SEMELHANÇAS E CONTRASTES NA IMPRENSA NEGRA FEMININA DE SÃO PAULO

por Flavio Carrança

D urante a cerimônia de entrega do Prêmio +Admirados Jornalis- tas Negros e Negras da Imprensa Brasileira, realizada em 13 de no- vembro de 2023, em São Paulo, despertou atenção a presença no pódio, entre os TOP 10, de duas jornalistas, líderes de veículos da imprensa negra: Semayat Oliveira, diretora de conteúdo do site Nós, Mulheres da Periferia, e Silvia Nascimento, CEO do site Mundo Negro. Entrevistas realizadas com ambas revelaram visões de mundo e concepções editoriais bastante diferenciadas, mas que mostram as múltiplas e diversas possibilidades de atuação nesse campo do jornalismo.

Mundo Negro

Silvia Nascimento tem 45 anos, é mãe de três filhos e formou-se em jornalismo pela PUC de Campinas, em 1998, com um TCC sobre a revista Raça Brasil, para ela um dos grandes lançamentos editoriais da história do jornalismo e da imprensa negra no Brasil. A internet fazia sua entrada nos meios de comunicação, alterando profundamente as maneiras como as pessoas se comunicavam em todo o planeta. Silvia aprofundou seu conhecimento sobre a nova ferramenta e a imprensa negra graças a uma viagem de intercâmbio para os Estados Unidos, onde conheceu de perto a mídia negra do país.

Estimulada por esse conhecimento, logo começaria a pensar em construir seu próprio veículo eletrônico, com custo bem mais baixo, uma vez que dispensaria a impressão em gráfica, e não precisaria contratar pessoas, já que é jornalista. A sorte também ajudou: “Felizmente, meu irmão (Valdomiro Martins) estava estudando computação, então já tinha o webmaster. Foi essa conjunção do nascimento da internet, o estudo sobre questões raciais com foco em jornalismo e imprensa negra, com o momento. A internet no Brasil chegou entre 98 e 99 e eu me formei em 98. Foi realmente pegar a oportunidade, com conhecimento, com o irmão que tinha esse conhecimento técnico, e fazer o que ninguém tinha feito até então.“

Durante 13 ou 14 anos, Silvia tocou sozinha o projeto, fazendo todo o conteúdo, pesquisando, entrevistando pessoas, descobrindo eventos, com uma linha editorial, segundo ela, muito mais voltada à questão comunitária, mais política. No entanto, uma mensagem enviada por uma leitora desencadearia significativa alteração nesse âmbito. “Ela falou assim: olha, eu adoro o conteúdo do Mundo Negro, mas vocês só têm sobre coisas ruins que acontecem com nossa comunidade. E aquilo meio que bateu forte: eu falei: nossa, ela não tá errada, porque a gen- te tem uma contribuição para além das questões de combate ao racismo”.

© ARQUIVO PESSOAL. Silvia Nascimento tem 45 anos, é mãe de três filhos e é responsável pelo site Mundo Negro
© ARQUIVO PESSOAL. Silvia Nascimento tem 45 anos, é mãe de três filhos e é responsável pelo site Mundo Negro

ACHO QUE COMO PESSOAS NEGRAS A GENTE PODE FALAR DE TUDO QUE QUISER, DESDE QUE ENTENDA QUE NOSSA EXPERIÊNCIA NO MUNDO TEM UM RECORTE DIFERENTE

A partir daí, Silvia começou a incluir outros assuntos na linha editorial: notícias sobre carreiras, negócios, entretenimento, beleza, comportamento. A ideia, segundo ela, é tentar tratar as pautas gerais a partir de uma perspectiva negra, “pra trazer um pouco mais de humanidade em nossa existência, por que se a gente falar só sobre racismo e preconceito, estaremos meio que limitando as nossas possibilidades editoriais. Acho que como pessoas negras a gente pode falar de tudo que quiser, desde que entenda que nossa experiência no mundo tem um recorte diferente.” Silvia conta que nos últimos anos começou a contratar jornalistas, na maioria mulheres, como prestadoras de serviços. A equipe tem quatro profissionais fixas e uns dez colunistas e dá preferência para negras e indígenas. A empresa não contrata pessoas brancas.

Nós, Mulheres da Periferia

Não por acaso, no dia 7 de março de 2012, véspera do Dia das Mulheres, foi publicado na página Tendências e Debates da Folha de S. Paulo um artigo intitulado Nós, Mulheres da Periferia. Assinavam o texto cinco jovens brancas e negras, jornalistas ou estudantes de jornalismo: Bianca Pedrina, 27, moradora de Taipas; Jéssica Moreira, 20, de Perus; Mayara Penina, 21, de Paraisópolis; Semayat Oliveira, 23, de Cidade Ademar; e Patrícia Silva, 23, do bairro de Campo Limpo. Todas eram correspondentes do blog Mural, que depois se tornaria a Agência Mural das Periferias e que ainda mantém uma rede de correspondentes com o mesmo perfil.

Elaborada a cinco mãos, a matéria surgiu a partir de uma provocação da editora do blog, Izabela Moi (Moá), que perguntou se elas gostariam de fazer um texto sobre o que significava ser mulher na periferia. A grande e inesperada re- percussão fez Izabela lançar às autoras uma nova provocação: “A gente viu na época pelo Facebook – diz Semayat – a repercussão que teve: as mulheres compartilhando o texto e assinando como se fosse delas; o pessoal usando em sarau. E aí ela (Izabela) até provocou a gente: ó, tem uma coisa aí, tem um gargalo da comunicação que eu acho que vocês po- dem ocupar. E a gente nasce um tempo depois, em 2014, enquanto site, com essa perspectiva: fazer um jornalismo das mulheres negras e periféricas”.

Semayat lembra que, nessa época, a pauta do feminismo estava voltando muito à tona; era o mesmo momento em que estava bombando o site Blo- gueiras Negras, uma das influências das integrantes do coletivo, que tinham também, como referência maior desde a década de 90, Geledés – Instituto da Mulher Negra. Naquele período, entre 2013 e 2014, estava rolando uma articulação muito forte de mulheres, e outros veículos nasceram, como Think Olga e AzMina. Segundo ela, ganharam força na época as denúncias de assédio, de estupro e acrescenta que o Nós, Mulheres da Periferia “nasce enquanto veículo muito cravado nas pautas que hoje são consideradas de gênero: a violência doméstica, a luta pela descriminalização do aborto, contra a violência sexual, e todos esses aspectos que sempre foram pautas prioritárias para nós”, mas observa que o site sempre fez o exercício de trazer o recorte de raça e classe, temática, segundo ela, nem sempre explorada em outros espaços de mídia.

O Nós, Mulheres da Periferia se define como uma empresa e tem atualmente três repórteres. O site passou por muitas re- formulações editoriais nos últimos anos, mas nunca abandonou o compromisso de sempre entrevistar mulheres: “A gente tem essa ordem: mulheres negras, mulheres da periferia, ou mulheres, sempre nessa ordem; então pra toda pauta a gente vai atrás de fontes (que sejam) mulheres negras; caso não encontre, o que é muito raro, podemos entrevistar mulheres não brancas, mas da periferia, ou mulheres.”