Ministério Público propôs a rejeição das contas do governo

Renúncias fiscais levaram Executivo a abrir mão de R$ 24 bilhões em 2019 e R$ 20 bilhões em 2020, valores concedidos por decreto e sem critérios claros a empresas

Ato de demitidos: além de provocar desemprego, governo estadual priva a população de serviços públicos que eram realizados por esses profissionais / Foto: EDUARDO VINÉ/SJSP

Se dependesse do Ministério Público de Contas (MPC), o ramo do Ministério Público do Estado (MP-SP) encarregado de fiscalizar receitas e despesas do governo estadual, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-SP) teria rejeitado as contas do governador João Doria correspondentes aos exercícios fiscais de 2019 e 2020, em razão das graves irregularidades nelas detectadas. 

Ao fazer sua avaliação, o MPC leva em conta também os detalhados pareceres de dois outros órgãos técnicos do TCE: a Diretoria de Contas do Governador (DCG) e a Assessoria Técnico-Jurídica (ATJ), que fazem um verdadeiro pente-fino na contabilidade governamental. 

A opinião do MPC, porém, não prevaleceu. As contas de 2020, as últimas a serem examinadas pelo TCE, foram aprovadas, embora com ressalvas, na sessão de 23 de junho de 2021. Invariavelmente, o tribunal emite parecer favorável às contas dos governadores, limitando-se a fazer ressalvas e determinações com base nos pareceres dos órgãos técnicos. A corte de contas é majoritariamente composta por conselheiros oriundos do PSDB e do (P)MDB. 

Entre as várias questões apontadas pelo MPC, figura com destaque a das renúncias e desonerações fiscais que beneficiam grandes grupos empresariais, com o agravante de que tais privilégios são cobertos pelo segredo. Até recentemente, a pretexto de “sigilo fiscal”, nem mesmo o TCE sabia quais eram os grupos beneficiados com desonerações de bilhões de reais por ano! 

O próprio governo estadual estimou a renúncia de receitas para o ano fiscal de 2020 em R$ 17,4 bilhões no que diz respeito à arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e de R$ 2,7 bilhões em arrecadação de Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), totalizando mais de R$ 20 bilhões em um único exercício. 

Desrespeito a obrigações constitucionais

No seu parecer sobre as contas de 2020 do governador Doria, o procurador-geral do MPC, Thiago Pinheiro Lima, observou que o Estado “manteve o procedimento de conceder benefícios fiscais de ICMS através de meros decretos, em desrespeito à obrigação contida no artigo 150, parágrafo 6º, da Constituição Federal de 1988”. 

Lima enfatizou que a “recalcitrância da administração estadual em conceder renúncias por meio de decreto” (ou seja: sem apreciação pela Assembleia Legislativa) permaneceu mesmo após o Supremo Tribunal Federal julgar, em fevereiro de 2020, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.929/Distrito Federal, quando determinou que os convênios de ICMS celebrados pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) que veiculem isenções, incentivos ou benefícios fiscais precisam ser aprovados pelo Poder Legislativo. 

Ainda segundo o MPC, a lei estadual 17.293/2020 é “no mínimo curiosa”, porque, de forma “questionável”, “foi criada uma figura de concordância legislativa tácita para benefícios não analisados no prazo de 15 dias, como subterfúgio para contornar a obrigação constitucional de aprovação de novas renúncias [fiscais] por meio de lei específica”. 

O relatório prossegue lembrando que a lei 17.293/2020, “além de flagrantemente inconstitucional, é tecnicamente ininteligível, motivo pelo qual foram protocoladas numerosas ações judiciais, questionando tanto a legalidade da lei 17.293/2020 quanto a dos decretos editados com seu respaldo”. 

A “apreensão com o assunto” cresce, adverte o parecer do MPC, “ao considerar que […] ainda há 88 renúncias de receitas com prazo de vigência indeterminado” (destaques no original). No parecer relativo às contas de 2019, Lima já havia afirmado que é absurda a concessão de tais benefícios fiscais por tempo indeterminado, uma vez que renúncias só se justificam mediante periódica avaliação da existência de contrapartidas socioeconômicas que comprovem o acerto da medida. 

E mais: “remanescem intactas as principais irregularidades já apontadas desde as contas de 2016, ou seja: a concessão de incentivos fiscais por meio de decretos do Executivo, e a não comprovação de que as correlatas receitas foram renunciadas [sic] com base em critérios objetivos e bem delineados” (destaques nossos). 

Ao concluir, Lima opina, em nome do MPC, pela emissão de parecer prévio desfavorável não apenas em razão da questão das renúncias de receita, mas também por graves irregularidades identificadas nas contas relativas a “remanejamentos, transferências e transposições”, “aplicação na manutenção e desenvolvimento do ensino”, “utilização do Fundeb” (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) e ainda pelo descumprimento, por parte do governo estadual, de nada menos do que 30 “recomendações, determinações e alertas de exercícios anteriores”. 

Essa extensa lista de tópicos não cumpridos pela gestão Doria-Garcia pode ser encontrada nas páginas 212 a 219 do relatório do MPC. 

Em 2019, o mesmo quadro 

No exercício de 2019 a situação fora semelhante: as renúncias fiscais praticadas pelo governo estadual totalizaram R$ 24,33 bilhões. No seu pronunciamento aos conselheiros do TCE-SP, durante sessão virtual que julgou as contas, em junho de 2020, Lima referiu-se a nada menos do que 20 decretos do Executivo que concediam benefícios fiscais, e questionou o “tratamento privilegiado para alguns contribuintes”, que a seu ver deveria “ser discutido no parlamento, com a participação necessária da sociedade, e de modo transparente, o que não tem acontecido”. 

O procurador-geral do MPC apontou também a “inexistência de estudos, dados e demonstrativos de que o benefício fiscal atende o interesse público, econômico e social”, frente à evidência de que “há uma diminuição da capacidade financeira do Estado, que deveria ser objeto de medidas de compensação, inexistentes nesse caso”. Ele enfatizou igualmente a não prestação de contas e a “absoluta falta de transparência” de tais benefícios, uma vez que o governo se recusava a identificar os respectivos beneficiários. (PP)