Justiça condena agressor

Ação civil pública movida pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, por danos morais coletivos, derrotou o presidente da República em primeira instância. Bolsonaro recorreu

por Priscilla Chandretti

“O réu manifesta, com violência verbal, seu ódio, desprezo e intolerância contra os profissionais da imprensa, desqualificando-os e desprezando-os, o que configura manifesta prática de discurso de ódio, e evidentemente extrapola todos os limites da liberdade de expressão garantida constitucionalmente.” As palavras são da juíza de Direito Tamara Hochgreb Matos, da 24ª Vara Cível da Comarca de São Paulo, e foram retiradas de uma sentença judicial. Ao escrever réu, ela se refere a Jair Bolsonaro, que hoje ocupa o cargo de presidente da República. Em 7 de abril de 2021, Dia do Jornalista, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) ajuizou uma ação civil pública denunciando Bolsonaro por suas reiteradas ofensas e agressões, o que caracteriza, para o SJSP, uma prática de assédio moral sistemática contra toda a categoria profissional, ao afrontar a imagem e a honra dos trabalhadores de maneira indistinta.

Paulo Zocchi, vice-presidente da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), era o presidente do SJSP no momento em que a ação foi preparada e iniciada. Ele explica que o fato de Bolsonaro ser um agressor contumaz contra nossa categoria tem um motivo bem simples: “Ele não tolera que a população brasileira tenha direito a uma informação bem apurada. Tem uma ação política baseada em fake news, em manipulações, e o tempo todo esconde o real motivo das coisas que faz. Por isso é inimigo da liberdade de imprensa e dos profissionais da imprensa. É intolerável a quantidade de vezes e a frequência com que o presidente da República agride a categoria e ofende os jornalistas profissionais. Por isso, nosso sindicato decidiu agir.”

Para embasar a ação, o Departamento Jurídico do SJSP se baseou em levantamentos da Fenaj, a qual registrou 175 ataques à imprensa por parte de Bolsonaro só em 2020, e da organização Repórteres sem Fronteiras (RSF), que mapeou 103 insultos contra jornalistas no mesmo ano, da ONG internacional Artigo 19 e da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). E organizou uma extensa documentação de ataques de Bolsonaro a jornalistas de todo o país, com foco em São Paulo.

O coordenador jurídico do Sindicato, o advogado Raphael Maia, explica que não houve na primeira instância, por parte da defesa de Bolsonaro, nenhuma refutação dos fatos apresentados na petição inicial. Ele entende que “a defesa adotou uma linha genérica do direito de liberdade de expressão, sem contestar ou tentar impugnar nenhum dos episódios atribuídos por esta entidade”. De outra forma, admitindo-os. Apenas buscou defender seu direito de emitir tais ofensas, afirmando que não eram ilícitas.

Assim, um ano depois, em 7 de abril de 22, a juíza julgou “comprovada” a acusação de que o réu, reiteradamente, manifesta-se de forma hostil e belicosa contra a categoria. Como condenação, determinou uma multa de R$ 100.000,00, com correção monetária e juros, a serem revertidos para o Fundo Estadual de Defesa dos Direitos Difusos.

Raphael Maia explica que uma decisão como essa é inédita. “Qualquer condenação por assédio moral coletivo já é muito rara, ainda mais a condenação de um presidente da República em exercício, por assédio contra uma categoria profissional.”

Thiago Tanji, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, comemora a sentença condenatória. “A decisão é judicial, mas damos a ela, também um significado político, no sentido de que dá força ao combate contra agressões e ataques aos jornalistas. Porque mostra que é inadmissível que qualquer pessoa realize ataques pessoais aos profissionais. E nós vamos usar todos os instrumentos possíveis para defender essa posição.”

Acusada de promover fake news por um texto que nem tinha escrito, a jornalista Bianca Santana também foi vitoriosa em ação contra o presidente

Bolsonaro recorreu

A defesa de Jair Bolsonaro apresentou recurso da decisão à segunda instância, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em 28 de julho. O documento dedica longas páginas para definir a liberdade de expressão como direito fundamental, afirmando, por exemplo, que “a atividade de imprensa não é isenta de críticas, mesmo aquelas ácidas e jocosas”.

