21 anos de luta por justiça

Por 10 votos a 1, STF considera que o estado é responsável por grave lesão sofrida por Alex Silveira enquanto trabalhava em cobertura de manifestação, em maio de 2000. Decisão pode restabelecer justiça após o judiciário paulista culpar, em 2014, o próprio fotojornalista pela agressão sofrida. Acórdão final ainda não foi redigido

por Eduardo Viné Boldt

Supremo Tribunal Federal (STF) deu um importante passo para a correção de um erro histórico em ação que já dura mais de duas décadas. No início do mês de junho, o colegiado concluiu a votação sobre o recurso apresentado pelo repórter fotográfico Alex Silveira. Para a maioria dos ministros, o Estado de São Paulo é culpado por lesão sofrida pelo jornalista durante o exercício de suas atividades profissionais em cobertura de manifestação na Avenida Paulista, violentamente reprimida pela Polícia Militar de São Paulo.

Caio Guattelli fotografou a violência policial contra Alex Silveira e contra os manifestantes naquela tarde de maio de 2000. As agressões contra profissionais de imprensa seguiram como prática rotineira pelos agentes de segurança paulistas

O fotojornalista Alessandro Wagner Oliveira da Silveira trabalhava para o jornal Agora em maio de 2000 quando foi ferido por um tiro de bala de borracha. Alex registrava a manifestação de professores em greve próximo ao Masp quando a PM, com seu Batalhão de Choque, reprimiu os manifestantes com bombas e utilização de “armas não letais”. O fotógrafo teve ferimento em seu olho esquerdo enquanto registrava o ato, o que provocou lesão grave e permanente.

O périplo de Alex estava apenas começando. Em pouco tempo, ele foi obrigado a abandonar a profissão por causa de sua nova condição. “Larguei do fotojornalismo de rua uns dois anos depois que eu sofri (a lesão)”, relembra. Mesmo após diversas cirurgias, o jornalista teve perda significativa da visão, que o fez deixar a atividade prematuramente.

O fotógrafo entrou com ação contra o estado buscando reparação, e teve seu pedido julgado em primeira instância em 2008. O tribunal deu ganho de causa ao fotojornalista, com responsabilização do estado pela violência empregada por seus agentes de segurança contra o profissional. O juiz fixou ainda indenização de 100 salários mínimos pelos danos causados a Alex.

Em 2014, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reformou a sentença em decisão, no mínimo, polêmica. Os desembargadores Vicente de Abreu Amadei, Sérgio Godoy Rodrigues de Aguiar e o juiz substituto em 2º grau Maurício Fiorito analisaram as apelações e responsabilizaram o fotógrafo pelo próprio infortúnio. Com essa decisão, o estado de São Paulo se livrava da responsabilidade sobre o ocorrido, e jogava a culpa diretamente nos ombros de Alex, vítima da truculência policial.

A insólita decisão do TJ paulista culpava o fotojornalista pelos ferimentos que o levaram a viver com apenas 15% de sua visão, além de chancelar a violência praticada pelos policiais. Do ponto de vista dos desembargadores, Alex era o único responsável por sua sorte. O relator da decisão deixou clara sua perspectiva na decisão. “Permanecendo, então, no local do tumulto, dele não se retirando ao tempo em que o conflito tomou proporções agressivas e de risco à integridade física, mantendo-se, então, no meio dele, nada obstante seu único escopo de reportagem fotográfica, o autor colocou-se em quadro no qual se pode afirmar ser dele a culpa exclusiva do lamentável episódio do qual foi vítima”, sentenciou, condenando o fotógrafo a arcar ainda com as custas do processo, no valor de R$ 1,2 mil. Alex Silveira, ao exercer a sua atividade como jornalista, teria assumido o risco, e pagado o preço por isso.

Dez a um
Alex foi amparado pelo departamento jurídico do veículo no qual trabalhava, o que lhe garantiu fôlego para recorrer à corte superior. A possibilidade de retificação da sentença do TJSP, mais uma vez, gerou importante expectativa sobre o julgamento. Diversas entidades representativas acompanharam o caso e buscaram pressionar os magistrados pela mudança da decisão do tribunal paulista. Uma carta aberta pedindo a reparação da sentença foi endereçada aos ministros do STF, com mais de 40 assinaturas de apoiadores. Campanhas e lives foram realizadas buscando divulgar o julgamento e construir uma frente para dar visibilidade ao caso.

O relator da matéria, ministro Marco Aurélio Mello, já havia apresentado voto favorável ao recurso do fotógrafo em agosto de 2020. Nas palavras do ministro, a decisão do tribunal paulista “viola o direito ao exercício profissional, o direito-dever de informar” . Após proferir o voto, o julgamento foi novamente paralisado pelo pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes. A decisão sobre o tema teve que aguardar mais alguns meses.

No último dia 9 de junho a matéria voltou a ser apreciada pelo colegiado. A Associação de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos no Estado de São Paulo (Arfoc-SP) realizou transmissão em que acompanhava a votação dos magistrados ao vivo pelas redes sociais. Alex participou da live com a presença do presidente da Arfoc-SP, Toni Pires, e da fotógrafa Mônica Zarattini, além de representantes de entidades e apoiadores individuais. A expectativa por um desfecho favorável crescia. “No início eu esperava uma vitória apertada, até pelo histórico do STF nos últimos julgamentos. Mas é uma luta que não acabou”, destacou o presidente da Arfoc-SP.

“Vocês já estiveram em manifestação? Já viram alguém caído no chão pela polícia? Derrubado no chão, desmaiado, por qualquer motivo? Você já percebeu o efeito moral que tudo isso dá?”

