por João Marques
“Comecei esta história em terceira pessoa pensando que os casos ganhariam mais valia. Aos poucos vou me perdendo nesse narrar vidas fora de mim, mas que não deixam de ser eu mesma.”
Quem conta a história é Maria Teresa, aos 92 anos de idade, personagem narradora de Mata Doce (Alfaguara, 304 págs.), romance de estreia de Luciany Aparecida, que recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura e foi indicado ao Prêmio Jabuti na categoria romance literário. Teresa foi uma órfã adotada por duas mulheres, numa comunidade rural, que após grande trauma, tornou-se datilógrafa e matadora de boi. “Quando comecei a criar essa história pensei que a contaria apenas com uma voz narrativa clássica, em terceira pessoa, onisciente, mas a personagem quis falar, pôs a mão na máquina e esse livro ficou sendo as memórias dela.”, revelou a autora numa entrevista para o jornal Estado de Minas.
Adotada pela professora Mariinha e pela travesti Tuninha, Maria Teresa vivia com suas mães no casarão mais antigo da região, com um grande roseiral e cheio de histórias ancestrais contadas de forma não linear. A primeira a ocupar esse casarão foi Eustáquia da Vazante, a avó de Mariinha. Mata Doce, lugar de mulheres valentes e obstinadas, era uma comunidade quilombola. Maria Teresa cultivava rosas brancas e estava de casamento marcado com Zezito. Mas na véspera da cerimônia, quando experimentava o vestido, seu noivo foi assassinado pelo coronel Amâncio, por disputa de terra. Traumatizada, ela foi trabalhar no matadouro e virou a Filinha Mata-Boi. Segunda geração de mulheres alfabetizadas, Maria Teresa também escrevia cartas ditadas pelas pessoas analfabetas da comunidade. Somadas à narrativa em primeira e terceira pessoas, essas cartas ajudam a ampliar as vozes e dão um caráter confessional à trama.
Luciany Aparecida nasceu no Vale do Rio Jiquiriçá, na Bahia, em 1982. É doutora em Letras, com pesquisas nas áreas de nação, imigração, memória e identidades. É autora do livro de poemas Macala e da peça Joanna Mina. Mata Doce é o seu primeiro romance, antes dele, usava pseudônimos para escrever. Como Ruth Ducaso, publicou Contos Ordinários de Melancolia e a novela Florim. Luciany começou a escrever ainda adolescente, fazia livros de artista, um único volume, e não mostrava a ninguém – tinha muita vergonha. Em 2011, pesquisando para escrever outro livro, foi a um presídio conhecer a oficina de escrita de Denise Carrascosa, professora da Universidade Federal da Bahia. Lá encontrou um grupo de 15 mulheres, quase todas negras. Naquele dia, havia muita comemoração em todo o presídio, pois algumas presas seriam libertadas. Ela aproveitou o barulho e revelou o seu segredo: “Eu sou escritora”. Foi a primeira vez. “Eu era uma escritora presa, por não entender que podia, numa cena pública, dizer assim: eu escrevo, eu sou escritora.” •
“Sigo batendo essas recordações na máquina e vou me apenando de quem as possa ler. Chego a pensar em inventar outro desfecho para a minha história, para que pudesse melhor distrair a leitura de quem um dia pegar estes papéis.”