por Adriana Franco, Mônica Zarattini, Paulo Zocchi, Priscilla Chandretti e Sérgio Kalili
“É uma história que mostra a desigualdade do Brasil. E isso me motivou”. É assim que o jornalista Yan Boechat explica seu ímpeto de ir a Manaus fazer o ensaio fotográfico sobre as mortes domésticas por covid-19 que venceu o 42º Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos, na categoria fotografia.
Radicado em São Paulo desde 1999, o jornalista carioca decidiu viajar ao Amazonas mesmo sem emprego, atrás da reportagem.
Não por acaso é conhecido como “repórter-raiz”, um profissional que vive da essência do jornalismo, da apuração de fatos no local onde acontecem.
Formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é um jornalista multimídia – entrevista, escreve, filma e fotografa –, mas vê sua situação de forma crítica, e se define como um “um retrato acabado da precarização da nossa profissão”. Em sua carreira, já publicou seus trabalhos em veículos como Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Veja, IstoÉ, Época, BBC, Deutsche Welle, Voice of America, De Morgen, Knack. Atualmente, é repórter da TV Bandeirantes.
Boechat concedeu esta entrevista ao Unidade no início de dezembro, por videoconferência. Sem poder participar no dia, o repórter José Hamilton Ribeiro – que cobriu a Guerra do Vietnã, nos anos 60 – enviou duas perguntas, incorporadas ao conjunto.
Na conversa, Boechat fala sobre sua experiência como um dos principais repórteres de guerra brasileiros da atualidade. Explica como as forças bélicas censuram as informações jornalísticas, como busca manter sua independência na cobertura, mas revela um desencanto sobre a missão informativa dos jornalistas: “Fomos incapazes de produzir efeitos concretos na defesa dos mais básicos direitos em um conflito”.
O que significou para você receber a premiação do Herzog?
Fiquei super feliz. E não esperava, de verdade. A gente tem um histórico de premiação em fotografia que valoriza muito o momento da foto, e as fotos mais literais costumam ter mais vitórias. No Prêmio Esso, o ponto máximo é aquela foto, do Dida Sampaio, com a Dilma andando de bicicleta escrito Lava-Jato atrás. Há uma tradição, e eu não achava que aquela coleção de fotos seria premiada. O Herzog é o prêmio mais importante no Brasil hoje, então foi algo muito legal. Ainda mais que foi escolhido um ensaio, uma coisa que não acontece muito.
Como foi a sua ida para Manaus para fazer o ensaio premiado? O que te levou a fazer a cobertura daquela maneira?
Quando começou a covid na Ásia, não dei muita atenção. Acreditei que era uma gripezinha. Mas acompanho um podcast do The New York Times chamado “The Daily”, que fez uma entrevista com o repórter Donald McNeil Jr. (especialista em ciência e saúde). Quando ele começou a dar detalhes, fiquei impressionado e passei a acompanhar. Veio a Itália, e foi a primeira vez que a gente viu a pandemia atingindo as pessoas fora do ambiente hospitalar. Imaginei que, quando chegasse ao Brasil, a coisa seria muito devastadora, por conta das nossas condições de desigualdade, de falta de saneamento e da impossibilidade de fazer distanciamento.
Quando ocorreu a primeira morte, em meados de março, e começou o lockdown, eu não estava trabalhando para ninguém e decidi embarcar nessa cobertura de cabeça. Me deu uma ânsia e uma necessidade de cobrir. Eu ia todo dia para a rua, mesmo que não tivesse nada. Acordava, pegava minha máquina e saía.
Primeiro, comecei a ir para o centro de São Paulo, e ficava perambulando, fotografando. Ficava muito na cracolândia porque achei que ia ser dizimada. Depois, fazia plantão na porta dos hospitais, conversando com as pessoas, e comecei a ir para o cemitério. Passei duas semanas indo para o da Vila Formosa, e lá consegui fazer a minha primeira matéria grande, porque percebi que o número de pessoas enterradas com suspeita de covid era dez vezes maior do que o número oficial de mortos pela doença. Fiz para a Folha e foi manchete. No Samu, descobri que tinha muita gente morrendo em casa em São Paulo. Fiz uma cobertura longa e consegui acompanhar algumas equipes do Samu, e fiz uma matéria para O Globo.
