CARTEIRA DE TRABALHO OU BARBÁRIE!

JULGAMENTO DE REPERCUSSÃO GERAL NO STF SOBRE A PEJOTIZAÇÃO PODERÁ AFIRMAR OS DIREITOS TRABALHISTAS OU FAZER DO BRASIL UM PAÍS DE MILHÕES DE “EMPREENDEDORES”: MISERÁVEIS, EXPLORADOS E SEM PERSPECTIVA DE FUTURO DIGNO

por Thiago Tanji

Uma história para fazer corar até o mais picareta dos coaches: como condição para serem contratados por uma empresa terceirizada que opera parte das atividades de coleta de lixo da cidade de Porto Alegre, trabalhadores da limpeza urbana do município foram obrigados a abrir um MEI, a figura jurídica do Microempreendedor Individual, voltada a donos de pequenos negócios.

Ou seja, enquanto realizam a tarefa essencial (e invisibilizada) de manter a cidade limpa, recolhendo o lixo das calçadas sob sol e chuva, essas pessoas não têm acesso a qualquer direito trabalhista ou proteção social. São “empreendedores”, na linguagem da moda daqueles que tratam a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho, o conjunto de regramentos que define as relações de trabalho no Brasil) como peça de museu e vendem a ilusão das soluções fáceis e individuais para “vencer na vida”.

Ocorre que, apesar dos sucessivos ataques aos direitos trabalhistas, notadamente a reforma de 2017, que desregulamentou e precarizou as condições de trabalho, o vale-tudo da exploração encontra seus limites. E, apesar das seguidas tentativas de destruição, o vínculo de emprego ainda existe e continua sendo responsável por ordenar a relação entre o trabalhador e a empresa empregadora.

Como define o artigo 3º da CLT, quando há pessoalidade (o serviço é prestado diretamente pelo trabalhador, sem possibilidade de substituição), onerosidade (remuneração em troca da força de trabalho), subordinação (o trabalhador está inserido numa cadeia de comando e deve seguir regras definidas pela empresa) e habitualidade (a atividade é exercida de maneira contínua e não eventual), a única forma de contratação possível é a partir da pessoa física, com registro em carteira.

E é a Justiça do Trabalho, conforme prevê a Constituição de 1988, a figura competente por julgar e verificar as relações de trabalho e emprego. Para reparar a aberração do caso dos trabalhadores de limpeza urbana de Porto Alegre, em 2024, a 2ª Turma do TRT-4 (Tribunal Regional do Trabalho responsável pelos processos trabalhistas do Rio Grande do Sul) confirmou a existência de vínculo de emprego entre um coletor de lixo e a empresa que recebeu o contrato da prefeitura para realizar a limpeza urbana. O processo revelou que o trabalhador havia se registrado como CNPJ um dia antes de assinar o contrato para iniciar suas atividades, uma evidência de que foi coagido a se formalizar como “empresário” para garantir seu próprio emprego.

Mas é aí que o enredo ganha traços de distopia, tão insólitos quanto a febre dos bebês reborn ou a CPI do Jogo do Tigrinho. A empresa terceirizada, junto da prefeitura, recorreu da decisão ao Tribunal Superior do Trabalho (TST). E, até o momento, não há qualquer perspectiva concreta de que esses garis venham a ser reconhecidos como trabalhadores, com direito a férias, 13º salário em carteira, FGTS, jornada de trabalho limitada, seguro-desemprego, contribuição previdenciária recolhida pela empresa ou representação sindical.

Em abril de 2025, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão de todos os processos que discutem o vínculo de trabalho entre empresas e pessoas físicas com CNPJ, incluindo os microempreendedores individuais. Em sua decisão, argumentou que “o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas”. Segundo a Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT), somente no ano de 2024 foram ingressadas na Justiça 460 mil ações sobre reconhecimento de vínculo trabalhista.

