Entrevista com Eliane Gonçalves: futuro e passado na Empresa Brasil de Comunicação

por Larissa Gould, Priscilla Chandretti e Thiago Tanji

Foto: arquivo SJSP

Em novembro, jornalistas e radialistas da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) completaram dois anos sem Acordo Coletivo de Trabalho, instrumento garantidor de direitos adicionais aos que constam na CLT.

Em outubro, esses trabalhadores haviam recebido o Prêmio Especial Vladimir Herzog pela Contribuição ao Jornalismo, entregue a um coletivo pela primeira vez, como reconhecimento por toda a resistência em defesa da comunicação pública e contra os ataques ao jornalismo empreendidos pelo governo Bolsonaro dentro da EBC.

Conversamos com Eliane Gonçalves, jornalista da EBC. Ela foi representante dos trabalhadores no Conselho Curador da empresa de 2013 a 2016, já foi membro da Comissão de Empregados (organização própria dos funcionários) e hoje é da Comissão de Ética estadual dos jornalistas.

Eliane começou sua carreira no jornalismo pelo Correio Braziliense, passou pela Veja e em seguida foi trabalhar no SUS, onde coordenou a comunicação do programa de aids do Ministério da Saúde. Em 2004, fez concurso e entrou na Radiobrás, que foi incorporada pela EBC quando esta foi criada em 2008. Por isso, acompanhou toda a história de construção da EBC.

“Mesmo nunca tendo visto o sonho da comunicação pública se tornar concreto, a gente sabia que estava mais perto. Por isso foi tão duro ver todo o desmonte.” Nesta entrevista, falamos do passado, mas pautando as expectativas e exigências para o futuro, para a reconstrução necessária no novo governo.

Desde o golpe de 2016, a EBC vem sendo alvo prioritário. Qual seu balanço quanto aos retrocessos que ocorreram nos últimos anos?
Você pegou o ponto que, para mim, é o ponto de corte mesmo, o golpe. O processo de desmonte foi todo pavimentado no governo Temer.

No governo Lula, a EBC era tratada com aquela história de “TV traço”, “TV Lula”, uma história de que nós éramos muito irrelevantes. E o mais marcante para mim é que antes de mexer na Petrobras, antes de mexer em qualquer outra estrutura de política pública, a EBC foi a primeira atacada.

No momento do golpe, o desmonte foi brutal. Começa com o processo de demissão do Ricardo Melo, que estava investido do mandato de presidente da empresa. É um processo que vai para a Justiça. Se resolve com uma Medida Provisória, em 2017, a qual acabou com um dos pilares da comunicação pública, a autonomia política do presidente. Ele era indicado pelo presidente da República para um mandato de quatro anos, mas não poderia ser deposto por ele, teria de ser deposto pela sociedade civil. A MP acabou com isso.

E vem a dissolução do Conselho Curador, que era o controle da sociedade civil. O conselho tinha 22 integrantes, sendo 15 da sociedade civil. Ele era o único que tinha a autorização, em casos muito específicos, para demitir o presidente da empresa. Foram essas mudanças no arcabouço legal, na lei de criação da EBC, que pavimentaram aquilo que veio na sequência com Bolsonaro. Marcadamente, a confusão definitiva entre comunicação estatal e pública, quando juntou a TV Brasil com a TV NBR1. Essa fusão é o mais simbólico, mas aconteceu o mesmo em todos os veículos. As pessoas falam muito da TV Brasil, mas nosso veículo mais potente, mais relevante, é a Agência Brasil. O veículo que mais cobre os desertos comunicacionais é a Rádio Nacional. A única emissora de rádio que estava presente em Tabatinga era a Rádio Nacional, nesse caso de Dom Philips e Bruno Pereira.

As mudanças no governo Temer pavimentaram o caminho para o fim da Ouvidoria. Antes, nós tínhamos a Coluna da Ouvidora, tínhamos um relatório interno semanal, era nosso ombudsman. A gente tinha uma avaliação de como o público – o dono dos veículos – estava recebendo nosso trabalho. No governo Temer, a Ouvidoria ainda ocupava um papel, nós tínhamos relatórios bimestrais e anuais a que tínhamos acesso. No governo Bolsonaro, terminou em 2020 o mandato da última ouvidora, Cristiane Samarco, e foi agora nomeado um coronel2. E o Conselho de Administração (Consad), que é outra instância da EBC (hoje a única instância em que a gente consegue ter um representante dos trabalhadores, a Kariane Costa), autorizou o fim dos relatórios bimestrais da Ouvidoria, com a desculpa de que isso fazia mal para a imagem da empresa.

