Quando a Justiça é instrumento para calar o jornalista

por Priscilla Chandretti

O cerco imposto está me expulsando do exercício do jor­nalismo”, afirmou o jornalista Luis Nassif em texto de dezembro de 2020 no qual expôs a si­tuação a que ele e o site GGN, o qual chefia, enfrentam em decorrência de ações judiciais. Eram, à época, cinco processos que promoviam, simultaneamente, multas e bloqueios de contas do próprio Nassif, apreendendo rendimentos como aposentadoria, de sua esposa e da organiza­ção jornalística. As medidas atingem as fontes de receita para o funcionamento dos veículos e pagamento de salários. Desde então, outras ações avançaram no mesmo sentido, segundo ele informou ao Unidade.

Nassif avalia que há um caráter óbvio de perseguição, em virtu­de de sua atuação jornalística crítica a ações de tribunais, como no caso da prisão de Carmen Silva, coordenadora do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC). “Em uma ação, o desembarga­ dor julgou que, se eu não quisesse dizer o que eu não disse, eu teria de ter sido mais claro. Outra, um simples caso de termos usado a foto de um homônimo em uma montagem, que você retira, corrige e solta um pedido de desculpa pelo engano, gerou um bloqueio de R$ 30 mil. Há ainda a questão do tempo. Uma ação que corre há dez anos e outra há poucos meses chegaram ao mesmo ponto juntas”.

O JUDICIÁRIO SEMPRE FOI USADO PARA O CERCEAMENTO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO. COM A FALTA DE UMA LEI DE IMPRENSA, AÇÕES CIVIS E PENAIS SÃO UMA FORMA DE INTIMIDAR JORNALISTAS

A primeira ação a que Nassif se refere foi movida pelo Movi­mento Brasil Livre (MBL), e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski suspendeu a indenização. Segundo as informações do profissional, há ainda ação de auto­ria do desembargador Luiz Zveiter, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na qual o jornalista e o veículo são condenados a pagar, imediatamente, R$ 100 mil. Do mesmo TJRJ em que atua Zveiter, decisão em outro processo impôs confisco e blo­queio no valor de R$ 50 mil na conta corrente de Nassif e em todas as fontes de receita do Jornal GGN, sem nenhum limite definido, em uma condenação por difamação contra o ex-de­putado Eduardo Cunha. Por fim, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), processou o GGN, pedindo indenização de R$ 50 mil, em razão de um artigo publicado no site. O juiz au­mentou, de ofício, para R$ 100 mil.

Judicialização do jornalismo

O uso do Judiciário para cercear a atividade jornalística ocor­re de diferentes formas. Para o professor do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Carlos Augusto Locatelli, “talvez os grandes casos, os emble­máticos, como o do Luis Nassif, tenham mecanismos jurídicos diferentes do que [os jornalistas] estão sofrendo na base”. Ele orientou uma pesquisa de mestrado do jornalista Caetano Ma­chado sobre processos judiciais movidos contra a imprensa. O Unidade conversou com os dois.

Em um levantamento no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Machado encontrou 578 ações de danos morais movidas contra jornalistas e/ou organizações jornalísticas, que tiveram decisão entre 2010 e 2017. Ele ressalta que não pesquisou outros tipos de processos, e que suas informações dizem respeito apenas às ações que chegaram à segunda instância. “É difícil rastrear e quantificar o que acontece na primeira instância. Nós não temos nem ideia do tamanho disso, acho que ninguém tem”, afirma.

Locatelli vê nesses números um fenômeno de judicialização do jornalismo, algo que seria uma das faces da judicialização da vida. “As pessoas não querem mais nem conversar com o jornalista, escrever carta para a redação, apresentar sua ver­são.” Em vez disso, já “chamam no processinho”, como se diz nas redes sociais.

