Flavia Lima fala sobre diversidade e presença negra em redações

Ex-ombudsman e atual editora de diversidade, jornalista paulistana esteve à frente do primeiro treinamento exclusivo para jornalistas negros ministrado pela Folha de S. Paulo

por Flavio Carrança

Existe certo consenso no movimento negro de que um dos efeitos da grande reação popular ao assassinato de George Floyd, em 25 de maio de 2020, foi um estímulo que levou diversas empresas, entre as quais algumas de comunicação, a investirem (ou pelo menos dizerem que o fazem) na promoção da diversidade em seu quadro funcional. Mesmo concordando com a afirmação de que o episódio Floyd despertou maior atenção para o tema da presença/ausência de negras e negros nos locais de trabalho, a jornalista negra Flavia Lima, atual editora de diversidade da Folha de S. Paulo, afirma que tal preocupação já existia na empresa antes desse episódio, ao lembrar que a função que ocupa surgiu em maio de 2019, um ano antes do caso Floyd. Nessa mesma época, Flavia foi escolhida para ser ombudsman, sucedendo outra jornalista negra, Paula Cesarino, que se tornou a primeira editora de diversidade do jornal, seguida pela jornalista branca Alexandra Moraes, a quem Lima agora sucede no cargo.

Nascida em uma família paulistana do tradicional bairro do Ipiranga, Flavia Lima é casada, tem 46 anos de idade e diz que morou quase a vida toda em São Bernardo do Campo em razão de seu pai ter sido metalúrgico da Volkswagen. Há 21 anos na profissão, começou como trainee na extinta Gazeta Mercantil, teve uma primeira passagem pelo Valor Econômico, indo depois para a Bloomberg TV e em seguida para a IstoÉ Dinheiro; voltou, desta vez por cerca de seis anos, para o Valor Econômico, de onde foi para a Folha de S. Paulo.

No jornal da família Frias, começou em 2017 como repórter na área de economia, cargo que exerceu por dois anos, até ser convidada para se tornar ombudsman. Em 10 de maio deste ano, assumiu o programa de treinamento exclusivo para profissionais negros, que será realizado anualmente, e também a editoria de diversidade do jornal.
Na entrevista que concedeu por telefone ao Unidade, ela fala sobre essa experiência e os temas relacionados.

Sao Paulo, SP, BRASIL, 25-04-2019: Retrato da jornalista Flavia Lima, nova Ombudsman da Folha (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress, PODER).

Tenho a impressão de que depois do episódio do George Floyd aumentou a preocupação das empresas em promover diversidade, equidade racial, esse tipo de coisa. Você passou por várias empresas de comunicação e de jornalismo. Percebeu uma evolução ou uma mudança ao longo do tempo? Como vivenciou essa questão da presença e ausência de negros e negras nas redações e na cobertura desses temas? Tem uma visão retrospectiva dessa trajetória com relação a esse aspecto?
Acho que sempre existiu uma consciência de que nós negros éramos minoria, em todas as redações nas quais passei, inclusive porque eu sempre virava um assunto com as pessoas mais próximas. E sinto que em todas as redações pelas quais passei existia essa consciência de que éramos muito poucos, mas sem que isso fosse muito discutido e nem visto exatamente como um problema. Estava mais naquela chave de que, ainda que se procure, a gente não vai encontrar profissionais negros disponíveis e bem formados. A visão que havia com relação aos profissionais negros era um pouco essa, que era muito comum: ‘ah, eu até gostaria de contratar o profissional, mas não tem, eles não existem’. Acho que isso foi assim ao longo da minha carreira. Curiosamente, essa empresa americana para a qual eu trabalhei, a Bloomberg, tinha uma consciência maior sobre isso. Talvez justamente por serem americanos e lá a questão racial ser muito mais repercutida. E essa foi até uma certa surpresa, porque eles esperavam que uma redação brasileira refletisse mais a população daqui, que enxergavam como muito negra, e quando não viam isso se surpreendiam. Não entendiam esse descolamento entre a imagem que eles tinham do Brasil e uma redação brasileira tão branca.
Lembro de uma curiosidade: era uma TV e eles costumavam mandar muitas maquiagens para repórteres e apresentadoras mulheres aqui no Brasil, e muitas dessas maquiagens eram para pele negra. Eu acabava ficando com todas elas, porque além de mim só havia mais uma repórter negra, que ficava em Nova York, então ficava tudo para mim, isso durante um bom tempo. Eu observava que eles tinham uma preocupação maior: comecei na Bloomberg como produtora, depois coordenei a produção e eles queriam sempre que eu fosse para o vídeo porque achavam que isso era importante e tinha essa questão racial também por trás. Agora, mais recentemente, como você mesmo apontou, sobretudo depois do episódio [do assassinato] do americano George Floyd, acho que é como se de repente a gente se desse conta de que temos um problema: somos uma sociedade racista, somos praticamente invisíveis e, depois disso, se tornou uma questão. Agora, eu preciso ser justa também com a Folha, porque a preocupação da Folha é anterior a isso.

