Desinformação versus jornalismo

Em documento enviado ao Congresso Nacional, sobre o Projeto de Lei apelidado de PL das Fake News, o Google afirma que está “investindo milhões de reais para apoiar o jornalismo e os veículos brasileiros”, citando a cifra de R$ 17 milhões destinados a um fundo emergencial para manter mais de 400 veículos brasileiros afetados pela pandemia.

O argumento sobre suporte financeiro para trabalho jornalístico segue a linha de suas alardeadas ações para “construir um futuro mais forte para o jornalismo”. É a Google News Iniciative, ou Iniciativa do Google Notícias, que se apresenta como um “esforço para trabalhar com o setor de notícias para ajudar o jornalismo a prosperar na era digital”.

Rogério Christofoletti, professor e pesquisador do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), avalia que o Google está oferecendo migalhas. Ele lembra, por exemplo, a divulgação em outubro de 10 empreendimentos jornalísticos que serão apoiados pela gigante digital, com o valor de “até 20 mil dólares” para cada. “Um jornalista nos EUA ganha, em média, entre 44 e 55 mil dólares por ano. O grande apoio do Google é pagar 5 meses do salário de um repórter”. (A estimativa da Federação Internacional de Jornalistas, inclusive, é que uma taxação de 6% sobre as receitas das Gafam poderia gerar uma injeção no jornalismo de US$54 bilhões).

O pesquisador olha com muita desconfiança este tipo de iniciativa das plataformas, que coincide, temporalmente, com o crescimento do debate sobre a drenagem de recursos publicitários e o uso não remunerado de conteúdo, e com a preocupação com o aumento vertiginoso de fake news e seus impactos na democracia. É como se, frente à pressão pública por regulação, as empresas de tecnologia respondessem que elas estão tomando medidas por conta própria.

A jornalista Renata Mielli, secretária-geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e integrante da Coalizão Direitos na Rede, explica que o maior interesse das plataformas digitais é manter o usuário “navegando o maior tempo possível nessa janela, nessa plataforma, é assim que eles monetizam mais. Por isso, vão construído bolhas a partir do seu interesse, mas também daquilo que tende a ser seu interesse, com base no histórico e nas informações individualizadas que retêm. E o que sabemos desde antes da internet, de jornais sensacionalistas que foram os primeiros click baites, é que o que viraliza de maneira mais veloz são conteúdos que despertam medo, raiva, emoções que te deixam inebriado”.

Mielli critica os propalados esforços das plataformas para combater a desinformação. “É uma série de mecanismos totalmente opacos, decisões tomadas no âmbito privado. Elas não se consideram empresas de mídia mas acabam cumprindo o papel de edição, de curadores. Em um jornal, essas decisões são tomadas pelos profissionais do jornalismo. Você pode criticar as decisões editoriais, mas conhece as regras”.

Ela se refere a mecanismos que atribuem relevância para os conteúdos, privilegiando a mídia tradicional, ou as decisões recentes de Twitter e Facebook de ocultar conteúdos ou classificá-los como fake news. “Quais são os critérios usados pelo Facebook para dizer que a apuração de um veículo jornalístico é mais cuidadoso que outro? Ou para escolher em um debate público, por exemplo, se há ou não déficit na Previdência, qual informação é verdadeira? Como será dado o limite entre ocultação de fake news e censura a um ponto de vista? Por enquanto, tem sido dada de forma discricionária, sem diálogo.”

Plataformas digitais pretendem ampliar seu poder, além do econômico, para concentrar decisões que afetam o debate na esfera pública

O risco é o de vermos o aumento do poder dessas plataformas, não só no que diz respeito ao poder econômico, mas àquele proveniente da concentração da tomada de decisão sobre os critérios usados nas redes. E agora, também, com as big techs assumindo para si a função de determinar quais veículos serão merecedores de receber recursos provenientes da publicidade gerada em cima de milhões de produtores de conteúdo.

Christofoletti avalia que “elas não são apenas provedores de serviços, elas intervêm no debate democrático, é por isso importante que subsidiem este debate público, inclusive porque fazem uso de nossos dados”. Mas crê que a forma de fazer isso é justamente pela taxação que gere, ao Estado, as condições de fomentar um jornalismo de qualidade. Ele é a favor de um “fundo público, com governança multissetorial, transparência, auditável, que tenha recursos vindo de quem está justamente drenando esses recursos, como as grandes plataformas. Um fundo como esse que fosse destinado à informação, para combater a desinformação, seria inclusive uma maneira de fazer valer a Constituição no capítulo da Comunicação”.

“Esse não é um problema de jornalistas, é de toda a sociedade, todo mundo é afetado e precisa de informação. Nós não podemos deixar que Google e Facebook tomem as rédeas. Quanto mais coletivo e aberto for o debate na sociedade, melhores as condições de construirmos uma solução sustentável e legítima”, afirma o pesquisador.

Maria José Braga, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), concorda: “Temos no Brasil cerca de 4 mil municípios sem nenhum veículo de comunicação, os chamados desertos de notícias nos quais a população somente recebe informações de fora. E como podem exercer sua cidadania? Esse é um debate que interessa a toda a sociedade. Infelizmente, a maioria, por falta de informação, ainda não tem essa compreensão. Nosso desafio maior é mostrar a importância do Jornalismo.” ■