O alto número de ações judiciais tem a ver, segundo o pro­fessor, com o fato de as pessoas serem mais sabedoras dos seus direitos. Por isso, ele não vê apenas aspectos negativos nesse fenômeno. E levanta outros fatores. “Tem a ver com o acesso à Justiça ter se tornado mais fácil e barato. Tu entra pela internet, não precisa nem de advogado. E, do ponto de vista ideológico, a polarização política leva à não aceitação da outra versão, que é uma das bases do jornalismo.”

A presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, considera importante enfrentar a perseguição judicial como atividade permanente, e não vê um agravamento do problema neste momento. A Federação publica anualmente o Relatório Anual de Violência Contra Jornalista e Liberdade de Imprensa no Brasil, que registra, entre outros, casos de censura e de cerceamento da liberdade de imprensa por ações na justiça. Ela afirma ser provável que haja subnotificação, pela indispo­nibilidade de dados.

“O Judiciário no Brasil tem sido historicamente utilizado para tentar cercear a liberdade de imprensa e o direito ao exercício da profissão de jornalista. A gente não pode afirmar que hoje há mais ações que no passado recente ou no passado longíquo”, afirma Braga.

Mas Locatelli e Machado avaliam que há pelo menos uma mudança relacionada com o acesso à Justiça. “Quem move os processos por danos morais, a maior parte, são pessoas comuns. E essa é a diferença.” O advogado Alexandre Fidalgo, especia­lista em causas ligadas à defesa da liberdade de imprensa e de expressão, tem avaliação parecida. Para ele, eram mais comuns processos que tinham por finalidade sustentar, a um partido ou bancada política, o discurso de perseguição da imprensa e a afirmação de que todo o publicado constitui “mentira”.

Censura colateral

A notícia: uma mulher conseguiu no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) uma indenização por ter sido publicamente acu­sada de racismo por uma ex-funcionária. A condenada, Luanna Teofilo, havia feito postagens relatando que sua superiora teria dito “tira isso”, ao vê-la com tranças. Por isso, foi processada por danos morais em decorrência de “ofensa à honra”.

Com base nos autos da ação, que não estão em segredo de justiça, os sites Ponte Jornalismo e Alma Preta fizeram uma ma­téria que reportava o julgamento, dando à acusada espaço para apresentar sua versão. A decisão do desembargador relator do processo, no entanto, ordenou a retirada do conteúdo de ambos os sites, e também do Yahoo Notícias e da Rádio Jacutinga, onde tinha sido republicado.

Luanna foi proibida pelo TJSP de falar sobre o suposto ato racista e, em resposta a um embargo de declaração, o desem­bargador Piva Rodrigues estendeu a proibição aos veículos de comunicação. “A decisão não só calou uma mulher negra, como calou todos os veículos que quiseram ouvir a mulher negra”, resume Fausto Salvadori, chefe de redação da Ponte.

Ele afirma: “Quando a gente fala de liberdade de expressão, a doutrina mais estabelecida é a de que todo mundo é responsável pelo que diz e pode vir a responder pelo que afirmar, parece razoável. Ela está sendo obrigada a indenizar a pessoa a quem acusou, o que faz parte do jogo democrático. Mas, a sentença vai além: impede inclusive veículos de comunicação de noticiar a acusação e como se desenrolou.”

Nenhuma das organizações jornalísticas é parte do processo (movido pela ex-chefe contra a ex-funcionária) ou foi ouvida antes da decisão. “Censurar um veículo de comunicação parece ser tão sem importância, tão corriqueiro, que pode ser feito em um embargo de declaração, sem chance de defesa aos veículos mencionados. No começo, a gente teve até dúvida de como se defender, porque a decisão foge do que vimos, mesmo em ca­sos de censura – e não é a primeira vez que lidamos com isso. Mas nesse caso fomos como dano colateral”, afirma Salvadori. A Ponte recorreu ao STF.

O caso de censura descrito acima se soma a outros em vigor, hoje, no Brasil. A TV Globo, por exemplo, foi proibida em de­zembro de exibir documentos sobre a denúncia de “rachadinha” de Flávio Bolsonaro, o que classificou como um “cerceamento à liberdade de informar, uma vez que a investigação é de interesse de toda a sociedade”. O site Atilados, também em dezembro, foi obrigado a tirar uma matéria do ar e interromper a série de reportagens que produzia.

