O jornalista Musa Al-Shaer ficou mundialmente conhecido pela incrível foto de um menino palestino atirando uma pedra em um enorme tanque de guerra que avançava em sua direção, tirada no campo de refugiados de Dheisheh, na Cisjordânia, em 2002. Com mais de 40 anos de profissão como repórter, fotógrafo e cinegrafis- ta, e trabalhos para a rede televisiva japonesa NHK e as agências noticiosas France Presse e Reuters, entre outras, é também dirigente há longa data do Sindicato dos Jornalistas Palestinos. Em meio à emergência humanitária enfrentada pelo povo palestino no atual momento, dispôs-se a dar essa entrevista para o jornal Unidade, do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
Como os jornalistas na Palestina estão trabalhando para trazer informações ignoradas pela grande mídia internacional?
Musa Al-Shaer Historicamente, a mídia ocidental – e a estado-unidense, em particular – tem a tendência de adotar a narrativa do estado invasor, Israel, no contexto do conflito Palestina-Israel, e de tentar retratar o povo palestino como a parte agressora contra o estado invasor, fugindo sistemática e deliberadamente da realidade desse conflito, iniciado há mais de cem anos, com a Declaração de Balfour (1). Esse documento adotava o compromisso com o estabelecimento de uma pátria judaica na Palestina, promessa que refletia a decisão das potências coloniais da época (Grã-Bretanha, França, Itália, Holanda, Bélgica, Espanha) de criar uma entidade funcional na região árabe para servir a seus objetivos coloniais de tomar os recursos da nação árabe e mantê-la fraca, desunida e ignorante.
Desde o primeiro dia da agressão israelense contra o nosso povo, a partir de 7 de outubro de 2023, vimos a narrativa lançada pelos líderes da ocupação domi- nar a mídia de fora sistemática. Narrativa que é distante da verdade, cheia de mentiras e alegações que mais tarde foram expostas como fabricadas, a serviço de seus objetivos não declarados – reocupar a Faixa de Gaza, especialmente a porção norte, para controlar as reservas de gás descobertas em sua costa, e criar o canal Ben Gurion entre o mar Vermelho e o mar Mediterrâneo, como uma alternativa ao Canal de Suez. Isso necessariamente exige o deslocamento da população da Faixa de Gaza. Esse é o motivo pelo qual se vê essa guerra contra o nosso povo, expresso no genocídio, na limpeza étnica e na fome, somados à inviabilização de todos os aspectos da vida na Faixa de Gaza, por meio da destruição da infraestrutura de atendimento à população, como hospitais, escolas, universidades, templos, eletricidade, comunicação, água e saneamento, construções residenciais.
O Sindicato dos Jornalistas Palestinos e jornalistas de todo o mundo trabalham com toda a sua energia e força para refutar a narrativa transmitida pela mídia controlada por potências coloniais, organizações judaicas e o lobby sionista, reportando ao vivo os fatos que acon- tecem na região e os crimes cometidos pela ocupação, especialmente os crimes contra jornalistas palestinos, que trabalham em condições muito perigosas para transmitir o sofrimento do povo palestino na Faixa de Gaza. Para isso, estamos intensificando o diálogo com instituições internacionais preocupadas com a liberdade de imprensa e os direitos de jornalistas, com destaque para a Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), para o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e todas as organizações internacionais, incluindo federações e sindicatos de jornalistas aliados.
A OCUPAÇÃO ISRAELENSE TEM COMO ALVOS DELIBERADOS OS JORNALISTAS PALESTINOS, NUMA TENTATIVA DE IMPEDIR A TRANSMISSÃO DA NARRATIVA DIRETA DO LOCAL DOS FATOS, REPORTANDO OS CRIMES
Como a morte de profissionais de imprensa na Faixa de Gaza repercute em outras regiões? Vimos que em muitos países, como nos Estados Unidos, houve muitas denúncias sobre o que está acontecendo. Esse apoio chega até vocês? Como vocês avaliam essa repercussão?
Musa Al-Shaer O enorme número de trabalhadores da imprensa palestina mortos é resultado do ataque das forças israelenses de ocupação, que visam diretamente esses profissionais em sua guerra criminosa contra nosso povo na Faixa de Gaza. O número de mártires jornalistas desde 7 de outubro até o momento em que escrevo estas palavras chega a 102 companheiros jornalistas, além de outros cerca de 30 trabalhadores da mídia. Esse número sem precedentes na história dos conflitos globais confirma que a ocupação israelense tem como alvo deliberado os jornalistas palestinos em sua agressão à Faixa de Gaza, numa tentativa de impedir a transmissão da narrativa palestina diretamente do local dos fatos, reportan- do os crimes da ocupação, o genocídio e o holocausto em curso contra o povo palestino na Faixa de Gaza.
O enorme número de mártires jornalistas num período recorde estimulou organizações de direitos humanos, sin- dicatos e federações aliadas a condenar a ocupação israelense, demandando que os autores desses crimes sejam responsabilizados. Isso também está relacionado a um amplo movimento em todo o mundo para denunciar a agressão israelense, apoiada pelos Estados Unidos e por alguns países da Europa ocidental. O Sindicato de Jornalistas Palestinos recebeu muitas mensagens de solidariedade e de apoio de diversas entidades, principalmente sindicatos, federações de jornalistas e organizações de direitos humanos preocupadas com a proteção de jornalistas e a liberdade de trabalho e de expressão.