Por maioria, os ministros da Corte referendaram a liminar de Gilmar Mendes. Com isso, todas as ações trabalhistas que envolvem a discussão sobre pejotização ficaram paralisadas no país, à espera de uma definição do plenário. Agora, o mérito dessa questão será julgado a partir de um recurso com origem na Justiça do Trabalho do Paraná. Trata-se de um pedido de reconhecimento de vínculo empregatício feito por uma profissional da corretagem de seguros franqueada que prestava serviços a uma empresa do setor. A decisão desse caso, aparentemente técnico e específico, terá impacto estrutural sobre todas as trabalhadoras e trabalhadores do Brasil. Isso porque o STF irá fixar uma tese de repercussão geral, ou seja, de aplicação obrigatória em todas as instâncias do Judiciário. Para se ter uma ideia da importância do julgamento, o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) número 1532603 tem como amicus curiae (partes que fornecem subsídios ao julgador) entidades trabalhistas, como a CUT e outras centrais sindicais, associações de juristas e entidades patronais, como a Confederação Nacional do Comércio e até a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), que representa os patrões das empresas de radiodifusão.

Em um cenário futuro negativo ao extremo, o Supremo pode validar a contratação de pessoas físicas por meio de CNPJ, inclusive MEI, desde que haja um contrato assinado entre as partes. Em outras palavras, os elementos que caracterizam o vínculo empregatício deixariam de ser suficientes para garantir a proteção da CLT. Isso significaria que as leis trabalhistas continuariam em vigor, mas desfiguradas, sem poder prático. As empresas passariam a contratar massivamente via PJ, sem receio de serem responsabilizadas por fraude.

Sabe os trabalhadores da limpeza urbana do início desta reportagem? Como fruto da “livre negociação”, poderiam ser pagos abaixo do salário mínimo, em jornadas de trabalho de domingo a domingo, pelo tempo que a empresa contratante desejasse. E, evidentemente, sem a garantia de uma aposentadoria minimamente digna que representasse algum alento após décadas de trabalho de sol a sol. Afinal, não são trabalhadores com direitos, mas “empreendedores” e “pequenos empresários”.

“O julgamento é de suma importância para a classe trabalhadora brasileira”, avalia Fernando Lima, supervisor técnico do Escritório Regional do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) em São Paulo. “A depender da decisão, pode ser oficializada uma nova modalidade de trabalhadores com vínculos únicos sem os direitos previstos na CLT, além das conquistas previstas nas Convenções e Acordos Coletivos negociados pelas entidades sindicais.” Em suma, por questões econômicas, Lima considera que poderá ocorrer um estímulo deliberado por parte das empresas à substituição de trabalhadores com melhores condições contratuais por outros em condições precárias.

Não por acaso, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e as demais entidades que representam a classe trabalhadora entendem que aquilo que está em jogo no STF representa dois caminhos muito claros: a afirmação dos direitos do trabalhador(a) ou a completa barbárie, com exploração sem fim e ausência de perspectivas de um futuro digno.

Pauta de precarização

No caso da nossa categoria, a discussão sobre a contratação de jornalistas como pessoas jurídicas está longe de ser uma novidade. Segundo levantamento do Dieese, elaborado a pedido da FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas), o número de vínculos formais no jornalismo caiu de 60.899 em 2013 para 49.917 em 2023. São Paulo, principal estado empregador de jornalistas, perdeu 4,5 mil vagas celetistas no período — uma redução de 25,5%. Segundo a FENAJ, essa precarização atinge especialmente profissionais mais jovens, recém-formados e mulheres, que, em muitos casos, aceitam contratos precários por medo de ficar fora do mercado de trabalho, pressionado pela mudança estrutural do segmento de comunicação.

A NOSSA CATEGORIA SOFRE HÁ ANOS COM A PEJOTIZAÇÃO, QUE VEM SE ACENTUANDO EM DIFERENTES REGIÕES DO PAÍS E LOCAIS DE TRABALHO

Nossa profissão, aliás, é um excelente exemplo para diferenciar o trabalhador precarizado daquele que presta serviços pontuais a uma empresa. Alguns colegas preferem não estar vinculados a uma redação ou publicação jornalística específica, realizando trabalhos freelancer esporádicos, o que lhes garante autonomia para exercer o trabalho jornalístico em diferentes locais, sem precisar bater ponto, ter uma chefia ou estar exclusivamente ligado a uma marca. Ele presta serviço pontual a uma empresa e pode realizar o seu trabalho jornalístico para diversas companhias.

Situação muito distinta é a do profissional “contratado” como PJ, que tem chefia direta, e-mail corporativo, horários para entrar e sair, e segue todas as normas e regramentos internos. Em alguns casos, pode até combinar o recebimento de um 13º salário por meio de uma nota fiscal extra ou alguns dias de descanso como compensação por “férias”. Mas, na prática, essa relação é precarizada: por se tratar, formalmente, de uma “empresa”, o trabalhador não tem acesso aos direitos previstos em convenções coletivas ou na CLT. Do ponto de vista jurídico, nem mesmo a representação sindical é garantida.