“Felizmente, para todas as ações de que a Fenaj tem conhe­cimento que chegaram ao STF, foi preservado o princípio da liberdade de imprensa, inclusive ações propostas por membros do Judiciário ou do Ministério Público”, relata Maria José, da Fenaj. Mas justiça que tarda, falha. A censura a uma notícia no momento em que sua veiculação é de interesse público, mesmo se posteriormente revertida, é prejuízo que não tem volta.

É só lembrar o caso mais notável de censura prévia recente, cometido justamente por membros da mais alta corte do país. Em outubro de 2018, os pedidos dos jornalistas Mônica Bergamo e Florestan Fernandes para entrevistar Lula, então preso em Curitiba, foram negados pelos ministros Luiz Fux e Dias Toffoli sob o argumento de que a entrevista “poderia confundir o pro­cesso eleitoral” então em curso. Mesmo que a decisão tenha sido revertida meses depois pelo próprio Toffoli, o objetivo central da censura, a tentativa de tolher o debate político às vésperas da eleição, foi alcançado.

Quando o autor da ação está de toga

Maria José Braga, da Fenaj, levanta outra preocupação. “O mais grave é quando os próprios operadores do Judiciário atentam contra a liberdade de imprensa, por meio de ações que propõem. Juízes, procuradores, promotores deveriam buscar resguardar a legisla­ção e, em última instância, a liberdade de imprensa. Isso é muito grave, até porque nós temos um Judiciário altamente corporativo.”

Um exemplo é o processo movido pelo juiz Rudson Marcos e pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira contra o site The Intercept Brasil. Em dezembro, a juíza Cleni Serly Rauen Vieira, de Florianópolis, determinou edições na reportagem de Schirlei Alves sobre o julgamento do estupro de Mariana Ferrer, que viralizou pelo uso da expressão “estupro culposo”, em sentido figurado, segundo o site. The Intercept Brasil alega que sua defesa não foi ouvida antes da decisão.

Marcos e Oliveira pedem indenizações de R$ 450 mil e R$ 300 mil, respectivamente, por danos morais. Sobre isso, cita­mos texto de Leandro Demori, editor executivo do site, e Paula Bianchi, editora: “Para se ter ideia do absurdo do pedido feito pelos dois, em uma sentença de primeira instância, a justiça brasileira havia decidido que a mãe de um jovem de 17 anos que foi morto após ser entregue por militares do Exército a trafi­cantes deveria receber apenas R$ 50 mil reais. Para Oliveira e Rudson Marcos, suas próprias honras valem, juntas, 15 corpos negros assassinados pela mão do estado”.

À esquerda, o professor Carlos Locatelli, da UFSC.

EFEITO BOLSONARO

“A chegada da extrema direita ao poder afeta não só o Executi­vo, onde eles estão instalados, o Legislativo, com deputados com essas posições, mas todos os se­tores da sociedade. Todos os que têm essas posições se sentiram legitimados a levar posturas au­toritárias, estão se sentindo livres para agir nesse sentido.” A avalia­ção é de Fausto Salvadori, chefe de redação da Ponte Jornalismo. “Algo que até então se manifes­tava muito claramente na forma como esse setor trata a popula­ção pobre e negra no Brasil, co­meça a chamar atenção porque também se volta contra a elite intelectual, jornalistas.”

Carlos Locatelli, professor da UFSC, pontua: “O bolsonarismo tem usado diversas estratégias para silenciar. Mas ele tem um grande efeito: está nos permi­tindo ver de forma cristalizada várias características da socie­dade, e uma delas é essa. O fe­nômeno é mais amplo, ninguém tem dimensão.”

Qual o efeito sobre o jornalismo?

Essa pergunta foi levantada pelo professor Carlos Locatelli, da UFSC. O primeiro deles é uma mudança na rotina jornalís­tica de algumas organizações, por conta da ameaça processual. “Em algumas redações, o advogado virou o melhor amigo do editor”, afirma.

