Conectando o passado ao presente

Do busto de Luiz Gama ao recém-descoberto sítio arqueológico do Bixiga: o papel da imprensa na preservação da memória

por Thais Folego Gama

Ato do Movimento Saracura Vai-Vai no local onde está sendo construída uma estação de Metrô no bairro do Bixiga

“É um pedaço da África. As relíquias da pobre raça, impelida [sic] pela civilização cosmopolita que invadiu a cidade depois de 88, foi dar ali naquelas furnas. Uma linha de casebres borda as margens do riacho”. Assim descreveu o jornal Correio Paulistano a região do vale do rio Saracura, onde hoje fica o bairro do Bixiga em São Paulo, no dia 9 de outubro de 1907. Nessa região foi localizado neste ano o Sítio Arqueológico Saracura, local onde ainda é possível encontrar sinais do Quilombo da Saracura do início do século 20. Os artefatos foram encontrados no início das escavações da obra da futura Estação 14 Bis da Linha 6 – Laranja do Metrô.

“O papel da imprensa tem sido fundamental para comprovarmos fatos do passado, mesmo que eles sejam negligentes em relação à importante contribuição negra”, diz Claudia Alexandre, jornalista, pesquisadora de tradições afro-brasileiras e integrante do Movimento Saracura Vai- -Vai. Formado por moradores do Bixiga, ativistas, multiprofissionais e agentes da sociedade civil, o movimento reivindica a preservação do sítio, que foi parte do Quilombo Saracura e da histórica quadra da escola de samba Vai-Vai. “É exatamente o que está acontecendo com a atuação do Movimento Saracura Vai-Vai. Antigas reportagens e colunas de jornais atestam a presença negra e a existência do antigo Quilombo Saracura. Um Quilombo que a história oficial não registrou dignamente”, conta Claudia.

Como outros bairros de São Paulo, o Bixiga é objeto de uma disputa de narrativa histórica entre o movimento negro e a descrição do bairro como sendo de imigração italiana, “narrativa reforçada pela imprensa hegemônica, mesmo a imprensa negra reivindicando a história negra no bairro há décadas”, lembra Adriana Terra, jornalista, moradora do Bixiga e pesquisadora das relações de pertencimento ao bairro no mestrado em estudos culturais. O mesmo ocorre com o bairro da Liberdade, cuja memória e histórias negras são reivindicadas e preservadas pelo movimento negro, mas cuja estação do Metrô foi recentemente alterada para Japão-Liberdade, demarcando apenas a imigração oriental.

A cobertura e a conscientização da imprensa têm ajudado o Movimento Saracura na sensibilização pública sobre o tema e o conectado historicamente a casos semelhantes, como o Sítio Arqueológico Cemitério dos Aflitos, encontrado no bairro da Liberdade em 2018. “Essa questão das descobertas de sítios arqueológicos era muito elitizada e não tinha muita cobertura pela imprensa. Isso mudou com o Sítio Arqueológico dos Aflitos, que ganhou grande repercussão e chamou atenção da opinião pública”, conta o escritor e jornalista Abílio Ferreira, que se dedica à pesquisa e resgate de figuras históricas apagadas da memória oficial. Segundo ele, a relação entre os dois sítios é obrigatória, pois faz parte de pautas que são sistêmicas.

Quando grandes veículos são tocados pela relevância da pauta e abrem espaço para apuração dos fatos, para além do registro público, legitimam a importância de pautas que abordem e unam as memórias negras e o processo histórico das grandes cidades e seus bairros, explica Claudia Alexandre.

O primeiro monumento público na cidade de São Paulo a prestar homenagem a um líder negro foi o busto do abolicionista Luiz Gama, inaugurado em 1931 no Largo do Arouche. A construção foi iniciativa do Progresso, um veículo da imprensa negra paulistana que arrecadou fundos para a obra. “Houve uma disputa simbólica: por meio de uma imprensa que era fruto de sua auto-organização, o movimento negro batalhou por cravar na cidade, a essa altura já cheia de homenagens a personalidades locais e nacionais, um representante da herança africana, explicam os pesquisadores Lúcia Klück Stumpf e Júlio César de Oliveira Vellozo em artigo.

O local da construção do busto também é simbólico, pois o Largo do Arouche fica localizado numa região cujas terras eram do juiz Antonio Pinto do Rego Freitas, desafeto público de Luiz Gama. “O contexto e a localização oferecem um significado especial ao busto de Luiz Gama no Largo do Arouche”, diz Abílio Ferreira. Ele conta que Gama utilizava a imprensa para tornar públicos seus embates jurídicos na libertação de pessoas escravizadas. “Ele usava estrategicamente a imprensa como veículo de combate e resistência”, explica.