Nesse período, começou a surgir Manaus. Um dia, ouvi uma entrevista do Arthur Virgílio, prefeito, contando que 30% das pessoas estavam morrendo em casa. Naquele dia, comprei uma passagem, consegui um hotel, aluguei um carro e fui decidido a acompanhar o resgate dos corpos, porque era uma história inacreditável. No primeiro dia, tentei descobrir como a coisa funcionava, fiz umas entrevistas com a prefeitura. Fiquei depois acompanhando os caras que recolhiam os corpos. É uma história que mostra a desigualdade do Brasil. Quem não tem assistência fica absolutamente desamparado, a ponto de morrer em casa, e foi isso que me motivou.
Nessa pauta, você teve contato com situações agudas do ponto de vista humano. Como repórter, como você chegava ao lugar para fazer um trabalho em meio a essas situações?
Explicava quem era, me apresentava como jornalista, dizia que estava registrando o trabalho das pessoas recolhendo corpos, e que sabia que era difícil, mas era um momento histórico, e que, por mais difícil que fosse, era preciso registrar. Por incrível que pareça – e em São Paulo já tinha percebido isso –, a pandemia tem um quê de clima de guerra. Nós, como jornalistas contadores de histórias e registradores da história, damos um certo sentido – ou as pessoas acreditam nisso – para essas mortes, muitas vezes sem sentido, e que não estão no curso natural da vida. Lembro de uma mulher em São Paulo que estava enterrando o pai, e, no final, agradeceu por eu estar ali. Ela disse: “Você me deixou menos solitária, e a morte do meu pai, pelo menos, tem algum sentido”. Claro que houve várias pessoas que disseram: “Sai, eu não quero você aqui”.
E qual era a sua reação quando não queriam a sua presença?
Eu ia embora e ficava do lado de fora, esperando a equipe retirar o corpo, porque não fazia mais sentido. Tem que rolar uma empatia, não dá para roubar uma foto dessas. Em outras situações, eu fotografaria. Se fosse um cara morto baleado na rua e a família gritando “não tira foto”, acho que fotografaria, mas nesse caso era uma coisa muito íntima, ter que entrar na casa das pessoas. Mas posso dizer que 80% delas me permitiram que eu entrasse e fotografasse.
Havia o medo de você pegar a covid? Você teve o mesmo medo de estar em uma guerra?
A relação foi bem parecida. Tomei todos os cuidados, mas sabia que estava correndo risco. E, no caso da covid, corria mais risco do que na guerra, porque na guerra eu tento ao máximo evitar que algo ruim me aconteça. Nesta cobertura, tinha certeza de que ia me contaminar, mas decidi assumir o risco. Se os médicos estavam nesta situação, como jornalista também tinha que correr esse risco. Fiquei com muito medo quando, pela primeira vez, entrei na UTI do Emílio Ribas e vi muita gente da minha idade. Sou gordinho, e então pensei: é muita gente igual a mim.
O que fazia era adotar sempre as práticas recomendadas. Máscara o tempo todo, luva, álcool em gel, e isso me preservou. Fiquei acompanhando algumas ambulâncias de Paraisópolis andando naquelas vielas e não me contaminei. No final, já achava que eu tinha me contaminado e estava assintomático, o que se provou errado depois. Acabei me contaminando na Armênia.