“A gente tem visto aqui, pelo menos para certos assuntos, o chamado ‘jornalismo sem nome’. ‘Um empresário matou ontem sua esposa em algum lugar’. A gente não sabe nada com essa notícia, mas é porque há o medo de que a pessoa, se for absol­vida da acusação, processará o jornal. Nós temos dezenas de casos assim. Ele vai alegar que a exposição de seu nome trouxe prejuízos irreparáveis. E isso mesmo se a matéria for feita com base em documentos públicos, de fé pública”, explica o professor.

Locatelli lembra que há, claramente, um impacto financeiro. “A principal ameaça ao jornalismo é a da falência. Um processo por dano moral é rápido, e pede dinheiro. O valor fixado muitas vezes inviabiliza a vida dos jornalistas, ainda mais se você pensar em freelancers que não têm a estrutura de uma organização jornalística por trás.”

Fausto Salvadori, da Ponte, também aponta que, para os veí­culos independentes e menores, o custo com a manutenção de uma estrutura jurídica impacta a capacidade de atuação. “O que a gente gasta com assessoria jurídica, poderíamos gastar com um repórter fixo. Nós temos dois, perdemos 1/3 do que poderia ser a nossa equipe.”

Luis Nassif ainda lembra: “O problema é quando [a ação] vai para Brasília. Qual a estrutura que um site independente tem para isso? Eu ainda estou dando sorte de estar recebendo muito apoio”.

Em 2018, o Sindicato dos Jornalistas entrou com um pedido no Tribunal de Justiça para defender os direitos de André Rizek: incluído como corréu em processo motivado por uma reportagem na revista Placar em 2001, o jornalista foi condenado a arcar sozinho com o pagamento de uma indenização superior a R$ 500 mil, após a Editora Abril entrar com pedido de recuperação judicial, o que impediu a empresa de ser executada por dívi­das. Em setembro de 2020, Rizek pagou cerca de R$ 400 mil e encerrou o processo, tornando-se credor da Abril — apesar do calote, vale lembrar que a editora é signatária da Convenção Coletiva de Jornais e Revistas da Capital, que determina às empresas custear todas as despesas. A justiça será feita?

Sai Lei de Imprensa, fica vácuo

por Adriana Franco

Maria José Braga, presidente da Federação
Nacional dos Jornalistas

Em 2009, o Supremo Tribunal Fe­deral (STF) derrubou a Lei de Imprensa (Lei 5250/67) sob o argumento de que a então legis­lação, criada durante a ditadura militar, era incompatível com a ordem constitu­cional vigente, ou seja, com a Constituição Federal de 1988. Criada a partir de uma ótica punitiva e cerceadora da liberdade de expressão, a norma foi totalmente ex­cluída do ordenamento jurídico, mesmo que alguns ministros tenham, na época, discutido sobre um possível vácuo legis­lativo. A conclusão, no entanto, foi a de que o direito de resposta, garantido pela CF 1988, supria a lacuna.

A Federação Nacional dos Jornalis­tas (Fenaj) defende que houve falha do Supremo ao derrubar integralmente a Lei de Imprensa, inclusive o direito de resposta. “Ela tinha, claro, aspectos in­constitucionais, mas tinha outros perfei­tamente constitucionais, como o próprio direito de resposta, que está consagrado na Constituição e estava regulado na Lei de Imprensa. Então, quando o STF derruba a lei, cria um vácuo legal, que foi parcial­mente superado com um projeto de lei do Senador Roberto Requião”, declarou a presidente da entidade, Maria José Braga.

A Fenaj, inclusive, defendeu a aprova­ção do substitutivo Vilmar Rocha, de 1997, ao Projeto de Lei (PL) 3232 de 1992, que chegou a ser aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara. No entanto, o projeto de lei foi arquivado em razão da aprovação do PL 6446/2013 apensado. O PL tornou-se a Lei 13188/2015, que trata apenas do direito de resposta.

