Com 168 mil mortes por covid, Doria canta vitória

Embora embalada em roupagens científicas, estratégia do governo estadual sacrificou vidas ao priorizar economia aberta por meio do “Plano São Paulo”

De olho na campanha presidencial, o então governador Doria expôs jornalistas a aglomerações em coletivas e outros eventos públicos

No Brasil, levando-se em conta os dados disponíveis no dia 27 de abril de 2022, nada menos do que 17,68% dos casos (5.375.515 de um total de 30.399.004) e 25,35% das mortes por covid-19 (168.106 de um total de 663.111) ocorreram na unidade mais rica da federação: o estado de São Paulo. A Argentina, com população semelhante (45 milhões de habitantes, ante 44 milhões de São Paulo), registrou 9 milhões de casos e 129 mil mortes no mesmo período. Ou seja: teve um número de casos quase 70% maior que São Paulo, porém apresentou uma quantidade de óbitos 30% menor. 

Apesar disso, o então governador João Doria (PSDB), hoje candidato à Presidência da República, “vende” sua gestão como vitoriosa frente à pandemia. “A vacina salvou vidas. Preservou famílias. Investimos em ciência em São Paulo mais do que o governo federal investe no Brasil”, proclamou, em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 31/3, às vésperas de deixar o cargo para se desincompatibilizar. “Fizemos de São Paulo um dos raros lugares do mundo com crescimento econômico durante a crise sanitária”. Talvez seja verdade. Mas a que preço? 

Antes do primeiro caso da covid-19 notificado em território nacional, em fevereiro de 2020 na cidade de São Paulo, o país “teve dois meses inteiros para se preparar e enfrentar a disseminação da covid-19 e não o fez, porque o governo federal adotou a política de conviver com a doença em nosso meio para não afetar a vida econômica nacional”, comentou para o Unidade um experiente médico sanitarista, que trabalha há décadas na rede pública de saúde. “Deixamos de encomendar, importar, adquirir e estimular a produção interna, ao seu tempo, de equipamentos de proteção individual apropriados para profissionais de saúde e também para a população (máscaras, entre outros); de testes diagnósticos e de ventiladores pulmonares”. 

Na sua avaliação, “a política do governo federal de conviver com a doença para não afetar a vida econômica nacional, em março de 2020, ensejou o protagonismo de governadores e, em menor medida, de dirigentes de dadas municipalidades”. O subproduto mais dramático da ausência de coordenação nacional no combate à covid-19, explica, “foi a extrema politização do enfrentamento da doença no âmbito estadual e municipal, apesar da recorrente apresentação de “razões científicas’ como justificativa para as providências adotadas por governadores e prefeitos”. 

Doria foi o exemplo emblemático dessa politização, ao fazer do combate à pandemia uma plataforma para se projetar nacionalmente. “Todo o processo, nos detalhes, até ele sair, foi coordenado pelo Palácio dos Bandeirantes”, diz o sanitarista. A tal ponto que, quando o comitê de especialistas que ele próprio nomeou começou a se opor mais firmemente às medidas adotadas, ele simplesmente dissolveu o grupo, trocando seus integrantes por outros mais alinhados ao governo. 

“A saída do isolamento social em maio e junho de 2020 foi uma das mais precoces manifestações desse fenômeno: os estados da federação, no momento em que aumentavam o número de casos e de óbitos por covid-19, anunciaram planos de flexibilização”. Foi o caso do chamado “Plano São Paulo”, de Doria. 

O governo estadual, aponta o profissional da saúde pública, deixou de realizar campanhas massivas de esclarecimento à população sobre a doença, bem como sobre medidas de prevenção e estímulo à procura de atendimento médico na presença de sintomas. Não providenciou testes diagnósticos para a rede pública de serviços de saúde, de modo a detectar infecção pelo Sars-CoV-2 no caso de pessoas que apresentassem sintomas leves e no caso de pessoas que tivessem tido contato com pacientes acometidos por covid-19, nem buscou fazer o rastreamento de contatos de casos de covid-19 para providenciar o isolamento e a testagem diagnóstica. Não foram criados, pelo governo estadual e pelas prefeituras, locais para o isolamento de pessoas com quadro clínico suspeito da doença e cuja condição social tornasse impeditivo o isolamento.

O mais grave é que não houve a “paralisação de todas as atividades não essenciais, inclusive a indústria e a construção civil, pelo período necessário à redução drástica da transmissão viral, portanto, por período necessário à diminuição do número de casos confirmados e de óbitos”, bem como à adequada preparação do Sistema Único de Saúde (SUS) para o enfrentamento da pandemia. 

Em outras palavras, o “Plano São Paulo”, tal como planos similares em outros estados, apesar de “embalado em roupagens técnicas e científicas, na essência correspondia ao discurso do governo Bolsonaro no sentido de manter a economia funcionando”, avalia o sanitarista. “No estado de São Paulo tal politização, durante dois anos ininterruptos, foi máxima”. 

No seu entender, os recursos orçamentários à disposição do governo estadual, as transferências de recursos federais do Ministério da Saúde, a ampla malha de serviços públicos e privados instalada no estado, as instituições estaduais do campo da Saúde, “a exemplo do secular Instituto Butantan”, as universidades públicas, as estruturas de saúde do estado e das municipalidades, o contingente numeroso de especialistas que poderiam conduzir de modo mais firme e ousado o enfrentamento da pandemia, entre outros pontos materiais e estruturais favoráveis, “possibilitariam resultados sobremaneira melhores — menores números de casos e de óbitos — do que os observados, caso houvesse ação enérgica para diminuir a transmissão do Sars-CoV-2 ao seu tempo, ou seja: no primeiro quadrimestre de 2020”. 

Uma prova contundente do “negacionismo gourmet” de Doria no enfrentamento da pandemia foi o modo irresponsável como foram conduzidas certas atividades de interesse do governo estadual. A tal ponto que, em 30 de agosto de 2021, o site do Sindicato dos Jornalistas mancheteou: “Em campanha, Doria age como negacionista e expõe jornalistas a aglomerações”. A matéria informa que o então governador vinha promovendo “eventos públicos com centenas de participantes, em local fechado”, obrigando jornalistas e funcionários do governo estadual “a se expor nessas agendas, muitas delas com caráter eleitoreiro”. (PP)