AGÊNCIA ALMA PRETA LANÇA SEU MANUAL DE REDAÇÃO ANTIRRACISTA

Resultado de um trabalho feito por pesquisadores, jornalistas e estudantes, publicação condensa a visão editorial construída em oito anos de atuação na cobertura da temática racial

por Flavio Carrança (*)

Especializada na cobertura da temática racial, a agência Alma Preta Jornalismo lançou no mês de agosto, em evento realizado em São Paulo, o Manual de Redação: o Jornalismo Antirracista a partir da Experiência da Alma Preta, que em breve será colocado à venda. Resultado de três anos de trabalho feito por pesquisadores, jornalistas e estudantes, a obra condensa a visão editorial construída pela agência ao longo de oito anos de atuação.

A intenção é de que a obra – além de servir como referência interna na própria agência – estabeleça parâmetros para auxiliar jornalistas e comunicadores na cobertura da questão racial no Brasil. A elaboração do material começou nos primeiros dias da pandemia, em 2020, e incluiu a realização de encontros virtuais semanais entre os pesquisadores, o estudo de documentos históricos e mais de 40 entrevistas com jornalistas considerados referências na imprensa negra brasileira.

Não por acaso, logo no início do texto, o manual da Alma Preta traz um resumo sobre as características dos principais veículos da imprensa negra brasileira, com o objetivo de se situar como continuidade dessa tradição que começou em 14 de setembro de 1833, data de lançamento de O Homem de Cor. São, portanto, 190 anos de existência, fixando uma longevidade de publicação de jornais e revistas que comprova o caráter tradicional da mídia feita por pessoas negras. “Essa trajetória da imprensa negra e a solidez dos projetos editoriais – diz o texto do manual nesse trecho – serviram de base para a criação dos canais atuais, alguns deles profissionalizados. A geração de hoje mantém as características do passado, de ser feita por pessoas negras, dirigir-se a esse público e ter como norte a luta antirracista; além disso, inova em formatos editoriais, comerciais e administrativos”.

“Material denso”

O jornalista Pedro Borges, diretor editorial e cofundador da Alma, um dos idealizadores do projeto, afirma: “Esse não é um manual de redação com dicas para você não ser racista escrevendo matérias. É óbvio que, se você entrar de cabeça no manual, há uma série de colocações e sinalizações que fazemos de palavras que a Alma Preta não utiliza, e uma explicação de por que não as utiliza. Mas isso é muito pouco para olhar para o nosso manual. Ele conseguiu casar, para além da dimensão política e ética, critérios de noticiabilidade”.

Durante a fala que fez no evento de lançamento da obra, Borges citou o exemplo da segurança pública, observando que, em um país onde, notoriamente, agentes policiais violam com frequência direitos fundamentais em suas abordagens, onde o encarceramento em massa afeta desproporcionalmente a população negra, e onde, em 2021, a cada 10 pessoas mortas pela polícia, 8 eram negras, é preciso saber quais cuidados um jornalista deve tomar ao abordar o tema da violência, de modo a não repetir e perpetuar injustiças.

Pedro acrescenta que o manual indica cuidados de segurança para um jornalista preto que vá cobrir manifestações e faz recomendações técnicas para coberturas específicas, como saúde e segurança pública.

O longo e meticuloso processo de pesquisa que levou à elaboração do Manual da Alma Preta teve consultoria e acompanhamento permanente da historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, atual presidente do Arquivo Nacional e professora da Universidade Nacional de Brasília (UnB), e do jornalista Juarez Xavier, professor e vice-diretor da Faculdade de Artes, Arquitetura e Comunicação (Faac) da Unesp. “Eles foram fundamentais para o grupo apresentar à sociedade um material denso, que permite uma reflexão sobre critérios de noticiabilidade, cuidados para a cobertura e termos adequados a serem utilizados – tudo a partir de uma perspectiva antirracista e libertadora”, ressaltou Pedro Borges.

PEDRO BORGES: EM UM PAÍS ONDE, EM 2021, 8 EM CADA 10 PESSOAS MORTAS PELA POLÍCIA ERAM NEGRAS, O JORNALISTA PRECISA TOMAR CUIDADOS AO ABORDAR O TEMA DA VIOLÊNCIA, PARA NÃO PERPETUAR INJUSTIÇAS

Da esq. para dir. Marcelo Vinícius, Victor Moura, Fernanda Rosário, Natália Maria
Faria Santos, Ana Flávia Magalhães e Pedro Borges. Foto: © DIVULGAÇÃO/ALMA PRETA

Fernanda Rosário, que começou a participar da equipe do projeto quando ainda era estudante, informa que a maior seção do manual traz estratégias para que não se reproduza a violência dentro de vários temas que o jornalismo pode abordar. “Não só quando se fala sobre a discriminação, preconceito e o racismo em si, mas de todos os temas que abrangem a vida da população negra, como por exemplo a saúde, a cultura, o meio ambiente”, afirmou, durante o evento de lançamento.

Outra participante do projeto enquanto estudante, a coautora Natália Maria Faria Santos, ressaltou a presença na obra de reflexões éticas aplicadas à prática. Lembrando que na universidade se discute muito imparcialidade, neutralidade e objetividade, explicou como a Alma Preta vê esses temas éticos dentro do jornalismo: “Abrimos espaço e fazemos um convite no manual para refletir um pouco sobre esses temas. Como fazer reportagens sobre o meio ambiente de modo relacionado a povos negros e indígenas? Como falar sobre tradições de matriz africana? Como falar com crianças sobre a luta, sobre o movimento, sobre tudo o que a gente vivencia?”

A intenção da equipe é de que o manual seja utilizado por jornalistas e que também seja útil para estudantes e o público em geral. “É óbvio que a gente quer muito que o material caia na mão dos estudantes negros, dos jornalistas negros”, afirma Pedro Borges, acrescentando que pode servir como norte para a produção do jornalismo na mão de qualquer pessoa. Na visão dele, o Manual de Redação da Alma Preta deve estar em especial na mão das pessoas comprometidas com construir um jornalismo “que fuja daqueles princípios de que o jornalismo deve ser só um espelho da realidade, que estão comprometidas com o jornalismo como uma ferramenta de transformação social”.

(*) Jornalista aposentado e integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial de São Paulo (Cojira SP)