Me contaminei por fruto da estupidez e da autoconfiança. Testei no aeroporto ao chegar, e deu negativo. Mas, quando cheguei em Nagorno-Karabakh (região de conflito entre Armênia e Azerbaijão), virou uma chave. No primeiro dia, caíram umas bombas perto da gente, e você coloca colete à prova de balas, capacete, câmera e, com aquilo tudo, a máscara deixou de fazer sentido. Ninguém mais usava. De noite, nos hotéis, todo mundo ia para os abrigos subterrâneos, e era uma festa. Cometi erros muito básicos: abandonei os protocolos de segurança e peguei a doença. Nagorno acabou se transformando em um grande foco de contaminação de jornalistas.
Como funciona o financiamento das suas viagens para cobertura de guerra? Você vende as matérias antes e uma certa empresa financia a sua ida?
Já fiz de todas as maneiras. Quando estava na IstoÉ, fazia o seguinte acordo: me davam “folga” de um mês, sem descontar nada, e eu ia por minha conta. Fazia as matérias, entregava uma matéria de capa e compravam outras quatro matérias para outros veículos da casa. Com isso, conseguia pagar os custos e entregava o material. Tinha gente que me criticava porque eu viajava de graça – o que é verdade. E aceito essas críticas. No entanto, se não encontrasse caminhos, ia ficar com a minha bunda na cadeira.
Depois, comecei a vender as matérias antes. Fiz um acordo com a Folha para ir à Venezuela e fiz dez matérias com paga mento antecipado. Para a Band, cheguei a fazer acordo de pagamento antecipado. Já fiz acertos de todas as maneiras possíveis; o que nunca fiz foi de exclusividade com ninguém. Então, eu tinha liberdade de vender para outros veículos, o que me dava margem para negociar.
Esse foi o caminho que encontrei para me manter repórter e continuar fazendo o que sempre gostei de fazer. Um monte de gente me critica, obviamente. E não tiro a razão da crítica, porque se vou para o Amapá, vou sozinho e faço tudo. Eu também me critico, e aceito a crítica. Eu sou reflexo e causa desse processo de depauperação da profissão. Mas não quero ser mártir, só quero fazer jornalismo.
Como você faz para entrar na zona de guerra?
Tentei ir para o Iraque em 2003 e não consegui. Hoje, está muito mais fácil acessar as áreas de combate do que em 2003, por exemplo. Existe uma rede muito grande de jornalistas, de fixers, de gente que atua nesta área e tem uma interconexão entre todo mundo. Existe um clube secreto no Facebook onde essa rede de pessoas está, e, para cada conflito, há um subgrupo do Vulture Club (Clube dos Urubus). Então, quando fui para Nagorno-Karabakh, contatei essas pessoas e me deram dicas de como fazer, e do que não fazer. E o grupo de jornalistas que cobre esses conflitos é pequeno. Então, você cria relações e as pessoas vão trocando informações. Em alguns países, existem redes bem estabelecidas; em outros, menos.
Na Armênia, foi muito difícil, porque é um país no qual há muito tempo não havia guerra. Então, não tinha essa figura do fixer, que é um tradutor que te leva para o campo de batalha, conhece a região, meio motorista e meio segurança. Muita gente teve dificuldades para encontrar esse profissional lá. Em outros países, como o Iraque e a Síria, há uma rede ampla de fixers, e fica tudo relativamente mais tranquilo. Em geral, sigo este padrão básico: procuro onde conseguir as autorizações, procuro um bom fixer, pergunto onde é seguro ficar e onde não é.
Há uma frase clássica: “Quando começa a guerra, a primeira vítima é a verdade”. Como você enxerga a apuração de fatos ligada ao contexto da guerra?
Acho muito difícil. A primeira coisa a pensar é que toda guerra tem um discurso maniqueísta. A guerra da Síria e a guerra do Iraque contra o Estado Islâmico foram exemplos claros disso. E o jornalista é permitido em campo de batalha porque é visto como um instrumento de propaganda, senão não estaria ali. Estamos falando tanto do Talibã como do exército americano.