A alegação, em tese, parece correta. O SJSP sempre afirmou que todo conteúdo jornalístico pode ser alvo de escrutínio e crítica, como inclusive esta entidade já o fez. Ocorre que nenhuma dessas premissas tem relação alguma com os fatos apontados como de autoria do réu, os quais novamente não foram contestados pela defesa.

Os fatos, na verdade, comprovam que a atividade sistemática de Bolsonaro não é a de crítica à atividade de imprensa, mas a de ofensas pessoais, ataques à honra de indivíduos (repetidos tantas vezes que se transformam num ataque coletivo continuado) ou de um conjunto de profissionais. É o caso das jornalistas Daniela Lima, a quem o presidente se referiu como “quadrúpede”, e Vera Magalhães, chamada de mentirosa e divulgadora de fake news por uma informação que, na verdade, ela nunca divulgou.

É também o exemplo da jornalista Bianca Santana, que viu seu nome ser citado por Bolsonaro em uma de suas transmissões ao vivo em seu canal de YouTube, em maio de 2020. Como no caso de Vera, o presidente a acusava de fake news por uma matéria que ela nunca escreveu.

“Atacar a imprensa de diversas formas é prática do Bolsonaro e de governos de extrema direita no mundo, e eles fazem isso de formas diferentes, o que inclui jogar com a reputação da pessoa. Foi o que aconteceu comigo. Quando ele diz que eu escrevi uma fake news, e cita um texto que nunca foi escrito por mim, parece bem estratégico. É uma tentativa de atacar a minha credibilidade. Se eu escrevo fake news num caso específico, significa que qualquer coisa que eu escreva, qualquer informação que produza, não é confiável”, explica Bianca. Na semana da transmissão em que foi citada, um artigo da jornalista havia abordado a ligação de amigos de Bolsonaro com o assassinato de Marielle Franco.

Bianca também impetrou uma ação por danos morais contra Bolsonaro, essa de caráter individual. O presidente foi condenado, já em segunda instância, a indenizá-la em R$ 10 mil, valor que ela pretende doar ao Instituto Marielle Franco. Bolsonaro recorreu.

Patrícia Campos Mello foi alvo de comentários sórdidos e obteve ganhos de causa em processos contra o presidente e um de seus filhos

Xenofobia, misoginia, homofobia

A defesa de Bolsonaro também afirma que, ao contrário do que sentenciou a juíza Tamara Hochgreb Matos, ele não cometeu ato ilícito. Novamente, escondendo-se atrás do escudo da liberdade de expressão.

O Sindicato dos Jornalistas sustenta que a liberdade de expressão de forma alguma contempla ou pode vir a contemplar o direito a discurso homofóbico, misógino ou xenófobo. Essa é a característica predominante do discurso de ódio de Bolsonaro contra os jornalistas do estado de São Paulo.

Como explica Paulo Zocchi, “ele expressa o que há de pior na sociedade brasileira, em termos de preconceito, de opressão e violência. No rol de agressões que nossa ação descreve, aparece tudo isso. E, de forma destacada, a misoginia, agressões a jornalistas mulheres simplesmente por serem mulheres, tentando calá-las ou diminuí-las”.

O caso mais notório é o de Patrícia Campos Mello. Em fevereiro de 2020, Bolsonaro fez a afirmação sórdida de que a jornalista “queria dar o furo a qualquer preço contra mim”. Em junho, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a condenação por danos morais, e aumentou a indenização fixada na primeira instância para R$ 35 mil, em ação movida por Patrícia. A jornalista também move ação contra um dos filhos de Jair, Eduardo Bolsonaro, por afirmações difamatórias com o mesmo cunho, o de que Patrícia “tentava seduzir para obter informações que fossem prejudiciais ao presidente”. Até o momento, Eduardo está condenado a uma indenização de R$ 30 mil.

A declaração ultrajante de Jair Bolsonaro tornou-se, na prática, uma injúria contra o conjunto das mulheres jornalistas. As redes bolsonaristas passaram a difundir vídeos acusando as repórteres da Folha de S. Paulo de se insinuarem sexualmente em troca de informações, retomando o duplo sentido de “furo”.

