Editorial: A pergunta e o crime

Minha vontade é encher tua boca na porra­da, tá?” Assim o excelentíssimo senhor presidente da República respondeu à simples, correta e direta pergunta que havia sido feita por um repórter de O Globo, em 23 de agosto, na frente da catedral de Brasília: “Presidente, por que sua esposa Mi­chelle recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”

Jair Bolsonaro não cessa de cometer crimes à frente da Presidência. O desse dia é tipificado no Código Penal como “ameaça”, no ar­tigo 147: “Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave. Pena: detenção, de um a seis me­ses, ou multa”. Se ainda se mantém livre, andando de lá para cá (sem máscara!!), é porque tem quem o defenda além de seus guarda-costas.

O jornalismo é alvo constante das agressões de Bolsonaro porque ele, sim­plesmente, não pode responder a meras perguntas. Da teia que o envolve à crimi­nosa ação das milícias no Rio de Janeiro, aos desvios de dinheiro público que sua família opera há décadas no cotidiano dos gabinetes parlamentares, à catastrófica atuação governamental que empurrou o Brasil para a mortandade na pandemia, aos interesses escusos e estrangeiros que dilapidam o patrimônio nacional emer­ge um sem-número de questões para as quais nada de razoável e crível pode ser expresso a um jornalista. A alternativa da qual lança mão – bem de acordo com a sua personalidade bélica e destemperada – são os ataques frequentes à imprensa e aos profissionais do jornalismo, que merecem repúdio sistemático dos sindicatos e da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), bem como das entidades e personalidades democráticas deste país. A questão é extremamente grave: as barbaridades que Bolsonaro vocife­ra transformam-se em hostilidade aberta contra o trabalho de jornalistas, e até mesmo em agressões físicas.

Como se explica tamanha desenvoltura de um mandatário para praticar delitos e mais delitos à frente de todos? Pelo fato de que há uma poderosa rede de interesses que o sustenta, a começar pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), engavetador até o momento de dezenas de pedidos de impeach­ment contra o presidente, como o que a Fenaj apresentou em 21 de maio, com outras entidades, por crimes de responsabilidade – o apoio aberto aos atos pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e a sabotagem das ações de combate à covid-19.

Cobertura ambígua

Chama a atenção, entretanto, o tratamento dado pela gran­de imprensa ao atual presidente: no dia seguinte à ameaça, o noticiário reduzia a gravidade dos fatos, bem ao contrário do que fazia quando os ocupantes do Planalto eram outros e havia interesse em ampliar as crises palacianas. A ameaça de Bolso­naro não mereceu manchete principal nem em O Globo, cujo repórter foi a vítima. A abordagem banaliza o comportamento do agressor, como algo ligado a uma personalidade folclórica… Nada mais longe da realidade.

Se um crime praticado em público pelo presidente da Repú­blica, contra a atividade da imprensa, não merece manchete dos principais órgãos da própria imprensa, é porque há uma força consciente para não fazer marola. Afinal, este ainda é o governo do Paulo Guedes.

As empresas jornalísticas – “jornalísticas”, claro, mas sobretudo empresas – não escondem seu apoio à mesmíssima agenda cujo fiador é Maia: o desmonte dos direitos trabalhistas, o rebaixamen­to do custo do trabalho, a redução e a privatização dos serviços públicos. Um rumo de marcha à ré em qualquer projeto de polí­tica social, e uns fiapos atrelados aos interesses de manipulação eleitoral. Afinal, o grosso do dinheiro deve ser preservado para o setor financeiro, cujos lucros se mantêm no ambiente da recessão. De Bolsonaro tolera-se muito, desde que não atrapalhe…

Mesmo em meio à pandemia, com os jornalistas em intensa atividade, a maior parte das empresas de comunicação lançou mão dos mecanismos oficiais para reduzir salários, adiar paga­mentos de férias e economizar recursos à custa de seus funcionários – submetidos a incrível pressão profissional e pessoal, como mostra nossa matéria de capa no caso extremo das mães jornalistas. Gra­ças ao mecanismo concebido por Guedes e promulgado por Bolsonaro, as empresas puderam usufruir de cortes de gastos e re­ceber ajuda oficial para pagar parte dos salários sem precisar apresentar nenhuma justificativa ou evidência da necessidade de aporte extraordinário!

Abaixo a censura!

O rosário de crimes presidenciais é des­fiado sob o olhar complacente também da cúpula da Justiça. Apesar da criminalidade explícita de suas atividades, as medidas judiciais contra Fabrício Queiroz e os de sua relação próxima andam a passo de tartaruga. Por isso, a simples pergunta do repórter reverbera incômoda também nos corredores dos tribunais.

Há quem sonhe que o Brasil de ama­nhã se torne o de ontem. Lança-se mão da abjeta censura: em 28 de agosto, uma vara judicial do Rio de Janeiro determinou ao Jornal GGN que retirasse do ar 11 matérias sobre o banco BTG Pactual (que tem o ministro Paulo Guedes como um de seus fundadores), de autoria dos jornalistas Luis Nassif e Patrícia Faerman. A medida recebeu condenação imediata de diversas entidades, entre as quais este Sindicato e a Fenaj. As reportagens abordavam casos suspei­tos de favorecimento ao BTG, como, entre outros, a compra de créditos do Banco do Brasil com deságio de quase 90%. Diante da impossibilidade de dar respostas que não os incriminem, os envolvidos agem para calar a imprensa. Não conseguirão.

Em meio à pandemia, às mais terríveis dificuldades, nossa cate­goria profissional resiste, e este Sindicato se esforça, a cada dia, para ser uma ferramenta útil para a defesa da profissão, para que qual­quer jornalista, a qualquer momento, possa perguntar livremente:

“Presidente, por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”

Diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo


CORREÇÃO: Na edição 405, na pág. 9, em vez de “Supremo Tribunal de Justiça”, deve-se ler Superior Tribunal de Justiça.