Quando você tem a permissão para ir ao front de batalha, só verá o que querem que seja visto, e evitarão que veja o que não querem. Claro que não dá para esconder a verdade de todo, porque as coisas ficam claras, mas existem elementos e maneiras que essas forças usam para coordenar o discurso e levar a narrativa para o lado deles. No Iraque, por exemplo, tudo era válido na campanha para tomar o Estado Islâmico e combater o mal absoluto.
Em Mossul (noroeste do Iraque), os americanos estavam atuando e ninguém podia dizer isso. Muitas vezes, viam-se as forças especiais americanas operando, e eles diziam: “Quem publicar uma foto das forças americanas dentro de Mossul está banido do front”. Para a maioria dos jornalistas – e principalmente os freelancers – estar banido significa que a guerra acabou. Quem está banido, não entra mais.
Há então uma censura imensa, que às vezes é quebrada. No caso de Mossul, um jornalista da Der Spiegel (revista semanal alemã) conseguiu registrar as torturas que eram sabidas contra os cidadãos, foi banido em seguida e nunca mais entrou. A Der Spiegel foi banida. Nenhum jornalista alemão pôde entrar no front por três semanas, e as pessoas ficavam sem trabalhar. Eu procuro focar nas histórias pessoais, e evito entrar em grandes discussões.
Muito jornalista comprou a ideia de que o Estado Islâmico é o mal absoluto, e de que vale tudo contra o mal absoluto. Mas esses mesmos jornalistas, muitas vezes, ficavam compadecidos e tristes quando viam os efeitos de bombas em Aleppo (norte da Síria). Na guerra, há todas essas inconsistências e contradições, e muitos jornalistas acabam abraçando essas narrativas. A única maneira de destruir isso é estudando História, lendo e tentando entender a origem desses conflitos.
Que artifícios você tem para garantir a independência de cobertura? Isso te preocupa?
O fato de escrever em português, e de ser de um país periférico, facilita, porque há pouco acompanhamento do que se faz. É diferente trabalhar para a CNN, para a BBC, para o The Guardian. Os caras não ligam para o que sai no Brasil, quando eu escrevo que os americanos estão matando todo mundo no Iraque. Fiz uma matéria para a Época, de seis páginas, dizendo isso. Se escrevesse no The New York Times, provavelmente, teria um monte de pressão. Não me preocupo muito, porque sou muito menos pressionado.
Por outro lado, dou um exemplo prático: na guerra do Iraque, era proibido fotografar soldado americano morto ou ferido. Não podia, e te expulsavam do front. Depois do segundo esporro e de me tomarem a câmera – e tive que falar com o serviço secreto para recuperar –, parei de fotografar. Minha narrativa visual passou a ser só de vítima civil. Consegui uma vez fotografar soldados mortos e feridos em uma batalha muito grande, em que mais de 20 foram mortos, e então estavam completamente desnorteados e acabaram deixando registrar tudo. Mas foi uma vez em sete meses de guerra.
Em cobertura de guerra, é frequente que você se sinta em risco de vida, em que possa tomar um tiro ou ficar sob uma bomba, ou costuma cobrir quando não há conflito aberto?
Eu vou nas duas situações, mas tenho mais medo e me exponho menos do que muitos outros. Vou para o front, e tento medir o máximo de risco que corro. Mas, quando se está em uma área de confronto, sempre há risco. As coisas podem dar errado e acontecem de forma aleatória. Tive muito mais experiências de “quase deu errado”, do que experiências de “vai dar errado”, mais experiências de uma bomba cair do meu lado, não me ferir, eu olhar e não ter acontecido nada – felizmente – do que experiências como “os caras estão chegando e vão me matar”. Mas conheço outros jornalistas brasileiros que se expõem muito mais. Me interessam os dois lados: tanto ficar lá na frente [no front] como atrás [mais protegido].
José Hamilton Ribeiro – Mesmo na guerra, os correspondentes arranjam um lugar para se reunir à noite. Os jornalistas de guerra se reúnem, são uma tribo, ainda que cada um só queira “foder” o outro, dando nos outros um furo cada dia. Mas na adversidade são solidários, como pude experimentar. Eles são uma tribo valente, altiva e guerreira, ou se trata de uma união de solitários, afinal, uma tribo infeliz, como alguns qualificam?