“A MÍDIA BRASILEIRA, COMO UM TODO, AINDA REFLETE UM PEDACINHO MUITO PEQUENO DA SOCIEDADE”

Durante a discussão das políticas de cotas e ações afirmativas aqui no Brasil, principalmente de cotas raciais, a Folha e outros veículos do mainstream do jornalismo brasileiro se posicionavam veementemente contra essas políticas, e entendo isso que acontece na Folha agora como uma política de ação afirmativa. Deu para você perceber uma mudança e como aconteceu esse processo no interior da empresa?
Claro, é uma mudança. O jornal que lá atrás se posicionou editorialmente contra a política de cotas abriu um dos primeiros programas de treinamento voltados exclusivamente para profissionais negros, que foi esse que terminou agora em 30 de julho, durou três meses e que, na minha avaliação, foi muito importante, significativo e fundamental para o objetivo do jornal, que é, quando fala em diversificação, não só diversificar a cobertura jornalística, os personagens que aparecem no jornal, mas também as fontes, quem o jornal ouve para fazer essa cobertura, e a própria redação. A Folha tem ciência de que se o objetivo é fazer um jornalismo mais democrático e que reflita melhor a sociedade em que a gente vive, ela precisa refletir e estar refletida na redação do jornal, que hoje ainda é de maioria branca, do Sudeste – sobretudo São Paulo –, muito igual, com o perfil bastante masculino. Então o jornal tem essa consciência de que precisa olhar para as questões que a sociedade está dizendo que são importantes, e não só a questão racial: gênero, orientação sexual e uma série de questões que estão sendo colocadas aí pela sociedade, pelas redes sociais, e que acabam sendo refletidas pela imprensa de uma maneira geral, como a gente está vendo, e a Folha faz parte dela. E mais uma questão: a Folha se coloca como um jornal de alcance nacional, então é mais um motivo para que olhe para outras regiões e que a diversidade venha também daí, dessa questão regional.
Agora, voltando para a sua pergunta, eu vejo, essa mudança é clara por parte da Folha, um jornal que se posicionou e, na verdade, formalmente falando, ainda não mudou a sua posição. É algo que ainda a gente está para ver. Como editora de diversidade acho que, em 2022, quando estaremos chegando aos 200 anos de independência do país, 10 anos de política de cotas, isso pode ser um excelente gancho para a Folha rever a sua posição, editorialmente falando, aquela posição lá de trás, contra a política de cotas. (Para) um jornal que identificou o problema que é a falta de diversidade, se propôs claramente a enfrentar essa questão e está fazendo isso muito bem, agindo em diversas frentes, é um excelente momento. Se a Folha está esperando por alguma oportunidade para rever sua posição, no ano que vem haverá uma excelente oportunidade de revisar a posição contra as cotas.