Então, houve essa completa apropriação do Bolsonaro para transformar aquilo que seriam órgãos de comunicação pública não em uma comunicação do Estado, nem em uma comunicação de governo, mas uma comunicação do governante. Era uma apropriação pessoal, mesmo. Eu estava vendo a hora em que a gente ia cobrir os canapés da primeira-dama.

Era um aparelhamento muito violento, com um processo de censura extraordinário. Os nossos dossiês de censura começaram ainda no governo Temer. Tivemos enfrentamentos com pautas que foram absolutamente interditadas, como Marielle Franco. Não se podia falar sobre ditadura. No jornalismo, a gente constrói a memória do país, fazendo o registro dos fatos, e parte dessa memória foi definitivamente cortada. Outra percepção que tivemos foi que não dava para a gente registrar só a censura, tínhamos que registrar também os casos de apropriação, de governismo.

“Vamos atravessar esse período de forma coletiva”

Enfim, foi um desastre. E uma outra coisa é o papel que isso tem nas pessoas que vão fazer parte da reconstrução de um projeto – que tem que ser entendido como da sociedade inteira.

Mas parte importante das pessoas que vão operacionalizar essa reconstrução, os funcionários, foram muito violadas. Foram seis anos trabalhando contra o antijornalismo, em que você vai sendo encostado, colocado na geladeira. Para mim, vai passar por um processo de reaprendizado do que é o trabalho e de ter autoestima. Jornalismo envolve autoestima, para você chegar numa coletiva e ter condição de abrir a boca e perguntar. E isso foi absolutamente agredido.

Você cita o fato de toda essa estrutura ser usada por um projeto do Bolsonaro, pessoal, mas o que você avalia que tem por trás disso politicamente? Nos últimos anos, a EBC teve uma direção muito ligada aos militares. Há um impacto da concepção centralizadora dos militares, dos órgãos servirem a seu projeto, sobre o debate que a EBC fazia de estar a serviço da sociedade?
O professor Laurindo Lalo Leal Filho escreveu um artigo recente e tem uma frase que me toca tanto. A duras penas, nós descobrimos que de fato estávamos construindo uma comunicação pública, que estávamos oferecendo um outro padrão de comunicação. Estávamos aprendendo, tínhamos muito a avançar, mas estávamos construindo. E foi vendo essa apropriação que percebemos. Não foi por acaso que tivemos tantos prêmios Herzog, que a sociedade civil estava sempre nos pautando, ou seja, tinha muita interlocução

Sobre o interesse político, vou juntar aqui alguns pauzinhos. Vamos pegar por exemplo as novelas da Record. Chegarmos ao absurdo de comprar novelas repetidas, que já estavam disponíveis na internet, para poder pagar a Record, o que depois é devolvido para a pessoa de Jair Bolsonaro. Isso para mim é um projeto político: milhões de reais para comprar uma novela sem qualquer critério público. E eu não falo da religiosidade, pois a gente tem que ter espaço para brasileiros de todas as religiões. Mas não cumpre a função pública, não é inovador, não fomenta o mercado de produção. Não tem nenhuma justificativa técnica.

Outro uso político que eu vejo é o quanto de conteúdo a TV Brasil e a Rádio Nacional forneceram para a máquina de mentiras do Bolsonaro. O registro dos discursos absurdos que ele proferiu, por exemplo, na reunião com os embaixadores para lançar dúvida nas urnas, ou lá atrás na promoção da cloroquina. Esse material era feito sob medida para depois ser recortado para as redes.

Também acho que é preciso investigar e pesquisar profundamente como foi a cobertura da Rádio Nacional de Tabatinga, a única emissora de rádio que chegava no Vale do Javari, no caso de Dom Philips e Bruno Pereira.

“Tem uma turma que é absolutamente incansável, a capacidade e a disciplina que muitos dos meus colegas tiveram para registrar tudo”

Jornalistas e radialistas da EBC na cerimônia de entrega do Prêmio Especial Vladimir Herzog, em outubro. Foto: Alice Vergueiro

Houve uma homenagem do Prêmio Vladimir Herzog, um dos prêmios mais importantes do jornalismo brasileiro, reconhecendo a resistência dos jornalistas e radialistas. Também ocorreu a maior greve da história da EBC no governo Bolsonaro. Como foi essa resistência no dia a dia? Como foi a participação das entidades sindicais?
Tem uns colegas da EBC que me dão um orgulho, pelos quais eu tenho uma admiração incrível. Uma turma que é absolutamente incansável, a capacidade e a disciplina que muitos dos meus colegas tiveram para registrar tudo, e eu acho que a gente vai conseguir fazer um memorial disso. Falando já de futuro, a gente tem que fazer um memorial para não repetir erros, para não cair nessa lógica brasileira de perdoar tudo, e ver o que tem que corrigir.

