupe!’
Paulo Nunes nervoso, mãos trêmulas, camisa de seda azul com bolas brancas, pede ao EX-editor Hamilton Almeida Filho (dentro da redação do telejornal da TV Cultura), que faça como todos os jornalistas e omita o seu nome da história da morte de Vladimir Herzog.”
Em alguns trechos, a reportagem diz que Vlado foi assassinado sem dizer.
“As cerimônias do enterro de Vladimir Herzog realizaram-se por completo e de acordo com os ritos seguidos pelas correntes liberais da religião judaica, à qual os familiares de Herzog são filiados. Foram cerimônias normais, pois o Chevrah Kadish – Sociedade Sagrada – não encontrou indícios que comprovassem o suicídio do jornalista, o que implicaria a alteração dos procedimentos, inclusive o sepultamento em local diferente.”
Aqui também:
“Clarice Herzog, junto com os editores do EX-, examina o seu depoimento a essa reportagem. Passados 10 dias, Clarice mostra a mesma clareza de raciocínio e coragem com que lutou desde o velório:
– Eu vou ser convocada para depor no inquérito que investiga como meu marido morreu. Pode ser que não adiante nada. Mas eu, meus filhos e o Vlado merecem que eu tente. Com a Ordem dos Advogados, com a Comissão de Justiça e Paz da Cúria, com o Sindicato dos Jornalistas, ou sozinha. Eu, realmente, não assumi a morte do Vlado. Não senti medo, não sinto agora.”
Jornalistas de resistência
A turma da resistência que fundou o EX-, em 1973, conhecia Herzog.
“Tinham trabalhado com ele, no mesmo telejornal, Mylton Severiano, Narciso Kalili, Palmério Dória de Vasconcelos, EX-editores. Todos chegaram a trabalhar juntos, entre 73/74, durante a primeira vez em que Vladimir Herzog entrou para a TV Cultura.”
Os principais EX-editores vinham da revista Realidade, da Editora Abril. Solidificaram uma amizade tão forte e íntima que o escritor e jornalista Roberto Freire, membro do grupo, dizia que eram todos “cúmplices”. Fez até um livro com esse título em que fala da amizade, irmandade, em tempos bicudos. “Nesse livro, refiro-me ao seu pai, a toda a turma”, disse Bigode, como era chamado pelos amigos, depois de me abraçar, durante o lançamento do livro no Conjunto Nacional, em 1995.
Sérgio de Souza, o “Serjão”, a quem todos chamavam de “Capitão”, o mestre-editor de texto de Realidade, e Narciso Kalili, uma máquina de criatividade e ousadia, viviam tão grudados que Ricardo Kotscho brincava e se referia aos dois como “o casal”. José Hamilton Ribeiro apontava que a cúpula da revista era Sérgio, Narciso, Eduardo Barreto, diretor de arte, e Paulinho (Paulo Patarra) – na prática, o diretor da revista; nos créditos, redator-chefe. Narciso, ele próprio, estampou duas capas: uma de diabo e outra se injetando para uma matéria sobre drogas.
Serjão conheceu Narciso no Notícias Populares, em 1963, onde ingressou como repórter. Kalili foi chamado para dirigir a primeira equipe do jornal. No início, o NP era popular, mas não escorria sangue, era sofisticado. “Na época existiam duas escolas de jornalismo. Narciso pertencia à da Última Hora. Eu [Sérgio de Souza] era da Folha da Manhã e da Noite, ainda não era a Folha de hoje.” Na equipe, José Hamilton Ribeiro e Percival de Souza, também originários da Folha.
Com a queda do presidente João Goulart, em 1964, Narciso é demitido e entra primeiro na revista Intervalo, da Editora Abril, uma das pioneiras publicações especializadas em televisão, para depois passar para a Quatro Rodas.
Sérgio de Souza vai direto à redação de Quatro Rodas, exatamente no dia do Golpe de 1964, levado literalmente de carro por José Hamilton Ribeiro, então redator-chefe da publicação (Serjão nunca fez questão de dirigir). Cerca de dois anos depois, a Realidade é criada. “Viramos irmãos, Narciso e eu, em Realidade”, recorda Sérgio.
Quatro Rodas foi um ensaio para a revista Realidade. Estavam todos de passagem. Quando Mino Carta deixou a direção da publicação e rumou para o Estadão, Patarra tomou conta. “Trocamos turismo por índios: ‘O povo deve morrer’” [título de reportagem de Carlos Azevedo, o Azê ou Azevedinho, com o fotógrafo Luigi Mamprin].
