Morte interdita ganha voz na literatura

por João Marques

“Durante muito tempo, a forma de lidar com o adoecimento e a possibilidade da morte era acompanhada por uma perspectiva chamada de morte domada, domesticada, familiar: era conhecida por todos e acontecia em domicílio. Muitas doenças não tinham cura, e a presença de certos sintomas, além da piora do quadro do enfermo, indicavam a proximidade da morte; era uma morte anunciada, e as pessoas tinham espaço para manifestar e compartilhar seu pesar, tristeza ou outros sentimentos que se fizessem presentes.” (Maria Julia Kovács, em posfácio para uma edição do livro, A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói).

Publicada pela primeira vez em 1886, a novela do escritor russo também trazia elementos dessa morte domada, mas já apontava para o que estava por vir: “a morte suja, degradante, da qual não se pode falar: a morte interdita.”. Morrer é o nosso maior medo, falar do assunto transformou-se em tabu e a literatura contemporânea vem suprindo esse déficit de palavras.

Entre os muitos títulos lançados, que tratam do tema, há três relevantes, publicados no ano passado: Antes do silêncio, do jornalista Rogério Pereira, em que o narrador fala da doença terminal da mãe, da rotina de hospitais e exames e, de forma prática, mostra suas incertezas e angústias diante do fim. Como em Tolstói — “Mor- reu Ivan Ilitch.” —, a morte aparece logo na primeira página do livro: “A mãe morreu.”

Já no ensaio biográfico O que é meu, o sociólogo José Henrique Bortoluci parte de entrevistas com o pai, acometido por um câncer, que durante cinquenta anos trabalhou como caminhoneiro e conta a história recente do país e da própria família. A doença do pai é um dos fios condutores da narrativa. O livro foi lançado em março, o pai morreu depois, no final de novembro, e a Folha de S. Paulo publicou um obituário, no início de de- zembro, escrito pelo próprio autor.

O outro lançamento é a autoficção As pequenas chances, (Todavia, 208 págs.), de Natalia Timerman. A narradora Natalia encontra, por acaso, o médico de cuidados paliativos que tratou do seu pai — já morto — e, em fluxo de consciência, começa a contar a história. A narrativa é construída em diversos planos, intercalados: a doença e a morte do pai; o esforço da irmã em voltar ao Brasil e encontrar o pai vivo — plano esse narrado em terceira pessoa, a partir das mensagens que a autora trocava com a irmã; os rituais do luto judaico; e a viagem para a Ucrânia, a fim de recons- truir a história da família.

“Uma das dores do luto é se deparar não apenas com o fim da vida, mas com o fim definitivo da história, que não pode ganhar do futuro novos significados e ver- sões, apenas do passado. Então buscamos novas versões do passado como se fosse um jeito de a história continuar.”

Natalia Timerman é médica psiquia- tra, mestre em psicologia e doutora em literatura. Além desse livro, publicou Desterros: histórias de um hospital-pri- são — relatos de sua experiência como psiquiatra do Centro Hospitalar do Sis- tema Penitenciário de São Paulo (CHSP) —, a coletânea de contos Rachaduras e o romance de estreia Copo vazio.