Tem dois casos concretos dessa resistência, que para mim são o que vão criar a base histórica do que foi o desmonte e a base para a reconstrução.

São os quatro dossiês de censura. E já está se preparando o derradeiro, relativo aos últimos seis meses do governo Bolsonaro, porque a censura continuou. Essa foi uma primeira resposta, foi um processo completamente organizado pelos funcionários. A censura é um processo que, para quem tá fora, é muito difícil ver o que aconteceu. Quem tá fora vê aquilo que foi publicado. A não ser quando ela é muito explícita, gritante, como foi nos últimos tempos. Então, ela precisa ser narrada de dentro, e você precisa mostrar os documentos. Isso te deixa vulnerável no processo de perseguição que foi instalado dentro da EBC, em que as pessoas são vigiadas, os prints das conversas viram processos administrativos.

Registrar como operou a censura é um processo de resistência, as palavras que foram interditadas, as pautas que saíram da agenda. Essa movimentação envolvia inclusive uma disponibilidade de enfrentamento e de sofrer perseguições.

Outro processo que para mim é lindo é a Ouvidoria Cidadã, um movimento que também começou com os trabalhadores, a partir do desmantelamento desse que era o único canal de comunicação com a sociedade que permanecia aberto, a Ouvidoria, e foi interditado também. A Ouvidoria Cidadã ajuda inclusive a refletir sobre esses processos de participação da sociedade, no controle do que é a comunicação pública. Não precisa necessariamente estar atrelado à estrutura, tem que ter uma certa autonomia ou independência.

Então, tem uns colegas que foram fundamentais, que estão no meu coração e vamos fazer música para eles! São pessoas que enfrentaram em momentos que eu não consegui. Eu costumava dizer que a gente tinha de trabalhar um pouco naquela formação de passarinho em migração, em que às vezes o passarinho lá na frente tem de vir aqui para trás e outro assume, para o grupo conseguir ir seguindo. Teve essa construção: vamos atravessar esse período de forma coletiva. Até me arrepio.

E os sindicatos todos foram fundamentais, inclusive na hora em que havia mais riscos de exposição para as pessoas, os documentos foram assinados pelos sindicatos. Foram parceiros fundamentais. E também a Fenaj na divulgação dos nossos dossiês, porque aí deu uma visibilidade, por exemplo, aos balanços que fizemos de todas as vezes que o Bolsonaro entrou na EBC cortando a programação para fazer pronunciamentos, seja para promover a pandemia, seja para promover sua própria pessoa.

Essa proximidade é muito estratégica, e esse é um aprendizado que tem que ficar para toda a categoria.

Por que o ataque à comunicação pública é a toda a sociedade e à democracia?
A comunicação privada hoje interdita muitos debates. Você tem a reforma da Previdência e a trabalhista, e essas grandes pautas que afetam a sociedade brasileira inteira, por décadas, foram todas debatidas ouvindo especialistas que só tinham uma opinião. Quantas vezes nós ouvimos na TV apenas que a reforma trabalhista ia aumentar o emprego. Não só não gerou empregos, como aumentou o lucro das empresas, inclusive das empresas de comunicação.

A comunicação pública tem impacto para isso: para gerar debate, para construir nosso país. Porque outras vozes existem.

“O futuro não sai do zero, muita coisa foi destruída mas a gente tem muito aprendizado”

E o que a gente tem de perspectiva agora, com a eleição de Lula? O que os colegas da EBC têm como pauta?
Primeiro: reconstruir todos os pilares que foram destruídos. Recuperar o mandato de presidente, recuperar o Conselho Curador, recuperar a Ouvidoria.

Segundo ponto: não repetir os mesmos erros. Se tem uma coisa que nos deixou vulnerável para tanto desmonte foi justamente pegar um projeto muito no nascedouro, muito frágil, e deixá-lo à mercê.

O mais legal de pensar nisso é sacar que o futuro não sai do zero, muita coisa foi destruída mas a gente tem muito aprendizado já. Tem que ter a autonomia financeira que estava prevista em lei. Um dos pilares que nunca foi executado nos governos do PT foi garantir o acesso ao fundo de fomento da comunicação pública para a EBC. Isso ia para o Tesouro e nós ficávamos dependentes.