Já no caso da jornalista Thaís Oyama, Bolsonaro decidiu investir contra a origem imigrante da família da profissional (e isso partindo de alguém cuja família também imigrou para o Brasil). Após Thaís publicar um livro sobre o primeiro ano de governo, se referiu a ela como “essa japonesa, que eu não sei o que faz no Brasil”, uma clara demonstração de discriminação contra os imigrantes, buscando exclui-los da participação na sociedade brasileira.

A jornalista explica que a declaração xenófoba, mais do que tê-la afetado pessoalmente, “ofendeu muitos membros da comunidade japonesa que têm grande orgulho de terem ajudado a construir o Brasil, se consideram brasileiros. Então, quando o presidente disse o que disse, desconsiderou isso e fez com que fossem alijados do país que eles consideram deles.”

Para Thaís Oyama, também atacada por Bolsonaro, “a iniciativa do Sindicato é corajosa, valorosa, e é acima de tudo necessária”

Batalha pela liberdade de imprensa

Em seu recurso, a defesa de Jair Bolsonaro acaba revelando uma visão turva da liberdade de imprensa, formulando que seu único contraponto seria a censura – o que só teria ocorrido se o réu “tivesse impedido, institucionalmente, que os veículos de comunicação pudessem noticiar e informar a população“, segundo as palavras da defesa.

Quando Bolsonaro responde a uma pergunta feita por um jornalista afirmando “minha vontade é encher tua boca com uma porrada, tá!”, não tenta cercear o trabalho jornalístico, mesmo que por meios não institucionais?

Quando responde à outra pergunta, da repórter Laurene Santos, mandando “calar a boca”, não é a tentativa de impedir uma profissional da imprensa?

Hochgreb Matos julgou que “os ataques reiterados e agressivos do réu à categoria dos jornalistas profissionais, (…) evidentemente extrapolam seu direito à liberdade de expressão e importam assédio moral coletivo contra toda a categoria de jornalistas, atentando contra a própria liberdade de imprensa e a democracia, porquanto têm o condão de causar temor nos profissionais da imprensa, muitas vezes atacados moral e até fisicamente pelos apoiadores do requerido, que o têm como exemplo.”

Thaís acredita que “a iniciativa do Sindicato é corajosa, valorosa, e é acima de tudo necessária, porque, ao defender a liberdade de imprensa, o Sindicato está defendendo na verdade a democracia. O mesmo vale para o presidente: ao atacar a liberdade de imprensa, ele está atacando a democracia. E o Sindicato está também dando voz tanto aos jornalistas que têm mais visibilidade quanto àqueles que, por estarem em regiões mais remotas e distantes dos grandes centros, não têm tanta visibilidade e voz, mas estão igualmente sujeitos a este tipo de ação por parte do presidente e dos seus aliados”.

Às vésperas do processo eleitoral nacional, quando todos os sinais indicam uma escalada do discurso de ódio e da violência por parte de Bolsonaro e do bolsonarismo, todos os instrumentos que ajudem de alguma forma a combater as agressões contra os jornalistas são bem vindos.

Para Zocchi, “tudo que estamos vendo exige que nossa categoria tenha consciência disso e discuta quais são as maneiras que ela tem para se proteger nessa situação”. Ele explica que tanto o Sindicato e quanto a Federação fazem uma ação permanente de proteção dos jornalistas e de defesa do exercício jornalístico há muitos anos, e têm uma discussão e uma série de medidas acumuladas nesse sentido, que envolvem apoio jurídico e institucional aos trabalhadores, se dirigir às empresas de comunicação para que também assumam sua responsabilidade na proteção dos profissionais, e outras.

“Estamos dispostos, sempre, a fazer reuniões com a categoria e debater novas medidas a partir da situação concreta. Nessas semanas que antecedem a eleição, e mesmo depois, essa é uma questão central, da nossa máxima preocupação, e as entidades vão estar empenhadas em ajudar a categoria”, conclui.

