por Dennis de Oliveira¹
Em 10 de junho de 1925, nascia Clóvis Steiger Moura, na cidade de Amarante (PI) que se tornaria um dos principais intelectuais brasileiros particularmente na abordagem das relações raciais. Clóvis Moura, como ficou mais conhecido, atuou como jornalista logo na juventude. Criou o jornal estudantil “O Potiguar”, porta-voz do Grêmio dos estudantes do Colégio Diocesano, em Natal (RN) onde estudava. Nos anos 1940, já atuando no PCB (Partido Comunista do Brasil), Clóvis Moura escreveu para publicações do partido, tanto artigos como poesias.
Sua atuação como jornalista teve o seu auge quando foi redator do periódico Momento, jornal diário do PCB em Salvador (BA) entre 1945 e 1957. Entre 1952 e 1958, trabalhou também no conhecido jornal Última Hora, diário dirigido por Samuel Weiner e que tinha linha editorial favorável ao trabalhismo de Getúlio Vargas. E neste mesmo período, foi secretário de redação da revista Fundamentos, periódico trimestral do PCB e que possibilitou sua aproximação com a intelectualidade do PCB como Armenio Guedes, Villanova Artigas e Caio Prado Júnior. Os artigos publicados por Moura nesta revista teórica comunista versavam sobre literatura e história.
Mas a grande contribuição de Moura foi colocar a luta antirracista como centro da dinâmica social brasileira, tensionando e renovando o pensamento social de esquerda no Brasil. Primeiramente, Moura já estabelece um marco teórico contra Gilberto Freyre, intelectual influente após os anos 1930 e que hegemonizava a forma de se considerar as relações raciais no Brasil com a publicação em 1959 de Rebeliões da Senzala. O título já demonstra o seu contraponto com Casa Grande e Senzala, de Freyre que sinalizava para um equilíbrio dos antagonismos de raça e classe no período da escravidão no Brasil por conta da hipótese freyreana de um comportamento assimilacionista e tolerante do branco português. Para Moura, longe deste equilíbrio, havia uma tensão e um conflito expresso em várias rebeliões dos escravizados que marcam o início da rebelião do trabalho no Brasil.
Este posicionamento de Moura não só contrastava com o pensamento freyreano do “equilíbrio de antagonismos” (base da idéia de “democracia racial”) mas também com outros autores do pensamento social marxista brasileiro de que o negro escravizado não era sujeito político na sociedade do escravismo colonial. A esmagadora maioria do pensamento social marxista de então considerava que a luta de classes no Brasil se inicia com as greves operárias do final do século XIX e início do século XX, já dentro do trabalho assalariado organizado pelo sindicalismo construído pelos imigrantes europeus.
A ousadia de Moura custou-lhe caro. Os seus livros foram publicados por pequenas editoras, já que a maioria das grandes editoras que publicava obras de esquerda eram influenciadas pelo pensamento oficial dos intelectuais do PCB². Além disso, a sua concepção antifreyreana desmontava o mito da democracia racial brasileira que durante muito tempo foi o discurso oficial do país.
Outro aspecto de Moura interditou a sua presença no pensamento acadêmico: o fato dele não ter feito uma carreira acadêmica tradicional, ter sido um intelectual autodidata. Na obra Sociologia posta em questão (1978), Moura critica duramente a prática sociológica institucional que se desenvolve apartada das lutas sociais, da práxis política e que se contenta com diagnósticos meramente instrumentais sem qualquer compromisso com a transformação. Oposto a este tipo de prática intelectual, Moura desenvolveu suas ideias em articulação direta com as práticas políticas dos movimentos sociais. Por isto, há vários registros de participação dele, já como intelectual consagrado com várias obras, em eventos de organizações do movimento negro (como o Movimento Negro Unificado, União de Negros pela Igualdade, posses de hip-hop, entre outros).
Em alguns momentos, demonstrava impaciência com o desconhecimento de dados importantes da luta do povo negro no Brasil. Em um debate com sindicalistas negros da antiga Corrente Sindical Classista (hoje CTB- Central de Trabalhadoras e Trabalhadores do Brasil, ligada ao Partido Comunista do Brasil) no ano de 1995 em Belo Horizonte, ele foi taxativo ao defender que a Conjuração Baiana de 1798 foi muito mais avançada que a sua congênere mineira liderada por Tiradentes em 1792. E desafiou o público: “quem sabe os nomes dos quatro mártires da Conjuração Baiana de 1798?” Diante do silêncio do público, formado por negras e negros militantes do movimento negro e sindical do PCdoB, ele disse: “Lucas Dantas, Manuel Faustino, João de Deus e Luiz Gonzaga das Virgens, todos jovens negros que foram enforcados, esquartejados e antes de serem executados, recusaram a extrema-unção da Igreja por considerá-la cúmplice do escravismo e colonialismo.”³
Dialética radical do Brasil negro
A obra Dialética Radical do Brasil negro é o livro em que o pensamento de Moura está mais amadurecido e que aponta para elementos importantes para se pensar as dinâmicas do racismo no Brasil na perspectiva marxista. Nesta obra, Moura aponta que o escravismo no Brasil teve dois momentos – o escravismo pleno que vai até 1850, quando é promulgada a Lei Eusébio de Queiroz que proíbe o tráfico de escravos, e o que ele chama de escravismo tardio, que vai de 1850 até 1888 quando é promulgada a Lei Áurea. Este segundo período marca o que Moura chama de “modernização sem mudança”, um processo de transição do sistema escravista para o capitalismo dependente. Nesta transição, ocorre a modernização das estruturas necessárias para o capitalismo financiadas pelo capital inglês (o que marca o caráter dependente do capitalismo brasileiro na sua origem) e a manutenção das práticas de exploração brutal da mão de obra por parte das classes dominantes brasileiras oriundas dos senhores de escravizados.