Para o SJSP, jornalistas que atuam em redações, assessorias de imprensa ou qualquer outro local de trabalho são, independentemente da forma de contratação, trabalhadoras e trabalhadores. Apesar das dificuldades legais, nossa entidade segue organizando colegas PJs, inclusive em situações especialmente desafiadoras.

Um dos episódios mais emblemáticos ocorreu com jornalistas da Editora Três, até então uma das mais tradicionais empresas jornalísticas do país, cuja falência foi decretada pela Justiça em fevereiro deste ano. Há muitos anos, os patrões vinham substituindo contratos formais por contratações pejotizadas, restando na redação pouquíssimos profissionais com carteira assinada. Ainda assim, o Sindicato manteve a mobilização, com assembleias, organização de greves e a exigência do pagamento dos atrasos sistemáticos, além de batalhar pelo reconhecimento dos vínculos trabalhistas. Situações semelhantes ocorreram na Editora Poder (responsável pelo site Glamurama) e na RAC, que publica o Correio Popular, em Campinas.

Ainda que a maior parte das grandes empresas jornalísticas continue contratando pela CLT, o limbo jurídico provocado pela recente decisão da Suprema Corte, e seus possíveis desdobramentos, despertam preocupações sobre as condições futuras dos contratos de trabalho no nosso setor. “Caso o STF entenda pela validade da pejotização irrestrita, sem levar em conta a realidade fática vivenciada pelo profissional na relação de trabalho, certamente causará uma reação em cadeia que transformará as redações, hoje na sua maioria celetizadas, em espaços onde se reunirão centenas de trabalhadores precarizados sob o manto de uma pessoa jurídica”, afirma o dr. Raphael Maia, coordenador jurídico do SJSP.

Jornalistas que ingressaram com ações na Justiça do Trabalho para que tivessem reconhecido o vínculo empregatício em contratações PJ também acompanham com preocupação os desdobramentos da decisão do STF. Em recentes decisões, parte da Suprema Corte tem revertido as decisões da Justiça do Trabalho e, com a suspensão de todos os julgamentos relativos ao tema, há evidente insegurança sobre o futuro dessas ações, em prejuízo aos jornalistas que lutam para terem seus direitos garantidos.

Uma tarefa fundamental

Por meio de seu Departamento Jurídico, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (SJSP) ingressou na luta pela garantia dos direitos trabalhistas, atuando publicamente contra a prática da pejotização. Em março de 2025, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) passou a receber manifestações de entidades sobre a pejotização, a partir de um caso envolvendo um trabalhador do Espírito Santo que, após ser contratado como empregado, foi obrigado a abrir uma empresa para continuar exercendo as mesmas funções como pessoa jurídica. O trabalhador busca o reconhecimento do vínculo de emprego.

O SJSP e a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) ingressaram no processo como amicus curiae, figura jurídica que permite a entidades não diretamente envolvidas no processo oferecerem informações relevantes ao tribunal. Com isso, alertam os magistrados do TST para a crescente precarização da categoria, evidenciada pela substituição de vínculos formais de emprego por relações disfarçadas de prestação de serviços.

Após a decisão do STF que suspendeu todos os processos trabalhistas sobre o tema, a FENAJ produziu um documento dirigido à CUT (Central Única dos Trabalhadores) e às demais centrais sindicais, convocando as entidades da classe trabalhadora à ação e posicionando-se firmemente, junto ao Supremo, em defesa da formalização do trabalho. “Depois da Reforma Trabalhista, da Lei da Terceirização e da Reforma da Previdência, surge uma nova ameaça de retrocesso sem precedentes nos direitos duramente conquistados pela classe trabalhadora brasileira. É preciso dar um basta!”, afirma a carta da Federação.

A FENAJ reconhece que há situações legais em que profissionais prestam serviços como pessoas jurídicas, especialmente após a Lei da Terceirização de 2017, que passou a permitir a contratação de terceiros inclusive para atividades-fim. Antes, a terceirização era restrita a atividades- -meio, como serviços de limpeza, segurança, portaria… Agora, é legal que uma empresa contrate outra para executar sua atividade principal. Ainda que contrária à lógica dessa lei, a FENAJ destaca que trabalhadores terceirizados mantêm o direito ao vínculo empregatício com a empresa contratada. Portanto, é inaceitável que seja legalmente afirmada a pejotização, mascarando uma relação de emprego para reduzir custos, à custa dos direitos trabalhistas e da arrecadação pública.