Nove ministros acompanharam o voto do relator. Apenas o ministro Kassio Nunes Marques divergiu. O placar da votação foi 10 votos a 1, a favor do recurso do fotógrafo. Um avanço na restauração da justiça para Alex e para os jornalistas como um todo. Mesmo com o placar favorável, a vitória é vista com desconfiança. O acórdão, texto final do processo, ainda não foi redigido.

Tiro na cara
“É um fato. Eu ganhei. A categoria ganhou com isso? Pode ser que sim. Ainda não sabemos”, pondera Alex Silveira.
As implicações da decisão do TJ de São Paulo, proferida em 2014, extrapolavam a gravíssima lesão sofrida pelo profissional. Ao não responsabilizar o estado e impedir a indenização ao profissional, o tribunal apontava para um perigoso precedente contra o exercício do jornalismo, normalizava a violência da polícia, restringia a ação dos jornalistas, fragilizava a liberdade de imprensa.

A decisão do STF poderá abrir caminho para jurisprudência em outros processos e casos de violência do estado contra profissionais da imprensa. Agressões, como a sofrida pelo fotógrafo Sérgio Silva durante as manifestações de 2013, podem ser julgadas a partir da decisão proferida. “O Estado é responsável pelos danos que seus agentes causam nos jornalistas. É uma sentença que resgata a importância social do jornalismo, a função social do papel do jornalismo frente a violência”, afirma Paulo Zocchi, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.

Apesar da aparente vitória, ainda há prudência sobre o resultado. “Foi feito o teatro, foi feita a mise-en-scène toda, mas agora está na mão do Alexandre de Moraes, que tem de três a seis meses para chancelar qual é a multa, como deve ser paga. Isso também é importante”,aponta o presidente da Arfoc-SP, Toni Pires.

“Eu não sei se o STF vai resolver lá. Não sei se eles vão mandar voltar para a instância anterior em São Paulo, para que se resolva aqui. Eu não sei”, conclui Alex. O fotógrafo faz referência à decisão de 2014, proferida pelo TJ de São Paulo. “Como é que eu posso entender que vai ser justa uma indenização de quem ficou falando que eu era responsável por levar um tiro na cara?”

Toni ressalta que o valor da indenização deve ser proporcional ao dano causado ao fotógrafo, e adequado ao ponto de inibir a violência realizada pelo estado. “Você fala em 100 salários mínimos pagos em precatórios. Isso é nada. Então o estado vai continuar a reprimir da forma que quiser, porque levou 21 anos para (ser condenado) e vai pagar em precatórios. Em termos de indenização ao profissional, ele não recebe nada”, questiona.

Foto : CAIO GUATELLI

Repressão
“Vocês já estiveram em manifestação? Já viram alguém caído no chão pela polícia? Derrubado no chão, desmaiado, por qualquer motivo? Você já percebeu o efeito moral que tudo isso dá? Na minha opinião, isso é tática”, relata o fotógrafo à reportagem.

A repressão contra os profissionais da imprensa é um modus operandi do Estado brasileiro, que se repete ao longo do tempo. A atitude é mais um “entulho” do período da ditadura brasileira. O presidente do Sindicato dos Jornalistas, Paulo Zocchi, pondera sobre a ação das forças de repressão do Estado. “A Polícia Militar foi criada no regime militar e é uma herança da ditadura. A polícia trata as manifestações de uma maneira hostil. Os jornalistas acabam sendo atingidos como um subproduto. Ela agride os jornalistas para impedir o trabalho jornalístico, para bloquear o registro da violência contra os manifestantes,” aponta.

Toni Pires ressalta o efeito psicológico que a agressão ao jornalista causa. “No instante em que você aborda um profissional de imprensa e cria um momento de tensão, espalha essa tensão para todos os outros companheiros de trabalho. Você desvia o foco também. É todo um trabalho de tensão, de impedimento. Começa com essa criação de tensão, de intimidação, e o ataque direto é mais do que querer impedir. É um ódio. É um ranço de ser contra. De enxergar a imprensa como um inimigo”, conclui.

“Não acabou, tem que acabar…”
Desde 2013, policiais militares e guardas municipais passaram a figurar anualmente como os principais agressores nos relatórios de violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil organizados pela Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) – situação modificada após a eleição do presidente Bolsonaro, que assumiu a frente como maior agressor. Em 2013 mesmo, foram 117 casos de agressões por agentes das forças policiais. Em 2017, 99 casos. No ano passado, mesmo com uma redução expressiva de manifestações em decorrência da pandemia, eles ainda assim agrediram 14 jornalistas.

Em casos como esse, o Sindicato orienta que o jornalista comunique o quanto antes a agressão ao seu veículo e à própria entidade sindical. Que busque reunir registros da agressão e do agressor e registre Boletim de Ocorrência (B.O.) numa delegacia da Polícia Civil próxima ao local da agressão, sempre acompanhado de advogado (o departamento jurídico do SJSP pode acompanhar), e preferencialmente no mesmo dia, se houver ferimento ou hematoma. Se houver qualquer impedimento por parte da polícia para o registro da ocorrência, a orientação é procurar o Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial (Gecep), órgão ligado à Promotoria de Justiça.

O B.O. é fundamental para responsabilizar os autores e documentar a agressão contra o trabalho da imprensa. É o debate sobre essa violência sistemática por parte da PM (contra direitos fundamentais de manifestação e de acesso à informação), que o julgamento de Alex no STF recoloca na ordem do dia. Mas, para o Sindicato dos Jornalistas de SP, a despeito de qualquer discussão que pode – e deve – ser feita sobre reparação às vítimas, sobre a criação de regulações firmes que impeçam o uso da força nessa condição, o centro da questão é lutar pela desmilitarização da Polícia. É atacar uma das raízes desses e de outros crimes cometidos pelo Estado brasileiro contra o povo.