Desta forma, alguns elementos das estruturas do sistema escravista permanecem e potencializam a exploração de classes no capitalismo brasileiro.
Primeiro, uma lógica de concentração patrimonial que é inaugurada no mesmo ano em que se proíbe o tráfico de escravos – a promulgação da Lei de Terras. Com esta lei de 1850, a posse da terra que até então era uma concessão do Estado, passa a ser regulada pelo mercado (os então concessionários das terras viram proprietários destas terras). Isso impediu o acesso à terra por parte dos escravizados que estavam sendo libertos a partir de 1850 e consolidou a estrutura de concentração fundiária que vigora no Brasil. Os aparatos institucionais do Estado são constituídos para a manutenção desta lógica de concentração patrimonial.
Segundo, uma lógica de restrição de cidadania. Até a Constituição atual, promulgada em 1988, os analfabetos não podiam votar. Durante muito tempo, as organizações sindicais eram criminalizadas. Até hoje há uma criminalização dos movimentos sociais. Os sistemas de segurança pública seguem lógica semelhante ao do período da escravismo, em que os aparatos policiais serviam para reprimir as rebeliões nas senzalas, as fugas do cativeiro, os quilombos. Por isto, o negro e a negra são inimigos a serem perseguidos – e não protegidos como cidadãos – pelos aparatos de segurança pública.
Terceiro, a violência como prática política sistemática do agir político. De acordo com o pensamento de Clóvis Moura, o capitalismo dependente brasileiro, fruto de uma transição sem rupturas e uma modernização sem mudança, mantém não só um padrão de concentração de riquezas mas um sistema de “barragens” materiais e simbólicas que interdita integração de negras e negros mantendo uma rígida hierarquia sociorracial. Por isto, a manutenção deste sistema ocorre dentro de um processo de “hegemonia precária” (isto é, os mecanismos de legitimação ideológica são insuficientes para encobrir as brutais desigualdades) e por isso necessita da violência como prática política sistemática em escala muito mais ampla que outras experiências de sociedade capitalista. Assim, não obstante o Brasil estar passando por mais de 37 anos de vigência de uma Constituição democrática e com garantias de alguns direitos, as periferias das cidades brasileiras viverem em situações típicas de regimes totalitários com invasões de domicílios sem mandados de busca, prisões ilegais, toques de recolher e até execuções por parte de forças de segurança. Em outras palavras, a democracia não chegou na periferia.
Em trecho de uma das suas últimas entrevistas gravada em 2002 (disponível em https://youtu.be/pUNN3v1YwW4?si=CEWcP9-AKY81tBzj), Moura é cuidadoso em relação as políticas de cotas raciais que naquele momento estava se transformando numa das principais bandeiras do movimento negro. Para ele, políticas de ação afirmativa que garantisse a presença maior de negras e negros nestes espaços hegemonizados historicamente por brancos são importantes mas insuficientes tendo em vista que as barragens que ele define como mecanismos institucionais de interdição de negros na sociedade capitalista são mais complexos. Na obra Dialética radical do Brasil negro, quando ele analisa os dilemas de negros e negras no que ele chama de “espaços letrados” (leia-se espaços acadêmicos, intelectuais, próximos ao poder) percebe comportamentos que variam entre o enquadramento (adesão acrítica ao sistema racista) ou desenquadramento (reação às barragens) que expressam sentimentos de ansiedade e agressividade como se fosse uma rememoração do que foram as relações tensas entre a Casa Grande e Senzala.
Diante disto, para Moura o que é importante é a conexão entre a conquista do espaço e a transcendência para a transformação das instituições que só é possível com um projeto político de superação do capitalismo dependente brasileiro. Fazer renascer a quilombagem, esta é a lição deixada pelo mestre Clóvis Moura.
Leituras recomendadas de Clóvis Moura
Obras publicadas pela Editora Dandara:
O negro de bom escravo a mau cidadão; As injustiças de clio; História do negro brasileiro; Brasil: as raízes do protesto negro e Os quilombos e a rebelião negra
Obras publicadas por outras editoras:
Dialética Radical do Brasil Negro e Rebeliões da Senzala (Editora Anita Garibaldi) e Sociologia do negro brasileiro (Editora Perspectiva)
Obras sobre o pensamento de Clóvis Moura
Clóvis Moura e o Brasil (Márcio Farias) – Editora Dandara; Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Fabio Nogueira) – Editora Uneb
¹ Professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes, autor da obra “Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica” (Editora Dandara, 2021); “Jornalismo e Emancipação: uma prática jornalistica baseada em Paulo Freire” (Editora Appris, 2017) e “Iniciação aos Estudos de Jornalismo” (Editora Abya Yala, 2022). Membro da COJIRA e da Rede Quilombação. E-mail: dennisol@usp.br
² Durante muito tempo, havia uma “proibição” em certos circuitos acadêmicos de citar a obra de Moura nos trabalhos nas universidades. A argumentação era que ele era apenas um “panfletário”, “militante” e não um intelectual. Graças a intelectuais negros nas universidades, esta situação tem se modificado. Destaca-se o trabalho importante feito pela Editora Dandara (que criou o selo “Clóvis Moura”) que vem reeditando as obras de Clóvis Moura, muitas desconhecidas da maioria do público. Organizações negras criadas mais recentemente vem se inspirando no pensamento moureano, como o Círculo Palmarino e a Rede Quilombação.
³ Eu participei desta mesa com o professor Clóvis Moura neste evento e foi notório o constrangimento geral dos dirigentes sindicais comunistas com esta provocação (nota do autor do texto)