Editorial: O jornalismo resiste

Chegamos ao final de 2020 vivendo uma realidade jamais imaginada. Não estamos nos referindo aqui à devastadora pandemia que varre o planeta, e que em nossas fronteiras assume feições catastróficas. Mas ao Brasil no qual o presidente da República, numa cerimônia da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em 18 de dezembro, declara aos soldados formandos:

“Por muitas vezes, vocês estarão sós. Terão apenas Deus ao lado, e assim sendo, se preparem cada vez mais. Simulem as operações que podem aparecer pela frente. Porque, numa fração de segundo, está em risco a sua vida, a de um cidadão de bem ou a de um canalha defendido pela imprensa brasileira. Não se esqueçam disso: essa imprensa jamais estará do lado da  verdade, da honra e da lei. Sempre estará contra vocês. Pensem dessa forma para poderem agir”.

O que salta à vista nessa fala é que a crise institucional no Brasil atinge um patamar inédito, e que o seu motor é justamente Jair Bolsonaro.

No contexto específico, sua declaração surge após a imprensa noticiar (Guilherme Amado, da revista Época) que a Agência Brasileira de Informação (Abin) havia sido usada para ajudar na defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) – acusado de organização criminosa,  peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita, pelo esquema da “rachadinha”, operado pelo assessor Fabrício Queiroz, já preso. O uso também ilegal da Abin é feito sob a insustentável – mas reveladora – justificativa de preservar a “segurança da família presidencial”.

Além disso, poucos dias antes, a Folha de S.Paulo havia publicado reportagem mostrando que a polícia matou ao menos 2.215 crianças e adolescentes no Brasil de 2017 a 2019. E sabemos que Bolsonaro, precisamente, busca se aproximar das polícias como base ativa de apoio, e estimula com sua retórica permanente a truculência e a ação violenta, sem qualquer consideração aos direitos dos cidadãos. Assim, soma seus interesses particulares e de seu grupo às deformações do aparelho policial para dar mais um passo em sua escalada nefasta.

Blindagem institucional

Seja porque se sinta acuado, seja pelo cálculo político de viés autoritário que o caracteriza, Bolsonaro sente-se à vontade, numa cerimônia pública, para incitar abertamente policiais – corpo armado a serviço do Estado – a agirem contra jornalistas. Agirem a priori, note-se bem, sem qualquer motivo legal. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo apoia a nota do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio que condena a declaração e conclama os poderes Judiciário e Legislativo a tomarem providências.

Mas Bolsonaro, aparentemente, não teme ser punido pelos sucessivos crimes que comete.

Sente-se blindado institucionalmente, com impunidade garantida! Vale lembrar que, em maio de 2020, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), com mais 400 entidades, deu entrada a um pedido de impeachment contra o presidente, por diversos crimes de responsabilidade (como, até aquele momento, o apoio a manifestações pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e as diversas ações de sabotagem às medidas de combate à covid-19). Até hoje, o documento dorme na gaveta do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), junto com dezenas de outros de diferentes setores sociais. Enquanto isso, na conclusão desta edição (21/12/2020), mais de 186 mil brasileiros já haviam morrido por conta da epidemia, bom número deles, certamente, pela postura homicida do governo Bolsonaro.

Mesmo às turras com os meios de comunicação, o presidente não ignora que, politicamente, as empresas de comunicação apoiam o seu ministro da Economia, Paulo Guedes, cuja cartilha é reduzir direitos sociais e trabalhistas, privatizar o que for possível e destruir o serviço público. Pode contar com sua complacência, por assim dizer, para minorar a gravidade de seus atos, em nome da “estabilidade” até 2022…

Assim, no atual cenário, quem defende o jornalismo até as últimas consequências somos nós, os próprios jornalistas!

Resistência

Em um interessante texto de 20 de dezembro, Flavia Lima, ombudsman da Folha, discute a validade de o jornal ter, em editorial condenando o comportamento do presidente frente à pandemia, utilizado termos como “estupidez assassina de Jair Bolsonaro”, “irresponsabilidade delinquente”, “círculo de patifes” e “descaso homicida”. Sobre isso, podemos opinar que o editorial não deixa de ser, a seu modo, um indicador sobre o ponto a que chega a desagregação do tecido político-social brasileiro.

A ombudsman, porém, está coberta de razão ao concluir que, de fato, o que incomoda o mandatário são reportagens, é o “jornalismo investigativo”. Bolsonaro busca impedir, a  todo custo – com ferramentas como fake news, intimidação e uso dos meios de Estado –, que os fatos venham a público.

Mas os fatos são teimosos! Mesmo nas mais difíceis condições, o jornalismo busca se afirmar, como uma plantinha em meio ao asfalto. Chamou a atenção a demissão de dez jornalistas do canal Loading, responsáveis pelo programa Metagaming, sobre esportes eletrônicos, ocorrida em dezembro. Todos se recusaram a compactuar com a censura vinda da direção do canal, que buscava impedi-los de fazer jornalismo – neste caso, divulgar notícias de interesse de seu público, que contrariavam potenciais interesses comerciais do empregador (leia na pág.

8). Agiram com coragem e integridade, e recebem todo o apoio deste Sindicato.                             

Como noticiado no último Unidade, iniciaremos o ano articulando o apoio à iniciativa adotada pela Fenaj de taxação das grandes plataformas, visando a criar um fundo de apoio ao  jornalismo. Nesta edição, o perfil da categoria traduz as consequências do domínio econômico das multinacionais da tecnologia sobre o ambiente da comunicação em termos de perda de postos de trabalho.

O fato é que o jornalismo resiste. Um exemplo é o nosso Sindicato, que, mesmo em um ano de pandemia, viu crescer o seu número de filiados. Isso expressa a vontade de uma categoria de defender a dignidade de seu trabalho, seus salários, seus direitos, suas condições de exercer a profissão. O jornalismo é responsável por atender o direito do cidadão à informação, ofício vital diante dos desafios que se colocam para o Brasil. Em 2021, estaremos firmes para prosseguir nesta missão.

Diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo

Correção:

No artigo “Em defesa do jornalismo profissional”, publicado na última edição, à pág. 16, a citação correta é ao Jornal GGN (e não GNN)