Eu acho que repórteres que cobrem conflitos fazem parte daquele tipo de tribo que vivencia experiências que a maior parte das pessoas nunca experimentou. Em geral, as pessoas têm imensa dificuldade em entender o que faz um sujeito largar o conforto do lar para ir a um canto do mundo colocar a vida em risco. E ainda mais dificuldade em entender os prazeres, os tipos de medo, os desejos e o que importa para um repórter no front. É bastante compreensível que não entendam.
E acho que os repórteres, muitas vezes, acabam tendo bastante dificuldade em retornar à vida comum, às misérias cotidianas. Para mim, essa é a parte mais difícil de todas. Muita gente me pergunta se eu sonho com as cenas, se eu tenho medo quando os tiros estão sendo disparados, se eu penso na morte. Mas ninguém pensa o quão difícil é ir à reunião de condomínio depois de passar meses cobrindo uma guerra. Então, ao final, acho que muitos de nós acabam voltando sempre para a guerra porque simplesmente não conseguem mais viver a vida simples. Tem muita gente solitária, infeliz, no front. Mas não acho que seja a regra. Eu tenho imenso prazer em rever os colegas que fiz, mesmo aqueles que me foderam – e não foram poucos – nas coberturas. No final, tudo termina no bar.
Quando as empresas e os veículos deixaram de investir em coberturas, enviando ao menos um jornalista de texto e um repórter fotográfico? Como isso afeta a própria imprensa?
Tem um monte de jornalista que faz matéria sobre a dura vida das mulheres na Sibéria que precisam cortar gelo para conseguir água, mas fazem isso sem sair de São Paulo. Esse é um ponto.
Depois vem a questão da opinião mesmo. As redes sociais fizeram a imprensa brasileira entender que opinião é um bom negócio para vender jornais, as tevês, as revistas. Nos últimos 15 anos – e vem se agravando cada vez mais –, perceberam que opinião é algo bom para vender, e viram, obviamente, que é muito mais barato produzir opinião. As pessoas ditam regra sobre tudo. Tem um milhão de comentaristas, que comentam desde a eleição do papa até a explosão no Líbano, sobre covid e depois sobre as eleições nos EUA, porque ficou fácil e é muito barato. E tem, cada vez menos, empresas apostando em fazer uma cobertura de verdade, mandando um repórter ao local, para sentir o cheiro, para olhar as coisas. É profundamente deprimente observar isso.
A reportagem vem perdendo espaço desde que eu estava na faculdade, e, agora, praticamente não tem mais espaço. O que importa agora é opinião. Os maiores jornalistas brasileiros hoje – e é injusto culpar o profissional, porque estamos no momento de uma crise sistêmica e quase estrutural – perceberam que ter e emitir opinião é a maneira mais fácil de sobreviver nessa carreira depauperada. O sonho de jovens jornalistas é serem comentaristas. E é uma loucura, porque o prazer dessa jogada é ter salvo-conduto para poder entrar em uma favela de Macapá, dominada pelo PCC, porque sou jornalista. Às vezes, vejo pessoas falando que sou repórter raiz, não sou repórter de redação ou repórter de escritório. Acabo ganhando louros por algo que é muito básico, que é ir lá, ouvir os dois lados e não pôr opinião.
Quando tem repórter pensando na audiência, vai dar tudo errado. Não tem como dar certo. Esse é um papel que não cabe a nós, jornalistas. O importante é a relevância do que estamos fazendo.
Para as entidades sindicais, a questão de segurança dos jornalistas é importante. Como você acha que podemos proteger melhor os jornalistas em situação de risco?