Não se pode achar que a EBC é só uma televisão. A gente jogou muita energia na TV quando a internet estava bombando. A gente não tem que repetir o padrão Globo, com essa história de “vamos fazer uma televisão e esse é o modelo que tem”. E faz parte, né, todos nós também fomos educados. Mas perdemos muitos projetos que tínhamos lá atrás. Por exemplo, o Eugênio Bucci tinha um projeto todo de pensar a multimídia, e investia-se muito na Agência Brasil e na multiplataforma. Mas de repente focou-se num único modelo, que deixou a gente frágil porque não há estrutura necessária.

Tem que ter a participação da sociedade, tem que ter diversidade. A gente não tem compromisso com a publicidade, a gente está aqui para inventar, ousar, a gente tem que estar aqui para contribuir para um país mais justo.
Foi válido, foi justo o que a gente tava construindo, tanto que foi atacado frontalmente. Mas vamos avançar, vamos pra frente.

Qual sua percepção sobre a notícia de o Lula ter afirmado à sua equipe que quer transformar a TV Brasil na BBC brasileira? No Brasil, já tivemos emissoras públicas com programação de qualidade reconhecida, mas sem preocupação comercial ou com audiência. Qual modelo podemos buscar?
Eu fiquei muito feliz quando ouvi que o Lula falou em transformar a EBC numa BBC. Não porque eu goste do modelo da BBC. Mas o que está embutido nessa discussão é que não é uma TV estatal, não é uma TV governamental.
Agora, sobre o modelo. Acho que é importante ter audiência, ter relevância. Não dá para dizer que tá cumprindo o papel sem ter relevância.

A BBC depende de pagamento de mensalidade de todo mundo que tem uma TV em casa. Então, esse vínculo com o público dela é muito amarrado, ela tem que entregar um trabalho de qualidade, tem que se justificar. Eu acho muito legal esse conceito, é uma consolidação do seu caráter público.

Tem outros modelos que eu acho que a gente pode observar porque podem se aproximar mais do que temos no Brasil, como a PBS estadunidense. A PBS organiza as emissoras públicas dos estados federados em uma rede nacional, isso me parece muito com a estrutura do Brasil que tem TVEs estaduais. Essa foi uma grande sacada da EBC, essa noção de rede de comunicação pública também se perdeu. Ela organizava as emissoras públicas fornecendo conteúdo, e remunerando o conteúdo que vinha das estaduais. Você tinha um programa infantil do Pará, o Catalendas, maravilhoso, que a EBC remunerava e fortalecia a emissora lá.

O modelo a gente pode discutir.

E a gente tem muita coisa para construir, não é só o conteúdo produzido pela própria EBC. Você imagina a quantidade de filmes financiados pelo Ministério da Cultura, que já completaram todo o seu circuito de exibição e hoje não têm mais janela. São toneladas, e a gente poderia estar criando nosso streaming público para essa produção nacional.
Tem que ter dinheiro. Tem o fundo previsto na criação da EBC. Mas tem que focar e ter estratégia.

Entre os erros que não podem voltar a ser cometidos, é preciso pontuar que não existe comunicação pública de qualidade sem remuneração justa a seus trabalhadores. Hoje, jornalistas e radialistas da EBC estão sem Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) há dois anos. Não chegamos a esse extremo em nenhum momento dos governos Lula e Dilma, mas também tivemos vários embates trabalhistas difíceis, que exigiram entrar em greve. A expectativa imediata é que se destrave a negociação sobre o ACT. Como os trabalhadores podem encarar isso?
A gente não tem descanso. O salário está muito defasado, e as pessoas estão com dificuldade de pagar as contas. São anos de perdas salariais e de direitos. A gente tá numa gestão tão descabida que tirou até o auxílio para pessoas com deficiência.

E parte dos erros dos governos petistas dos quais falamos foi não valorizar a equipe. É tão marcante isso, a gente estava tão frágil por não ter ocupado espaço de gestão, de linha editorial. A EBC tinha um teto muito baixo para quem é da casa. Quando o Temer entrou, colocou vários funcionários nos cargos de chefia, e descobrimos que a gente não tinha a envergadura, não tinha fortalecido a coluna vertebral para usar o diferencial de ter feito concurso. Essa é uma parte muito sofrida.

Se for preciso, vamos para a briga, vai ser isso mesmo, estamos preparados. O aprendizado é que a gente tem que seguir voando em formação. Agora, talvez, com menos ventania. •