O projeto arquivado previa, por exemplo, o fim da pena de prisão para jornalista. Braga afirma: “Para nós, nenhuma pena pecuniária é mais grave do que uma pena de privação de liberdade, a qual nós consideramos que é sempre desproporcional ao delito. E a gente lembra que recentemente tivemos jornalistas combinados à prisão.”

É o caso do jornalista Amaury Ribeiro Ju­nior. Em dezembro passado, uma juíza de primeira instância o sentenciou a 7 anos e 10 meses de reclusão. Outras quatro pessoas foram também condenadas. A pena é pelo suposto crime de “oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público” para ter acesso a dados protegidos por si­gilo fiscal de Veronica Serra, filha de José Serra, e do então vice-presidente executivo do PSDB, Eduardo Jorge, em 2010. Foi quan­do Amaury escreveu o livro-reportagem A privataria tucana.

No processo, o jornalista afirma que “jamais pagaria pela obtenção de dados fiscais sigilosos de qualquer cidadão”, e sua defesa sustenta que “estão ausentes indícios minimamente críveis de que Amaury tenha concorrido para a prática das infrações penais apuradas” (informa­ções de O Estado de S. Paulo).

A Federação Nacional dos Jorna­listas destaca pontos indispensá­veis em uma lei que garanta direito aos jornalistas e preserve a liber­dade de imprensa.

• fim da pena de prisão para jor­nalistas;

• delimitação das penas pecuniá­rias à capacidade real do pena­lizado e dos veículos;

• cláusula de consciência: possibi­lidade de recusa à assinatura de matéria editada de forma com a qual o jornalista não concorda;

• criação de serviço de atendi­mento ao cidadão / ouvidoria que permita aos cidadãos criti­carem ou elogiarem a produção jornalística dos veículos

• regra de transparência que torne público quem controla o veículo

• supervisão pública para a publi­cidade

À esquerda, a jornalista Elvira Lobato. À direita, sua advogada Tais Gasparian: “A estratégia é para desestabilizar”
Assédio processual

Perseguição por encomenda

Após publicarem reportagens que desagradam os poderosos, jornalistas passam a sofrer dezenas de processos judiciais praticamente simultâneos; para advogados, prática cresce no país

por Thiago Tanji

A reportagem que estampava o caderno especial da edição de sábado da Folha de S.Paulo, em 15 de dezembro de 2007, era as­sinada por uma jornalista mais do que acostumada com as grandes coberturas. “Universal chega aos 30 anos com impé­rio empresarial”, escreveu Elvira Lobato. Repórter desde a década de 1980, ela já havia escrito matérias diversas sobre as telecomunicações no Brasil e revelara histórias marcantes, como a intenção das Forças Armadas brasileiras de preparar um local de testes nucleares na serra do Cachimbo, no estado do Pará, em 1986. Enfim, uma profissional calejada com os conflitos e tensões inerentes ao jornalismo investigativo. Mas o que ocorreu após a publicação daquela reportagem de 2007 seria inédito para ela e para o jornalismo profissional brasileiro. Alegando que a reportagem sobre os negócios da Igreja Universal do Reino de Deus teria provocado danos morais a fiéis e pastores, 111 ações judiciais foram iniciadas contra Elvira e a Folha de S.Paulo — de acordo com reportagens da época, a igreja providenciou uma assessoria jurí­dica para auxiliar os fiéis a entrarem na Justiça contra a jornalista. Como as ações corriam em juízados especiais cíveis, que recebem causas de no máximo 40 salários mínimos e dispensam a necessidade de um advogado, a equipe de defesa do jornal tinha dificuldade de unificar as ações (veja mais na página 8).

