Luiz Eduardo Merlino, presente!

Há 50 anos, o aparato criminoso dos porões da ditadura cometeu um de seus crimes mais atrozes: torturou e assassinou um jornalista de 23 anos

por Decio Trujilo

Em 19 de julho de 1971, três carrascos do regime, um deles o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, tomaram a decisão de deixar agonizar até a morte o jornalista Luiz Eduardo Merlino, depois de quatro dias de suplícios no Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) na Rua Tutoia, em São Paulo. Ele tinha 23 anos.

Luiz Eduardo mudou-se para São Paulo em 1966, aos 17 anos, e logo começou a trabalhar como repórter no Jornal da Tarde. Ingressou no curso de História da USP e passou a atuar no movimento estudantil, onde conheceu Angela Mendes de Almeida, que se tornaria sua companheira. Em 1968, já na Folha da Tarde, cobriu o Congresso da UNE, em Ibiúna, no interior paulista.

No final de 1970, os dois, quadros do Partido Operário Comunista (POC), viajaram para a França para integrar-se à 4ª Internacional Socialista. Em meados do ano seguinte, ele voltou ao Brasil. Apenas quatro dias após sua chegada, foi preso em Santos por agentes do DOI-Codi na casa de sua mãe, Iracema Rocha Merlino. A irmã Regina Merlino Dias de Almeida testemunhou.

Luiz Eduardo foi levado para o DOI-Codi. Depoimentos à Comissão da Verdade de São Paulo de militantes presos no período dão a noção dos padrões de crueldade e desumanidade dos carrascos da ditadura, e permitem traçar a linha do tempo das últimas 48 horas de vida do jornalista.

Entre 17 e 18 de julho, Merlino foi submetido à tortura quase que ininterruptamente. A maior parte do tempo, esteve no pau de arara. Os espancamentos causaram sangramento por uma grande ferida numa das pernas. Era o início de um processo de gangrena. Mas as agressões e choques elétricos não foram interrompidos e vararam a noite inteira.

O silêncio de Merlino, que se negava a delatar, aumentava a fúria dos agressores, que intensificavam a violência. Tudo era comandado pelo então major Ustra. Pela manhã, o jornalista foi abandonado numa cela sem atendimento médico. Suas pernas começaram a adormecer e ficar azuladas. Partes do corpo estavam em carne viva, ele já não conseguia se levantar ou andar. Ainda assim, foi submetido a novo interrogatório. Seu estado de saúde piorou, a dormência se espalhou pelos braços.

À noite, decidiram tirá-lo dali. Foi colocado no porta-malas de um carro, como um sequestrado, e levado ao Hospital Militar, no Cambuci. Pela manhã, os médicos constataram a necessidade de amputação das pernas ou ele não sobreviveria. Três militares discutiram a questão e foi tomada a decisão de deixar que morresse. Ustra deu o voto de Minerva.

A família só foi comunicada dois dias depois, mas não encontrava o corpo. No Instituto Médico-Legal, negaram que estivesse ali. Era mentira. Adalberto Dias de Almeida, marido de Regina, que era delegado de polícia, conseguiu entrar e encontrou o cadáver do cunhado sem identificação. Ele foi sepultado em Santos num caixão lacrado.

A versão oficial dizia que Merlino fora atropelado na rodovia Regis Bittencourt ao atirar-se do carro que o levava para o Rio Grande do Sul. Os médicos Isaac Abramovic e Abeylard de Queiroz Orsini atestaram que Luiz Eduardo morreu devido a anemia aguda traumática provocada pela ruptura da artéria ilíaca direita. No laudo, os legistas deixaram em branco o item onde deveria constar se houve violência contra o morto.

Começaria a luta, que dura 50 anos e ainda não foi concluída, de Iracema, mãe; Regina, irmã; e Angela, companheira; para obrigar o Estado a assumir a culpa. Já nos anos de 1970, Iracema pediu a admissão do assassinato sob tortura e a culpabilização dos assassinos, mas somente nos anos 1990 a real causa da morte de Merlino foi tornada pública. A pedido da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, os médicos Antenor Chicarino e Dolmevil França de Carvalho Filho afirmaram, a partir da fotografia anexada ao laudo necrológico, que o jornalista apresentava manchas compatíveis com as causadas por tortura.

Uma quarta mulher integraria os esforços da família a partir dos anos 1980. A jornalista e sobrinha de Luiz Eduardo, Tatiana Merlino, filha de Regina e Adalberto, conviveu com a imagem do tio desde a infância, mas foi na adolescência que conheceu toda a história. Começou então a acompanhar Iracema em reuniões e audiências. Hoje, conta que passou a conviver também com o trauma e o medo da avó. “Ela dizia que ‘eles’ estão por aí, continuam por aí, referindo-se aos assassinos.”

Dentro de casa, o tema esteve sempre presente, mas tratado com cuidado. “Era muito difícil falar sobre a violência que meu tio sofreu”, conta Tatiana. “Nunca falamos sobre o estado do corpo, por exemplo.” Até morrer, em 1995, Iracema trocava diariamente a flor que mantinha ao lado do retrato do filho na sala de casa. “Para nós, foi uma grande amargura ela morrer sem ver o desfecho da luta da sua vida.”

COMO A FAMÍLIA DE MERLINO, SEGUIMOS COBRANDO APURAÇÃO E PUNIÇÃO DESTE E TODOS OS CRIMES DA DITADURA

A história de Merlino inspirou Tatiana a abraçar o jornalismo. Ela está convencida de que a não punição dos agentes da ditadura está na raiz de comportamentos cada vez mais comuns das forças policiais de hoje. “Isso nos estimula a continuar na luta pela verdade.”

Também por isso, a família nunca desistiu. Em 2008, Regina e Angela moveram ação civil contra Ustra e sua equipe. Mas o militar conseguiu extinguir o processo na Justiça em 2010. As duas reivindicaram então indenização por danos morais e conseguiram a condenação. No entanto, em outubro de 2018, já depois da morte de Ustra, a Justiça arquivou o processo por prescrição.

Em 2018 haveria mais uma derrota. O Tribunal Regional Federal de São Paulo usou a Lei da Anistia para rejeitar o recurso do Ministério Público Federal (MPF) em outro processo, que pedia a condenação do médico Abeylard de Queiroz Orsini, pelo laudo necroscópico falso, e dos policiais Aparecido Laertes Calandra e Dirceu Gravina, por participação na morte de Merlino. Hoje, dois recursos propostos pelo MPF esperam manifestação do Supremo Tribunal Federal.

Nos últimos anos, o MP tem alterado o atestado de óbito das vítimas da tortura fazendo constar que houve “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto de perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora”. Para Tatiana, apesar de pouco, é uma vitória importante. “É o reconhecimento do Estado de que essas pessoas foram mortas sob sua responsabilidade. Uma conquista no que se refere ao restabelecimento da memória, verdade e justiça no país.”