Cida Bento, colunista da Folha, é uma pessoa que trabalha muito com essa questão da diversidade no âmbito das empresas, e sempre enfatiza a necessidade da implementação do quesito raça/cor no cadastro das empresas e na produção de informação com relação à composição étnico-racial das organizações públicas ou privadas, para possibilitar a efetivação de políticas de promoção da diversidade. A Folha faz isso?
Produz. Esses dados não são públicos, mas a Folha fez o primeiro levantamento de perfil da redação, no qual essa questão foi incluída, e também por isso ela sabe o quão urgente, necessário e importante é diversificar esse perfil. O programa de treinamento é uma iniciativa importante neste sentido. Lembrando que foram 18 trainees, neste primeiro programa e boa parte deles já incorporados pelo jornal, o que é super importante porque não adianta só fazer um programa de treinamento sem que esses profissionais sejam absorvidos. Uma parte importante já foi, e outra coisa que venho observando – porque coordenei o programa, algumas pessoas me procuram, observo outros lugares –, e falo aqui não só de outras redações, mas de editoras que buscam os profissionais pelo programa de treinamento da Folha, que costumam atrair esses profissionais para outros lugares também, o que eu acho muito bacana, e para eles é bem importante. Em resumo é isso: o jornal faz esse acompanhamento, já fez e fará novamente, porque considera importante entender um pouco o perfil da redação, e aí entra não só a questão de gênero e orientação como outras abordagens. E com esse objetivo, de tornar a redação mais plural.

Queria que você comentasse um pouco sobre o papel da editoria de diversidade.
Para ser sincera, o ideal é que a gente não precisasse de uma editoria de diversidade, mas não é isso que acontece. O diagnóstico é que a mídia brasileira, como um todo, ainda reflete um pedacinho muito pequeno da sociedade. A mídia é formada por profissionais brancos, de uma classe média, o perfil das redações é ainda muito parecido e homogêneo, e isso acaba interferindo, é claro, na cobertura jornalística, que é também um reflexo da visão do repórter e dos jornalistas. E por isso é importante, mais que importante, é fundamental que a gente tenha redações menos homogêneas.
É claro que o ideal era não precisar de um cargo como esse, meio esdrúxulo, mas afinal o que é um editor de diversidade? Dada a nossa realidade, ele se mostrou necessário e relevante. E o que faz essa figura e esse editor? Eu sou bastante procurada por muita gente, de muitos perfis, e tem de tudo: sugestão de pauta, gente querendo emplacar seu marketing porque agora todo mundo, na verdade, quer se mostrar fazendo algo para aumentar a sua diversidade, e empresas. O que eu acho ótimo, mas desde que não seja algo pontual e seja pensado para render soluções no longo prazo. O que eu tento explicar e deixar claro é que a editoria de diversidade faz um papel que é uma mistura entre o editorial e o institucional do jornal.
Claro que eu procuro estar muito ligada no que está acontecendo de relevante nessas áreas ou temas, que a gente não está muito acostumada a olhar e, como falei, não só a questão negra e indígena como o que está acontecendo no universo LGBTQIA+, com as mulheres, e questões fundamentais para o mercado de trabalho feminino com a pandemia, enfim (em) todas essas questões eu tenho que ficar muito ligada e, recebendo boas sugestões ou surgindo boas ideias, passar isso para as respectivas editorias do jornal, para que seja produzido conteúdo abordando esses temas.
Uma outra coisa que acho relevante é tirar um pouco a cobertura destes nichos específicos das datas que a gente está acostumada a encontrar e que acabou se tornando algo muito confortável. Então, os jornais usam o mês de junho, por exemplo, para falar da questão da orientação sexual ou o mês de novembro para falar da questão negra e, depois, esquecem e se sentem desobrigados de tocar no assunto o resto do ano. Isso também é uma coisa sobre a qual a gente está muito em cima e muito atenta para que mude.
Tem uma questão muito importante que é tentar olhar para a redação e fazer dessa redação algo mais diverso, então eu participo de todas as bancas de contratação da Folha. Participo obrigatoriamente, justamente para olhar para essas questões e para dar o peso que elas merecem num dos momentos cruciais para a diversidade, que é o da contratação de um novo profissional. Então tem essa questão de olhar para dentro da redação, de olhar o que está sendo produzido pelas editorias, ouvir mais vozes, tentar ouvir fontes diferentes, porque estamos muito viciados em ouvir sempre as mesmas pessoas e também pretendemos fazer um acompanhamento melhor sobre isso. A sensação é que ouvimos muito homem, muito homem branco da região Sudeste, então queremos ampliar, ouvir gente de outros lugares, de outras classes sociais, gente que está fazendo algo diferente e que também é importante. É uma série de ações que precisam ser feitas ao mesmo tempo, porque daqui a algum tempo, alguns anos – isso não vai ser para agora, vai ser para daqui a algum tempo –, se a gente realmente quiser falar de um jornalismo mais diverso, tem que olhar para tudo isso.