“Foi uma maneira de dificultar a defesa, como uma punição contra o jornalista e o veículo: as ações não contestavam a re­portagem da Folha, não dizia que estava errada, mas alegavam que isso atacava a fé, que era uma questão moral”, afirma Elvira ao Unidade. A jornalista relembra que, por conta do grande volume de pro­cessos simultâneos, era convocada a estar no mesmo dia em juizados de estados di­ferentes e em locais de difícil acesso, como no interior do Mato Grosso, da Bahia ou do Amazonas — a equipe jurídica da Fo­lha mandava representantes no lugar da repórter. “Nós ganhamos todas as ações, mas a igreja saiu vencedora porque inti­midou: durante muitos anos, não escrevi sobre a Igreja Universal porque eu tinha perdido a imparcialidade diante desses 111 processos.” Um ano após a publicação da reportagem, Elvira Lobato ganhou o Prê­mio Esso de Jornalismo por esse trabalho.

A tática de constrangimento e intimi­dação por meio de ações coordenadas na Justiça, que recebe o nome de assédio pro­cessual, vem crescendo desde o emblemá­tico caso vivido por Elvira Lobato. E não apenas contra reportagens jornalísticas: no ano passado, a Igreja Universal do Rei­no de Deus utilizou o mesmo expediente contra o escritor João Paulo Cuenca, que publicara em junho uma mensagem no Twitter transportando a igreja de Edir Macedo para a célebre frase anticlerical do francês Jean Meslier, escrita ainda no século 18: “o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”. Tão logo o tuíte começou a viralizar, Cuenca foi alvo de mais de 80 ações em juizados especiais cíveis em qua­se 20 estados do país.

A Igreja Universal, entretanto, não está sozinha ao adotar esse tipo de prática. No ano passado, Ricardo Sennes, que é co­mentarista da TV Cultura, recebeu quase 70 processos em 35 cidades após criticar as ações de Jair Bolsonaro para afrouxar as regras de controle de munições e armas. “Ele [Bolsonaro] é um cara que o histórico era de relação com miliciano, com cara da área do armamento, que ele chama de colecionador”, disse Sennes em edição do Jornal da Cultura do dia 24 de abril do ano passado. Com uma campanha gestada nas redes sociais, colecionadores de ar­mas ingressaram com ações em diferen­tes regiões do país e incentivavam outros membros dessa comunidade a entrarem na Justiça contra o comentarista. Nos pro­cessos que já foram julgados, favoráveis a Sennes, os magistrados destacaram que o objetivo único da judicialização era causar despesas e incômodos, como uma maneira de intimidação.

“A estratégia é para desestabilizar, fa­zer com que o jornalista tenha medo de se manifestar outra vez: os processos se deram em diversas regiões do país, sendo que quase não há processos nas capitais dos estados, há ações em cidades a cen­tenas de quilômetros das capitais”, relata a advogada Taís Gasparian, que defende Elvira Lobato e Ricardo Sennes. Traba­lhando há mais de 30 anos com processos relacionados à defesa da liberdade de ex­pressão, ela considera que o crescimento dos casos de assédio processual não é mera coincidência e reflete a interrupção das conquistas obtidas a favor do livre exer­cício do jornalismo desde a promulgação da Constituição de 1988. “Bolsonaro milita contra a imprensa e contra a livre expres­são do pensamento, incitando os cidadãos contra os jornalistas”, afirma.

Já em alguns casos, o abuso das prer­rogativas jurídicas contra o exercício do jornalismo é organizado pelos próprios representantes do Poder Judiciário. Foi o que ocorreu com três jornalistas da Gazeta do Povo, do Paraná, contra os quais magis­trados ingressaram com quase 50 ações judiciais por danos morais. O motivo: a publicação de uma reportagem em 2015 que revelava os supersalários de juízes e desembargadores do estado. Na ocasião, o Sindicato dos Jornalistas do Paraná denunciou as tentativas de retaliação dos magistrados à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná. Posteriormente, o Supremo Tri­bunal Federal (STF) suspendeu todos os processos contra a equipe do jornal.