Raphael Maia: “Condenação por assédio moral coletivo é muito rara, ainda mais de um presidente da República, contra uma categoria profissional”

ENTREVISTA

Atuação jurídica

Ação vitoriosa foi movida pelo Sindicato dos Jornalistas de SP após discussão na Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)

A ação civil pública contra Bolsonaro por danos morais coletivos teve origem em um debate feito pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e, a partir dessa discussão, o Sindicato de São Paulo se dispôs a mobilizar seu Departamento Jurídico. No processo de montagem da petição inicial, chegou-se à conclusão de que a existência de outra ação judicial de danos morais contra o presidente, envolvendo várias entidades da sociedade civil e da qual a Fenaj faz parte como autora, impedia que a Federação pudesse mover novo processo com o mesmo objetivo.

Logo, nosso Sindicato se dispôs a assumir esse papel. Por isso, ao construir o rol de casos apresentados na ação como prova do assédio moral coletivo, além de incluir ofensas graves a profissionais de todo o Brasil, foi preciso dedicar especial atenção àquelas cometidas contra jornalistas profissionais da base territorial do SJSP, que nosso sindicato tem legitimidade para defender.

Cabe registrar que o Departamento Jurídico do Sindicato tem atuação especializada em direito trabalhista (decorrente da natureza de uma entidade sindical). Mas a equipe dos advogados do SJSP tem crescentemente se capacitado para atuar em outras áreas, como do direito cível e econômico, por exemplo. A condenação de Jair Bolsonaro em primeira instância mostra o esforço e êxito desta equipe.

O advogado Raphael Maia, que há dez anos coordena o Departamento Jurídico do SJSP, conversou com o Unidade sobre o processo contra o presidente da República.

Como foi para a equipe jurídica do SJSP preparar essa ação e, depois, receber a sentença da primeira instância?

Foi uma grande responsabilidade elaborar essa ação. E, com o passar do tempo, ao tomarmos contato mais de perto com as inúmeras manifestações desabonadoras do presidente contra os profissionais de imprensa e sua repercussão negativa na vida dos jornalistas por todo o Brasil, entendemos que o resultado do nosso trabalho poderia ajudar a coibir que outras pessoas se sentissem estimuladas pelo comportamento do presidente da República a também atacar os jornalistas, seja nas redes sociais ou nas ruas.

Portanto, o saldo positivo dessa ação é que, não obstante ainda caiba recurso, podemos afirmar que Bolsonaro é um condenado por assédio a uma categoria profissional. E que qualquer um que ousar a repetir tal conduta será também processado por este Sindicato.

A defesa do Bolsonaro se atém ao argumento da liberdade de expressão e do direito de crítica. Por que essa alegação não vale?

A argumentação do Bolsonaro não foi considerada porque a Justiça entendeu que houve, na verdade, um abuso do direito de expressão. Mesmo a liberdade de expressão não é um valor absoluto, deve ser sopesado com outros. Então, à medida que ele usa o direito de expressão para efetuar ataques e descredibilizações frequentes contra uma categoria profissional, ora de forma subjetiva, referindo-se à categoria como um todo, ora nomeando alguns jornalistas, ele abusa desse direito.

Ele, como maior autoridade do país, tem que dar o exemplo e saber que suas falas e manifestações têm reflexo nos seus milhares, milhões de seguidores.

Essa é uma decisão excepcional: um sindicato de trabalhadores conseguiu, em primeira instância, a condenação do presidente em exercício. Outras duas jornalistas, Bianca Santana e Patrícia Campos Mello, também estão ganhando ações de danos morais contra Bolsonaro. Qual lição podemos tirar desses exemplos?

O que é inédito na decisão da nossa ação é o seguinte: é uma condenação de um presidente em exercício, por uma entidade de classe, por assédio moral coletivo. Qualquer condenação por assédio moral coletivo é muito rara, ainda mais de um presidente da República, contra uma categoria profissional.

É a demonstração de que tudo tem limite. Mesmo a maior autoridade do país está sujeita às leis e regras de convivência. Isso mostra que todos os jornalistas devem estar perto do Sindicato para poder valer seus direitos e se defender dos ataques, seja do presidente da República, seja do governo, do vereador, do prefeito, do chefe de alguma instituição. Qualquer pessoa, mesmo que seja uma “autoridade”, a quem o jornalista possa ter desagradado em virtude de ter exercido seu trabalho, se essa pessoa do outro lado abusar do seu direito, esse jornalista sabe que pode tomar medidas.