Memórias de infâncias marcadas pela ditadura

por João Marques

Em 2023, quando o golpe militar contra o governo de Salvador Allende completava 50 anos, foi formado um grupo de brasileiros exilados durante a ditadura no Brasil, o Viva Chile, que organizou uma viagem a Santiago para rememorar a data, repudiar o golpe e agradecer ao povo chileno pela acolhida tão calorosa. Parte desse grupo — que na época do exílio ainda eram pequenos, alguns, inclusive, nasceram fora do Brasil —, formaram o “Crianças e Exílio”. Em seguida, criaram um grupo de WhatsApp que, ampliado, chegou a ter 67 participantes. Na volta do Chile, continuaram trocando mensagens pelo grupo, com lembranças, fotos e memórias de amizades interrompidas. Foi dessa troca que surgiu a ideia de um livro coletivo, o Crianças e Exílio – Memórias de Infâncias Marcadas pela Ditadura Militar (Carta Editora, 344 págs.), obra lançada em maio deste ano. Organizado pelas professoras Nadejda Marques e Helena Dória Lucas de Oliveira, que também foram crianças exiladas, o volume traz 46 textos que contam histórias de infâncias no exílio.

“Chama-se exílio quando a gente vai embora pequenininha, ou nasce lá fora? Exílio é saudade, é estar fora da sua pátria, longe de suas raízes e seus familiares. Eu nunca tive saudade do Brasil. Saí com três anos, minha única lembrança é dos dois coelhinhos que tínhamos em casa; saudades, só dos avós. E no entanto… Somos a geração dos filhos exilados. E depois de muito tempo estamos percebendo que, cada qual com sua história, uma tão diferente da outra, temos algo muito forte em comum.” (Silvia Whitaker).

Com texto de orelha de Caco Barcelos e apresentação de Eduardo Reina, o livro apresenta depoimentos de pessoas que hoje vivem tanto no Brasil, quanto no exterior – em países como França, Alemanha, Itália, Estados Unidos e Portugal. São indivíduos que quando criança tiveram as vidas terrivelmente alteradas pela perseguição às suas famílias. Com diversos níveis de comprometimento, vivenciaram traumas em fase de formação emocional, que podem ter persistido por décadas. Das 67 pessoas do grupo, somente 46 se sentiram emocionalmente preparadas para compartilhar as suas histórias publicamente.

“Não há dúvida de que o exílio foi uma expressão da violência do Estado brasileiro. Antes do exílio, essas crianças foram submetidas a outras formas de violência, como perseguição a seus pais e familiares. Algumas testemunharam a prisão arbitrária dos pais, outras foram torturadas ou usadas para torturar seus pais. O exílio se soma a essas violências forçando a separação das crianças de familiares, amigos, escola e comunidades de forma traumática e abrupta e, em alguns casos, negando a elas o direito à cidadania”, declarou Nadejda Marques, em entrevista a Agência Brasil.

Antes de Crianças e Exílio, o Infância Roubada, organizado pela Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo, também trouxe relatos de crianças vítimas da ditadura brasileira. Lançados em 2014, livro e documentário apresentam 40 testemunhos de pessoas que foram afastadas dos pais quando crianças ou os viram ser torturados.