“A nossa categoria sofre há anos com a pejotização, que vem se acentuando em diferentes regiões do país e locais de trabalho. Observamos uma realidade de salários baixos e exploração crescente do trabalho jornalístico, o que leva ao adoecimento físico e mental de milhares de profissionais. Sabemos bem o que representa a sonegação de direitos trabalhistas e, por isso, precisamos lutar para que jornalistas e toda a classe trabalhadora tenham direitos e dignidade em nosso país”, afirma Samira de Castro, presidenta da FENAJ.

A desregulamentação jurídica do vínculo também tem impactos diretos sobre o Estado brasileiro. Em pronunciamento no fim de maio, o senador Paulo Paim (PT-RS) apresentou dados que indicam as consequências da pejotização para além das relações de trabalho: segundo levantamento da FGV (Fundação Getúlio Vargas), estima-se uma perda de arrecadação de R$ 89 bilhões nos cofres públicos desde a Reforma Trabalhista, em razão da ampliação de empresas que se valem da terceirização para fraudar vínculos por meio de contratos PJ.

“Essa prática corrosiva fragiliza o pacto social brasileiro e exige uma resposta firme. Em manifestação protocolada no Tribunal Superior do Trabalho, a Federação Nacional dos Jornalistas argumenta que a pejotização tem sido usada de forma indiscriminada para mascarar vínculos formais de emprego, resultando na supressão dos direitos dos trabalhadores, inclusive da sua previdência”, afirmou Paim durante discurso no plenário do Senado Federal.

De acordo com a PNAD Contínua, pesquisa trimestral do IBGE que monitora o mercado de trabalho brasileiro, o país contava com cerca de 39,5 milhões de trabalhadores com carteira assinada no setor privado em 2014. Em 2023, esse número caiu para 37,7 milhões, mesmo com o aumento da população economicamente ativa. No mesmo período, o número de Microempreendedores Individuais (MEIs) disparou: de pouco mais de 4 milhões para mais de 15 milhões. Considerando todas as formas de contratação via pessoa jurídica, a pejotização cresceu de 8,5% em 2015 para 14,1% em 2023, afetando diretamente cerca de 20 milhões de trabalhadoras e trabalhadores.

Cada cabeça uma sentença?

Em fevereiro, Thiago Tanji, presidente do SJSP, e Moacy Neves, presidente do Sinjorba (Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado da Bahia), estiveram em Brasília para realizar uma audiência com o ministro Flávio Dino, do STF. A pauta central da reunião foi justamente defender diante da Justiça que a contratação de jornalistas como empresas individuais não pode ser usada para ocultar vínculos empregatícios.

Desde que foi empossado como ministro do STF, em 2024, Dino tem manifestado por meio de suas decisões a preocupação em relação às fraudes trabalhistas mascaradas pela contratação como Pessoa Jurídica. “O pejotizado vai envelhecer e ele não terá aposentadoria. Esse pejotizado vai sofrer um acidente de trabalho e não terá benefício previdenciário. Se for uma mulher, ela vai engravidar e não terá licença gestante”, afirmou o ministro em decisão proferida na 1ª turma do STF, em outubro de 2024.

Antes da suspensão dos processos, o ministro Edson Fachin também era uma voz no STF que alertava para a necessidade de diferenciar a legalidade da terceirização com a permissão da fraude trabalhista por meio da pejotização, sendo a Justiça do Trabalho o espaço adequado para retificar eventuais contratos entre um trabalhador e a empresa (ou seja, com o pagamento dos direitos que um funcionário CLT teria direito).

As posições de ambos os ministros, no entanto, ainda estão longe de formar uma maioria na Suprema Corte. Além do próprio Gilmar Mendes, André Mendonça, Luiz Fux e Nunes Marques têm votado de maneira consistente com o entendimento que há “licitude” em outras formas de relação de trabalho que não a da CLT. O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, afirmou em decisão proferida em dezembro de 2024 que há inúmeras funções que devem ser protegidas pela lei trabalhista. Mas, ao julgar o caso de um vínculo de um profissional de Medicina que reivindicava o vínculo profissional, Moraes afirmou que “o médico é um profissional liberal por natureza e se ele optou pela Pessoa Jurídica para ter suas vantagens ele não pode depois alegar a própria torpeza”.

