Mães estão esgotadas

por Priscilla Chandretti | infografia Mario Kanno

Aquilo que já se discute há alguns meses para as mães em geral foi confirmado como uma realidade para muitas mulhe­res de nossa categoria por uma pesquisa da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). “Você se sente sobrecarregada neste período de pandemia?” 85,9% das 629 profissionais que participaram do levantamento responderam SIM a essa pergunta. Nas respostas às perguntas abertas, as jornalistas expressaram reiteradamente questões sobre excesso de trabalho, falta de descanso, sofrimento emo­cional ou preocupações com as finanças da família. Nós conversamos com várias mulheres que estão passando pela sobrecarga que a pesquisa aborda. Uma delas é a Adele Grandis, mãe da Serena, de 8 anos, e do Pax, de 1 ano e meio, que tem usado as madrugadas para dar conta do serviço. Enquanto o número de clientes aumentou (ela assessora pequenos e novos negócios), Adele passou a ser a única responsável financeira da casa, pois seu companheiro ficou sem trabalho. Além disso, assumiu a tarefa de acompanhar a educação da filha, que tem muita dificuldade em se manter concentrada nas aulas online. Desde o início da pandemia, trabalhou todos os finais de semana.

“O esgotamento físico e mental foi absurdo e minha rotina mudou completamente. Eu sempre fiquei acordada de madru­gada, mas antes esse era um momento para mim, eu lia um livro, assistia a um filme enquanto as crianças dormiam. Com a pandemia, eu não consigo trabalhar direito de dia porque toda hora vem alguém me chamar. Vou conseguir mesmo na hora que todo mundo dorme, umas 23 horas, e viro a noite, até umas 6 horas”, conta Adele.

O trabalho também avança pela madrugada para a Cristiane Gercina, que tem a Luiza, de 13 anos, e a Laura, de 8. Tanto ela quanto seu companheiro estão em home office. É o pai quem acorda cedo, com a filha mais velha, que estuda de manhã – Cristiane tentou acompanhar as atividades da Luiza, que tem Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), mas só conseguiu no início.

No início da tarde, ela dá almoço, lava louça, toma banho, acompanha as aulas da filha mais nova e passa orientações ao repórter (é coordenadora assistente no jornal Agora). Faz tudo isso ao mesmo tempo. Acostumou-se a trabalhar com a Laura sentada ao lado para a aula remota, “com a professora falando, minha filha falando, todo mundo falando!”.

A Ludmilla Souza, que trabalha na Agência Brasil (da EBC), afirma que “o peso aumentou claramente, pois além do trabalho remoto, temos ainda que dar uma de professora, cozinheira, faxineira, recreadora, não tem descanso. E isso somado à pressão por produção”. Para cuidar dos seus dois filhos, um de 7 anos e outro de 1 ano e 11 meses, ela não só perdeu a rede de apoio – a sogra e a cunhada cuidavam deles eventualmente, mas são ambas do grupo de risco – como também o seu marido tem passado menos tempo em casa. “Ele está tendo de ficar o dia inteiro na loja de que é proprietário, pois tem funcionário que é grupo de risco, e eu fico com as crianças em casa, tentando me dividir, e ainda amamentando. ”

Graziella Valenti relata uma contradição que viveu nos primei­ros meses da pandemia: ao mesmo tempo que se sentia no auge de sua realização profissional, estava estressada pela situação. A jornalista mudou de emprego bem no início da quarentena e assumiu um novo projeto na Exame – não chegou a ir à redação presencialmente, já começou em home office e acabou nem co­nhecendo pessoalmente os colegas de trabalho. Ela mora com o filho de 9 anos, o Lorenzo, e, além do começo em novo emprego, adotaram um cachorro durante a pandemia.

Graziella conta que, nos primeiros dias, ficou “completamente desesperada”. Dispensou a babá de ir trabalhar no início, o que coincidiu com o período de maior trabalho no desenvolvimento de sua nova coluna. Nos primeiros três meses, ficou sozinha com o Lorenzo na maior parte do tempo. Ela explica que o pai é muito presente, mas, apesar da guarda compartilhada, Lorenzo fica a maior parte do tempo em sua companhia.