“SOU BASTANTE PROCURADA, E TEM DE TUDO: SUGESTÃO DE PAUTA, MARKETING. PORQUE AGORA TODO MUNDO QUER SE MOSTRAR FAZENDO ALGO PARA AUMENTAR A DIVERSIDADE”

E os territórios das periferias, estão contemplados nessa noção de diversidade?
Isso é fundamental. Com certeza, e não só naquela chave que a gente está muito acostumada a ver, da violência, da falta, da carência, dos outros perrengues periféricos que, claro, a gente precisa contar na cobertura, até mesmo para pressionar por mudanças e que o poder público olhe para isso com mais urgência. Mas, para além disso, a gente precisa olhar para esses lugares como lugares de realização, de diversão, enfim, olhar para esses lugares da mesma maneira que nós, jornalistas, olhamos para os bairros em que circulamos. Nós somos muito concentrados na parte central da cidade, nós aqui em São Paulo, nos bairros mais centrais e mais ricos. Em uma das colunas que eu escrevi como ombudsman, até fiz esse levantamento informal, então o bairro de Pinheiros, em determinado período, era citado milhares de vezes, olhando para os problemas do bairro, para o café que o bairro oferece, o cinema, o show, para as oportunidades profissionais e para uma série de outras questões que acabam não sendo contempladas nos bairros periféricos, porque a gente não vai até lá e não sabe o que está se passando nesses lugares. Acaba olhando muito com estereótipo, com olhares estrangeiros, de quem não faz ideia do que está se passando ali e acaba batendo nas mesmas teclas da falta, da violência. Mudar essa chave é muito importante, e também está acontecendo, é uma coisa na qual estamos prestando muita atenção. Na Folha, por exemplo, eu sinto isso. No Guia, o suplemento da Folha com dicas de cultura, se você prestar atenção existe um esforço de contemplar esses outros lugares da forma como a gente contempla o centro, o que é muito bacana e muito importante. Acho que é um trabalho longo, árduo e que começou a ser feito. Demorou, mas começou a ser feito, e acho que daí só pode sair coisa boa, interessante e com mudanças importantes que precisam ocorrer.

Caderno publicado pela Folha de S. Paulo com a primeira turma de trainees negros na história da empresa, em agosto deste ano. Reprodução

Tradicionalmente, mesmo que entrassem nas empresas, muitos jornalistas negros e negras antes ficavam na revisão, e eu acredito que ainda exista um problema de não terem muita mobilidade no interior da empresa. Queria saber se o projeto tem alguma preocupação com isso e como você e a empresa veem esta questão. Isso está relacionado, evidentemente, com a importância também de ter um perfil diverso e gente negra presente nas instâncias de poder na empresa.
A presença de negros, mulheres, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, inclusive nas instâncias de poder de uma Redação, é fundamental e o jornal sabe disso. Recentemente, ocorreram mudanças na Secretaria de Redação do jornal, antes formada por quatro jornalistas homens (dois secretários e dois secretários-assistentes, cargos logo abaixo do diretor de Redação). Com as mudanças, as duas funções de secretárias-assistentes foram ocupadas por mulheres, o que traz um olhar diferente não só para a cobertura como para a organização do jornal. Mesmo a criação de um programa de trainee (no geral, um profissional valorizado e que passa por um período de treinamento que permite a ele conhecer mais a fundo a prática jornalística, a empresa e o negócio) para profissionais negros abre espaço para isso. Para você ter uma ideia, entre os quatro últimos secretários de Redação antes da mudança mais recente, todos (ou quase todos) passaram pelo programa de treinamento. Cuidar para que a Redação se torne um ambiente efetivamente mais diverso significa mais do que contratar profissionais pelo piso. Não vejo esse processo de mudança como algo que vai ser resolvido depois de amanhã. Mas acho importante que tenha começado. •