Esse amplo movimento público de apoio e solidariedade constitui uma base forte para responsabilizar a ocupação e seus líderes pelos crimes contra o povo palestino e a imprensa palestina, e ine- vitavelmente terão um reflexo positivo no futuro. Os jornalistas palestinos e o Sindicato dos Jornalistas Palestinos agradecem muito a ampla campanha de solidariedade e apoio realizada por povos e companheiros jornalistas de todo o mundo pelos direitos do nosso povo.
JORNALISTAS PALESTINOS NA FAIXA DE GAZA VIVEM EM CONDIÇÕES INSALUBRES E PERIGOSAS. OS LARES DE DEZENAS DELES FORAM DESTRUÍDOS, E ALGUNS PERDERAM AS VIDAS JUNTO COM OS FAMILIARES
Como você avalia a decisão da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) de preparar ações legais contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e seu ministro da Defesa, Yoav Galant, pelo assassinato de jornalistas?
Musa Al-Shaer O Sindicato dos Jornalistas Palestinos trabalha constantemente com a FIJ e a considera um parceiro essencial no trabalho em todas as áreas relacionadas à liberdade de expressão e ao desenvolvimento da mídia e do jornalismo. O Sindicato dos Jornalistas Palestinos, em parceria com a FIJ, apresentou um dossiê sobre a morte de dois colegas mártires – Ahmed Abu Hussein e Yasser Murtaja (2) –, e em seguida a denúncia do assassinato da nossa colega, a mártir Shireen Abu Akleh (3) ao Tribunal Penal Internacional (TPI). Certamente as denúncias sobre os crimes da ocupação que levaram ao martírio de 102 companheiros jornalistas até agora, como resultado dos ataques diretos durante a agressão criminosa contra nosso povo na Faixa de Gaza, serão remetidas ao TPI também. Há ainda o fato de que alguns jornalistas foram atacados junto com as suas famílias. Portanto, a decisão da FIJ de preparar ações contra o primeiro-ministro Netanyahu e seu ministro da Defesa, Galant, sob a acusação de ataque e assassinato de jornalistas palestinos é muito importante e precisa chegar ao TPI o mais rápido possível, para que os autores dos crimes contra jornalistas palestinos sejam responsabilizados – já que o número de jornalistas assassinados pela ocupação israelense desde 2000 chega a 157, incluindo os 102 durante o ataque à Faixa de Gaza desde 7 de outubro de 2023.
Quantos jornalistas palestinos foram assassinados até agora? Quantos foram feridos? Há mutilados?
Musa Al-Shaer Além do martírio dos 102 colegas jornalistas palestinos durante a agressão criminosa na Faixa de Gaza, há mais de 10 colegas que sofreram ferimentos muito graves que os incapacita- ram de se mover e trabalhar. Ainda estão aguardando transferência para receber tratamento no exterior. Apenas um deles conseguiu deixar a Faixa de Gaza, o correspondente da Al Jazeera Ismail Abu Omar. Sua perna direita foi amputada – além de sofrer outros ferimentos por todo o corpo – enquanto estava com seu colega, o fotógrafo Ahmed Matar, que foi ferido na cabeça num ataque direto de um drone israelense, enquanto cumpriam seu dever profissional e humanitário. Além disso, dezenas de colegas homens e mulheres sofreram ferimentos como resultado da contínua e bárbara agressão contra o nosso povo.
Quais as condições de trabalho dos jornalistas no conflito na Faixa de Gaza? Há uma ação sistemática para transformar jornalistas em alvos das operações militares?
Musa Al-Shaer Jornalistas palestinos na Faixa de Gaza, sob a atual agressão isra- elense, vivem em condições complexas, difíceis, insalubres e perigosas. Os lares e residências de dezenas deles foram destruídos; alguns perderam as vidas junto com seus familiares, como resultado de as forças de ocupação visá-los diretamente. Com relação aos que estão vivos, são forçados a fugir de suas casas e estão trabalhando atualmente dentro dos hospitais que restam ou de abrigos, ou ainda em tendas nas ruas nos arredores de hospitais que ainda estão operando parcialmente na Faixa de Gaza, tendo em vista a carência de condições básicas para a vida na Faixa de Gaza, como água, eletricidade e comida, e a completa destruição de toda a infraestrutura.
1) Declaração Balf our – Carta emitida em 2 de novembro de 1917 por Arthur James Balfour, secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, atestando o compromisso britânico com o estabelecimento de uma nação judaica na Palestina. No período final da 1a Guerra Mundial (encerrada em novembro de 1918), o Império Otomano, que dominava o Oriente Médio, estava em derrocada, e os britânicos, que seriam designados como a potência colonial na região, demarcavam com a Declaração um compromisso com o movimento sionista, cujo objetivo era criar um país para os judeus. A carta era endereçada ao banqueiro e político britânico Walter Rothschild, barão Rothschild, ligado ao movimento sionista (NdR).
2) Ahmed Abu Hussein e Yasser Murtaja foram mortos por forças israelenses em 2018, durante uma onda de manifestações ocorrida na Faixa de Gaza.
3) Shireen Abu Akleh foi assassinada por forças israelenses em 2022, na Cisjordânia, enquanto cobria um ataque a um campo de refugiados em Janin.