por João Marques
Há narradores não confiáveis na literatura, e o mais famoso deles é Dom Quixote, que contou enfrentar inimigos gigantes, enquanto, “na verdade”, brigava com moinhos de vento. Salman Rushdie, em seu novo li- vro Quichotte (Companhia da Letras, 480 págs.), lançado no Brasil em 2021, resolveu criar os seus também. Sam DuChamp, pseudônimo de Irmão, escritor de romances policiais, e Quichotte, o protagonista dessa história, não são, nem um pouco, dignos de confiança. O autor de Versos Satânicos, que vive há mais de 20 anos em Nova York, depois de ser perseguido e ameaçado de morte pelo aiatolá Khomeini, já pensava em escrever um romance de estrada, uma viagem pelos Estados Unidos, tendo como pano de fundo, o governo Trump. Nesse período, recebeu a encomenda de um artigo sobre os 400 anos da morte de Cervantes, releu Dom Quixote, adaptou o seu projeto e escreveu esse livro, finalista do Man Booker Prize e um dos mais vendidos da lista do New York Times.
Quichotte traz muitas referências da literatura, da música, do cinema, dos programas e séries populares de TV; reflete sobre o universo da cultura pop estadunidense; fala de racismo, da crise dos opioides, de armas, da obsessão pela fama e dos anos Donald Trump, sem citar seu nome. “Gosto do fato de que Biden não diz o nome dele, também não gosto de dizer, dizemos ‘o cara de antes’.” Em entrevista a Sylvia Colombo, da Folha de S. Paulo, o autor, que leciona jornalismo literário na Universidade de Nova York, disse que estuda com seus alunos a forma de se chegar a uma verdade que não seja subjetiva, “que não deixe espaço para que se aceite que a Terra possa ser plana, que a eleição americana tenha sido fraudada e que não se deve tomar a vacina.” Para ele, “o jornalismo tem de reconquistar a confiança das pessoas”.
Quichotte morou em diversos endereços nos Estados Unidos, foi caixeiro- -viajante, vendia opioides e, enquanto o personagem original de Cervantes, lia novelas de cavalaria, esse era fissurado em programas de TV, principalmente os talk shows. Apaixona-se por uma apresentadora, ex-atriz de Bollywood — todos os personagens são de origem indiana —, a senhorita Salma R, sua Dulcineia. Envia cartas a ela e começa a persegui-la; ganha um filho imaginário, o Sancho, que se transforma em personagem real. Já Irmão morava em Nova York. Autor de oito livros fracassados, resolve mudar o rumo de sua carreira e contar a história de Quichotte. Diferentemente deste, Ir- mão tinha um filho de verdade, mas que corria o risco de se tornar irreal. Aparentemente são duas histórias diferentes que, gradualmente, se juntam numa única narrativa, dando a impressão de que são a mesma e que sempre foi assim. No final, escritor e personagem se encontram na busca pelo que é verdadeiro, num mundo difícil de ser separado da ficção.
“Aquela mentira havia sido sua verdade. Talvez fosse parte da condição humana, viver dentro de ficções criadas por in- verdades ou pela supressão de verdades. Talvez a vida humana fosse de fato fictícia no sentido de que ninguém que a vivia compreendia que ela não era real.”