Nesse período, acordava às 5 horas para tentar dar conta das coisas, e ia dormir à meia-noite. “O nosso horário ficou uma zona, almoçamos entre 14 horas e 16h30. Quando eu trabalho até tarde, ele também acaba indo dormir tarde. E acabo afrou­xando por exemplo a restrição para o tempo que ele fica nos eletrônicos. Eu estava surtando.”

Outra jornalista que falou conosco foi a Natalí Alencar, mãe do Luís Henrique, de 10 meses de idade. Ela é redatora na agência CRT e editora no portal Prodview, e disse que a quarentena chegou bem quando ela se preparava para o retorno da licen­ça-maternidade. A rotina dela e do marido (ambos em home office) tem sido revezar-se entre quem está trabalhando e quem está cuidando do bebê.

Para ela, a ausência de convivência com a família foi muito danosa. “Comecei a ficar triste, me sentindo muito só, de não ter com quem compartilhar as coisas. Aí eu decidir ir ver pelo menos minha mãe, meu pai e minha irmã, com todos os cuidados. Eles esperaram muito a chegada do neto, há muito tempo que não tinha um bebê na família. Eu pensava que meu filho estava crescendo e meus pais não estão acompanhando, isso mexeu comigo.” Mas ela vê um lado positivo. “Eu acompanhei coisas do desenvolvimento dele que muitas mães acabam não tendo oportunidade. Ele pôde mamar 100% no peito até os 6 meses, o que muitas mães que trabalham fora não conseguem.”

Natalí tem podido contar com compreensão e flexibilidade no local de trabalho quando precisa, por exemplo, remarcar alguma entrega. A Jéssica* não pode dizer o mesmo. O jornal em que trabalha, na região metropolitana de São Paulo, não aceitou que ela fizesse seu trabalho remotamente para cuidar da filha, de 12 anos (por isso, optamos por não identificá-la aqui). A irredutibilidade da empresa tornou as coisas muito mais difíceis para ela e seu marido, que é free lancer e tem cuidado da menina durante o horário de trabalho da mãe. Eles estão vivendo na correria. Ao mesmo tempo, como o jornal reduziu seu salário, ele precisa pegar os poucos frilas que aparecem.

Divisão sexual do trabalho

É o que Adele também descreve. “A minha cabeça não para, porque, além de pensar no meu trabalho, tenho de pensar no que as crianças estão fazendo, no que vamos jantar. Ele cuida? Cuida. Mas a cada cinco minutos vem perguntar o que tem de fazer. Tem sido bem desafiador.”

Desafios para a categoria

A pesquisa, com participação expressiva, terá a função de levantar lutas que os jornalistas e seus sindicatos vão preci­sar enfrentar, na opinião de Samira, dirigente da Fenaj, que é também mãe de três meninos, de 7, 16 e 18 anos, e enfrentou seus próprios desafios para conciliar maternidade, exercício profissional e atividades sindicais. Ela defende que, durante a pandemia, é prioritário buscar negociações com os patrões para regulamentar o home office (veja o box).

“O primeiro passo é ouvir as mulheres da categoria e organizar suas demandas”, diz Samira. Sobre isso, Érica Aragão (mãe da Rafaela, de 7 anos, e do Reginaldo, de 20), diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, pelo qual participa da Comissão de Mulheres da Fenaj, lembra que as próprias condições para que as mães participem das atividades sindicais precisam ser discutidas. “Apenas 30% das participantes da pesquisa são sindicalizadas. Por quê? O quanto os afazeres domésticos, essa alta carga, as afastam? Eu, como mãe jornalista, não consigo estar sempre presente, e mesmo nas atividades em que o Sindicato organiza creche para deixar nossos filhos, não consigo dar 100% da atenção.”