Dois mundos diferentes. Um é esse mundo em que a gente vive. Nesses conflitos locais e domésticos, é possível ter protocolo de segurança, estabelecer o uso de equipamentos de segurança que mitigam os riscos. Então, em um confronto de rua, com um capacete e uma máscara de gás, dificilmente haverá um ferimento mais grave. Nos confrontos policiais com bandidos, precisa ter um bom colete, mas aqui no Brasil nem as polícias usam um colete que te proteja de verdade. Sem a placa balística, de carbono, não vai estar protegido.
Quando vai para fora do país, a questão financeira tem um impacto grande. Haverá desde jornalistas sem plano de saúde – como fui várias vezes, sem seguro de saúde nenhum, por falta de dinheiro – até a galera do The New York Times, que tem todos os planos de saúde possíveis, um security adviser em Nova York e um em campo, que é um paramédico hiperexperiente. Ter um paramédico é crucial. Basicamente, quanto mais dinheiro você tem, mais seguro você está.
Você já foi agredido em cobertura jornalística?
Algumas vezes. Uma vez apanhei de 13 caras da PM que me desceram a borracha. Foi em 2013, em um daqueles protestos. Havia um grupo de apoio que fazia assistência e dava os primeiros socorros, estavam espancando um dos meninos desse grupo, e fui fotografar. Estava fotografando, e o policial falou para eu sair. Respondi: “Estou trabalhando”, e continuei fotografando. Até fotografei ele me batendo! Ele falou: “Também estou”, e veio para cima de mim; 13 caras vieram, quebraram minha câmera, me bateram bastante, mas outros jornalistas começaram a gritar, fotografar, e os policiais me deixaram.
Entrei com uma ação. Fiz o boletim de ocorrência, fiz o exame de corpo de delito. Só que, no final das contas, eu queria representar contra a Polícia Militar, e não aceitaram. Queriam que eu personificasse o agressor, que eu o identificasse. Mas eu não queria personificar a agressão, por entender que não era um ato isolado, e sim uma política de Estado. Eu queria processar o Estado, mas não consegui. A delegacia aceitou a representação, porque você faz o B.O., que não significa nada, e tem seis meses para representar contra o agressor e potencial réu. O delegado falou que eu não poderia representar contra o Estado. Só poderia entrar com uma ação civil. Eu queria entrar com uma ação criminal contra a Polícia Militar. Depois, por intermédio do Sindicato, o Ministério Público abriu uma ação coletiva, e dei meu depoimento público.
José Hamilton Ribeiro – Para mim, o jornalista de guerra é um guerreiro, cujo trabalho tem preciosa função social. Um inibidor de violência, e um ser humano pronto a denunciar o que vir de crueldade, torpeza, uso abusivo da força etc. Digo sempre: guerra é ruim; mas guerra, sem repórter presente, é pior ainda.
Já fui mais otimista sobre o nosso papel. Hoje não sou mais. Acho que os jornalistas são capazes de inibir a violência em situações muito isoladas, em momentos raros. No macro, acho que a História mostrou que fomos incapazes de produzir efeitos concretos na defesa dos mais básicos direitos em um conflito.
Acho também de extrema arrogância jornalistas da minha geração se arvorarem dessa missão. Acreditar nisso hoje, com a imprensa enfraquecida como está, é desmerecer o trabalho da geração que cobriu o Vietnã, as guerras na América Latina, os Bálcãs, as guerras de independência africana… Hoje a barbárie, acho, é ainda maior. Eu pude ver como milhares de civis foram dizimados pela aviação americana em Mossul, no Iraque. Como o governo de Assad massacrou milhares de pessoas em Alepo, na Síria. Vemos como as polícias no Brasil massacram as populações pobres, negras, periféricas. Como a tortura dos anos de chumbo que escandalizou a classe média e a intelectualidade brasileira segue inalterada nas bordas desse Brasil tão desigual. Nada mudou. Fomos e somos incapazes de frear a barbárie no sentido mais amplo. Aqui e ali, sim, ajudamos a conter pequenos episódios de violência. Mas os drones e os spin doctors venceram a guerra.