Azevedo explica que enquanto Patarra discutia lá por cima, com a direção da Abril, como seria a futura publicação, ele quis dar um sinal da competência de sua equipe. “Mandou-me fazer uma reportagem sobre os índios de todo o Brasil, um grande balanço que envolveu quase três meses de viagem pela Amazônia e outras regiões. E saiu no lugar do caderno de turismo de Quatro Rodas, uma denúncia da trágica situação das tribos indígenas numa revista de automóvel!”
Carlos Azevedo definiu Patarra como um “arquiteto de revistas, condutor de equipes”. Teve outros sucessos, como Vejinha, mas “sua obra máxima foi Realidade”. Vai ser Patarra, outro EX-editor, quem vai dar uma injeção de dinheiro no exemplar da morte do Vlado.
Paulinho começou a montar a equipe. “Levei para Realidade quase todos os que tinha enfiado na Quatro Rodas e em outras revistas da Abril: o ‘maluco beleza’ do Narciso Kalili veio de Intervalo, Eduardo Barreto estava escondido em Claudia e Hamilton Almeida Filho, um gênio diabólico, como outros, veio da rua.” (entrevista concedida ao jornalista Gil Campos.).
O EX- PAGOU COM A SUA EXISTÊNCIA A OUSADIA DE SEUS JORNALISTAS. COMPROMETIDOS COM A VERDADE E A JUSTIÇA, FORAM ELES QUE DENUNCIARAM CORAJOSAMENTE O ASSASSINATO DE VLADO
Dos tempos de faculdade
Zé Hamilton, Patarra conhecia da Faculdade Casper Líbero, de onde foram expulsos por liderar uma greve de estudantes. Cada novo nome aventado gerava debate em quem já estava no time. “O Roberto Freire só entrou em Realidade porque seu pai o bancou. O Sérgio de Souza só entrou em Realidade porque o Zé Palmito (Zé Hamilton Ribeiro) queria puxá-lo. E eu queria seu pai.”
Patarra havia conhecido Kalili antes. “Era cabeludo. Muito preparado, politizado. Fazia história na Maria Antônia.” Foi quem iniciou Narciso no jornalismo, convidando-o, em 1959, para trabalhar no Notícias de Hoje, publicação do então Partido Comunista do Brasil (PCB), em São Paulo. Depois, foram para o jornal de Samuel Wainer. “Éramos iguais. Por coincidência, eu estava na chefia [de Realidade], então, me desafiava. E isso praticamente só ele fazia comigo. Seu pai e eu vínhamos da Última Hora, do jornal dos comunistas. Nós éramos um grupo, eu e ele.”
Conta de certa vez que o amigo-irmão gastou toda a verba da reportagem com a população simples de uma aldeia de pescadores, em Canoa Quebrada, no Ceará. E verba em Realidade nunca era pouca coisa. Até hoje, volta e meia, sou procurado por filhos ou netos de personagens ou moradores mais novos de lugares das matérias de meu pai, que deixaram marcas duradouras.
Myltainho, que também passou por Quatro Rodas, vem depois, pelas mãos do secretário de redação da revista, Woile Guimarães, seu compadre de Marília, onde nasceram, e do amigo da Folha Otoniel Santos Pereira. “O lema de Patarra era ‘só vem para o nosso grupo bom texto e bom caráter’”, revela. Passa a ajudar Serjão na edição dos textos da “cambada”.
Talento precoce
Hamilton Almeida Filho, o HAF, ou Hamiltinho, o outro EX-editor que, com Myltainho e Narciso, fechou a reportagem da morte de Vlado, entra ainda mais tarde. Era precoce, um dos mais novos da turma.
“A primeira vez que eu perguntei: mas, quem é esse cara?!, esse cara era o Narciso Kalili, foi em 1962.” HAF tinha 16 anos. Era foca do jornal carioca A Noite. Acabara de começar na profissão, nas férias de julho de 1961. Em janeiro do ano seguinte, viajou para São Paulo para a cobertura da luta de Eder Jofre contra John Caldwell.
Como A Noite não tinha sucursal, o pai dele fez um bilhete ao editor de Esporte da Última Hora, de quem tinha sido amigo, Álvaro Paes Leme, pai do Álvaro José, da Bandeirantes. Paes Leme o tratou como filho e arrumou uma mesa, telefone, telex, “o diabo a quatro”, na redação de Samuel Wainer.