Em encontro realizado no final de maio, Luiz Marinho, ministro do Trabalho e Emprego, recebeu representantes de entidades ligadas ao Direito do Trabalho para discutir o que está em jogo com a futura decisão do STF. “É uma burla à legislação, uma fraude trabalhista. Se validar isso, acaba a Previdência Social. É uma repercussão dramática, porque ela influencia no papel da Previdência, ou seja, a diminuição drástica do número de contribuintes da Previdência”, afirmou o ministro.

Diante desse quadro, a avaliação de especialistas em Direito do Trabalho é de que é necessário demonstrar aos ministros o impacto desastroso que a decisão do STF teria ao “legalizar”, na prática, a contratação por meio de contratos PJ. “Na medida em que você desconstitui o contrato de trabalho, você tira todas as regras que incidem sobre ele. Nada impede que o empregador exija uma jornada maior, por exemplo. Se isso fica totalmente indiscriminado, o grau de deterioração da vida das pessoas passa a ser muito grande”, afirma o advogado Rubens Gama Jr, especializado em direito trabalhista, que atua em casos envolvendo jornalistas. (Leia a entrevista com o advogado abaixo).

Se não houver pressão social e política, o que for decidido pelo STF poderá amplificar de maneira sem precedentes o absurdo relatado pela história dos garis “empreendedores” de Porto Alegre: em todos os segmentos, inclusive no jornalístico, teremos milhões de pessoas exploradas ao limite, submetidas à lógica de quem só enxerga planilhas para explorar até a última gota o trabalho humano. E, como trabalhadoras e trabalhadores que somos, nós, jornalistas, precisamos dizer em alto e bom som que direitos conquistados a duras penas são inegociáveis.


ENTREVISTA: RUBENS GAMA JR.

Consequências podem ser incalculáveis, afirma advogado

por Márcio Garoni

Uma eventual decisão do STF que flexibilize ainda mais a pejotização poderá ter impactos muito maiores do que se imagina. Essa é a opinião do advogado Rubens Gama Jr., que concedeu entrevista ao Unidade sobre o assunto. Especialista em direito do trabalho, ele atua em diversos casos de jornalistas contratados por empresas como Pessoa Jurídica (PJ), e alerta para os perigos de uma tese de repercussão geral que seja ainda mais prejudicial aos trabalhadores.

Unidade: Qual o efeito prático de uma decisão do STF contrária ao reconhecimento de vínculo?
Rubens Gama Jr. Toda a discussão vinculada à jornada de trabalho, à vida social do trabalhador, à saúde do trabalhador, passa a ficar desprotegida. As normas da CLT não são apenas fiscais — são de higiene do trabalho, de saúde do trabalhador. Nada impede que o empregador exija jornada maior, porque a CLT não se aplicaria. Isso tem consequências para a economia e para a saúde dos trabalhadores. Excesso de jornada causa doenças e traz impactos familiares. Um pai ou mãe pode não conseguir buscar o filho na creche ou na escola. As consequências são incalculáveis.

Unidade A lei da terceirização, de 2017, aumentou as fraudes?
RG O que houve foi que o Supremo afastou a regra de que só era possível terceirizar atividades-meio [2018]. Antes, uma empresa de comunicação não podia contratar jornalistas terceirizados; um hospital não podia terceirizar médicos ou enfermeiros. Só se terceirizava limpeza, portaria, contabilidade, segurança. Com o afastamento dessa regra, a terceirização ficou mais indiscriminada, sem critérios e mais aleatória.

Unidade Como o senhor vê o STF decidindo sobre questões da Justiça do Trabalho?
RG É preocupante. A competência material da Justiça do Trabalho é examinar fatos típicos de relação de emprego. É uma justiça especializada, como a eleitoral. Os magistrados são preparados e têm a cultura jurídica específica de observar relações do contrato de trabalho que não são equânimes. O Supremo Tribunal Federal, com todo o respeito, não tem isso. A competência ordinária do Supremo é pensar questões constitucionais, que dizem respeito à extensão da aplicação da norma constitucional, não examinar minúcias de uma fraude trabalhista. Do ponto de vista da estrutura do sistema judiciário, o Supremo não tem histórico nem cultura jurídica para examinar essas relações. E corre o risco de tomar uma decisão que tem uma repercussão econômica e social muito grande.