Quais são as demandas? De forma geral, as jornalistas com quem conversamos avaliam que nosso mercado de trabalho não pensa a maternidade (nem a paternidade). Isso se reflete claramente na discussão sobre a licença-maternidade: é preciso aumentar a licença-paternidade, mas com o cuidado para não substituir a proteção à maternidade, com a necessidade da licença de 180 dias.

É também como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) enxerga a questão. Numa discussão que envolve a ampliação dos direitos da mãe, o entendimento de que a responsabilida­de pelo cuidado com os filhos deve ser compartilhada entre mulheres e homens (e toda a sociedade), e a preocupação com a possibilidade de enfrentarmos ainda mais discriminação no mercado de trabalho (em um país no qual metade das mães são demitidas nos primeiros dois anos após o parto), a CUT reivindica uma licença parental compartilhada. Por exemplo, com seis meses para mãe e seis meses para o pai, de modo consecutivo ou concomitante, com remuneração integral pelo Estado. A Central também defende mais creches públicas, de qualidade e em tempo integral.

Na EBC, onde trabalha a Ludmilla, o Acordo Coletivo de Tra­balho garante a jornada diária máxima de 6 horas às empregadas mães, a título de acompanhamento do desenvolvimento do filho, até 1 ano de idade. Por sugestão do Coletivo de Mulheres da empresa, do qual ela participa, os funcionários decidiram que é uma questão premente brigar, na campanha salarial em curso, pela ampliação desse direito até os 2 anos, e que seja válido para o empregado nutriz (pai ou mãe).

Há ainda as questões de igualdade salarial. Entre os jornalistas de São Paulo, o salário das mulheres é 16,1% menor, segundo le­vantamento do Dieese para o Sindicato. “A diferença salarial tam­bém influencia em quem vai cuidar, quem vai sair do mercado de trabalho, se for necessário, se a mãe recebe menos, por exemplo. A gente vê que nas redações há muitas mulheres em cargos de chefia. Elas normalmente já estão com os filhos, ou têm uma rede apoio muito estabelecida. Não adianta só ser dedicada, ter formação, é preciso ter uma empregada doméstica”, afirma Cristiane.

Aqui na redação do Unidade a gente entende bem como é tudo isso. Fizemos esta e as outras edições dividindo as atenções da mãe da Olívia, de 14 meses, que tem assistido muito mais Palavra Cantada do que se pretendia, e da mãe do Arthur, de 9 anos, que nesse período contou com o horário de almoço da mãe para realizar provas e assistir às aulas no computador. Tamo junto nessa luta por melhores condições de trabalho para as mulheres trabalhadoras.

* Nome fictício

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Urgente debater as condições de trabalho em casa

O home office, mesmo em condições normais de pressão e temperatura, divide opiniões. Nossa entrevistada da edição, Rita Lisauskas, afirmou que o trabalho em casa permitiu recuperar momentos com o filho que antes o jornalismo lhe tirava (próxima página). A Graziella Valenti, que conversou com a gente para esta matéria, não o enxerga como uma solução para a mulher. “Ele pode ser mais cruel. Mesmo considerando o ‘normal’, as mulheres estão sempre resolvendo coisas dentro de casa. No médio e longo prazo, vai trazer prejuízos para nossas carreiras.” É um debate.

Independentemente disso, é urgente discutir a questão da jornada. Há um motivo por que muitos jornalistas têm trabalhado até 12 horas. A Reforma Trabalhista, em 2017, estabeleceu que o emprega­dor não precisa controlar o ponto no teletrabalho (o nome legal para o home office). Desde então, nosso Sindicato tem reivindicado esse controle das empresas. Na Convenção Coletiva de Jornais e Revistas da Capital, por exemplo, foi estabelecida a observância da jornada de trabalho nessa modalidade. A questão também foi pauta de assembleias no Estadão, Editora Globo e Valor, entre outras, no momento que as empresas reduziram salários com redução de jornada. O tema deve voltar agora em outras negociações, como na EBC e em Jornais e Revistas do Interior.