“Todo dia, sete horas da noite, chegava um cara, sentava na editoria de polícia e começava a transar o seu trabalho. Isso não seria nada se de repente outro cara não gritasse: Jacaré! E outro, do outro lado, lá: Jacaré! Jacaré! E, outro, Jacaré! E aí, quando tava no auge dessa coisa toda, Narciso subia na cadeira e: Jacaré é a puta que o pariuuuu!!!! Toda a redação aplaudia e vibrava, e, depois, todos continuavam como se nada tivesse acontecido. Esse é Narciso Kalili. Foi assim que esse puta cara entrou na minha cabeça, entrou na minha vida. Já de uma maneira subversiva. E ele era popularíssimo na redação. Uma coisa dele, que vai marcá-lo a vida toda.”
Narciso tinha muitos apelidos, Bagdá, Turco, mas Jacaré, Hamiltinho não sabe o porquê. Ele vai voltar jornalista-pronto a São Paulo na virada de 1963 para 1964, pelas mãos de Audálio Dantas, que vai buscá-lo no Jornal do Brasil e levá-lo à revista O Cruzeiro. Fica amigo-irmão de Kalili e da turma quando começa em Realidade, em agosto de 1967.
Em 1991, Célia Chaim escreveu uma matéria para celebrar o nascimento de Realidade. “A revista não corria atrás do que os jornalistas chamam de furo, uma notícia que ninguém deu. Seu furo mensal aparecia na maneira como eram tratados os assuntos. Nenhuma reportagem podia passar para o papel sem emoção.”
Dizia o olho da reportagem: “Há 25 anos, o mercado editorial brasileiro conhecia sua única experiência de imprensa ao mesmo tempo livre, ousada, abusada, criativa, inteligente – e lucrativa. A revista durou dez anos, fez escola e até hoje é discutida nas faculdades de jornalismo, enquanto a maioria dos repórteres reconhece: nunca foram tão felizes.”
Darci Ribeiro cravou: “Boa demais para durar”. A turma original cria a publicação em abril de 1966, e inicia a debandada em 1968.
“A forma como Realidade tratou assuntos-tabu (principalmente sexo, vida de operário, de estudante e de padre) ia moldando um estado de espírito que Millôr Fernandes definiria, como a ‘geração Realidade’”. Reproduziu José Salvador Faro, em seu livro Realidade, 1966-1968, Tempo da Reportagem na Imprensa Brasileira.
Na última entrevista de Serjão, em fevereiro de 2008, respondeu à estudante Luciana Chagas.
– O que você acha do lide?
– Acho dispensável, porque não acredito em regras para escrever na imprensa, ou nunca teríamos nada novo no horizonte.
Tinham pavor dos manuais de redação.
Se existia alguma regra, era ficar enquanto pudessem fazer jornalismo puro, e jornalismo se exercia com liberdade de consciência quase total. Ninguém podia se sujeitar. As ideias eram colocadas ao patrão sem que ele nem percebesse. Por isso, as reuniões de pauta, as verdadeiras, não aconteciam na Abril, mas na casa do pessoal, cada hora na casa de um. Quando se reuniam com Roberto Civita, o diretor formal da publicação, o filho do dono, já tinham tudo pronto.
“A gente chegava com tudo armado. Era uma puta de uma canalha! Uma canalha super preparada”, HAF abre o sorriso. “A gente chegava na reunião [formal de pauta, na editora], sabendo quem é que ia sugerir tal matéria. Quem é que ia sugerir uma viagem… porque quem ia viajar era o outro. Pô, ‘nós precisamos mandar um cara para o Vietnã’. Qualquer pessoa sugeria, menos o Zé Hamilton. A gente já sabia que íamos mandar o Zé. Era um time muito unido e sabia agir politicamente.”
E o grande artífice dessa relação da equipe com o filho do dono, que segurou dois anos, foi Paulo Patarra, além de ser um dos responsáveis pelo projeto e por dar padrão à revista. “Ele era o cara que dizia: ‘Roberto, isso que você está falando é bobagem’. Chamava o sujeito de burro… E o Roberto concordava.”
Anos mais tarde, Patarra vai torrar boa parte da indenização da demissão que recebeu da Abril, de onde só saiu no início dos anos 1970, para bancar a edição do EX- que noticiava a morte de Vladimir Herzog.
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