Apesar de a maioria das decisões ser favorável aos jornalistas, o atual momen­to vivido pelas empresas de jornalismo gera preocupações, principalmente pelo desamparo em eventual processo judicial motivado por uma reportagem. “Se eu ti­vesse que arcar com minha defesa jurídica, seria impossível: por mais rigoroso que você seja com o seu trabalho, não se blin­da contra isso”, afirma Elvira Lobato. O jornalista Pedro Marcondes, alvo de ações judiciais da Força Sindical em diferentes estados após uma reportagem publicada na revista Istoé em 2011 sobre disputas pelo controle de sindicatos, também não precisou comparecer aos tribunais por contar com a estrutura jurídica da em­presa. “Quando você está em uma redação mais estruturada, fica mais fácil lidar com esse tipo de situação. Agora que as pes­soas estão em relações mais precárias de trabalho, não sei como fica.”

Alexandre Fidalgo, advogado especializado em liberdade de imprensa e de expressão
Assédio processual

A nova mordaça do jornalismo

Ações judiciais em massa prejudicam investigações jornalísticas, perseguem e buscam silenciar os profissionais de imprensa

por Alan Rodrigues

A tática é o disparo de dezenas de processos ao mesmo tempo, em diversas comarcas do país, con­tra quem contraria interesses ou incomoda o poder central em Brasília, a igreja ou outras entidades. Ao fim e ao cabo, “muitos dos processos têm o obje­tivo de incomodar para silenciar”, afirma o advogado Alexandre Fidalgo. Especialista em causas que envolvam liberdade de imprensa e liberdade de ex­pressão, Fidalgo classifica as investidas judiciais contra jornalistas como assédio processual. Defensor jurídico de jornalis­tas como Ricardo Noblat e comentaristas políticos como Marco Antônio Villa, ele entende que o ajuizamento de diversas ações sobre um mesmo fato é uma afronta ao direito fundamental à liberdade de expressão e de imprensa. “A finalidade das ações era intimidar o jornalista e o veículo, a fim de que nada mais fosse divulgado a respeito do autor da ação”, argumenta Fidalgo.

UNIDADE: Qual é a avaliação do senhor sobre o cenário atual de processos em massa contra jornalistas?

A atividade jornalística sempre, em toda a sua história, independentemente do go­verno, foi responsabilizada pelos agentes públicos como a causadora dos infortúnios da administração pública. O discurso ataca sempre o mensageiro, esquecendo-se do verdadeiro ator dos atos publicados pela imprensa.

O discurso político é maniqueísta. Se alguém não concorda com determinada opinião, argumento ou reverbera um fato, automaticamente está no sentido oposto. A partir daí, torna-se alvo de demandas ju­diciais e de ataques nas redes cibernéticas.

Chama a atenção que inúmeras deman­das contra jornalistas e pensadores polí­ticos são ajuizadas por simpatizantes do governo federal, em evidente abuso do direito de ação. A finalidade é intimidar, ameaçar, cercear o direito de manifestação de pensamento.

Há um crescimento de ações desse tipo contra os jornalistas. A que o se­nhor atribui essa onda?

Após a Constituição Federal de 1988, as demandas contra a imprensa migraram das ações penais para as ações de respon­sabilidade civil, posto que o texto consti­tucional deu ênfase – de forma corretíssi­ma – à reparação pecuniária, sempre que violada a intimidade, privacidade, honra e imagem. Se antes houve uma evolução no ordenamento jurídico a permitir o ajui­zamento de ações cíveis e, em seguida, as demandas contra a imprensa denotavam uma finalidade de sobrevivência política, há hoje uma inquestionável perseguição com objetivo censório, que não é feita por partidos políticos e tampouco por políticos ou agentes públicos, mas sim por simpati­zantes de alguma ideologia ou algum go­verno, que agem contra qualquer um que falar de forma contrária ao pensamento político que defendam.

Qual é ou quais são os objetivos dessa enxurrada de processos?

Como as ações são orquestradas, pla­nejadas para serem distribuídas no país todo e ao mesmo tempo, valendo-se, em sua grande parte, da Lei 9099/95 – que dispensa custas processuais, permite que demandas de até 20 salários mínimos se­jam ajuizadas sem advogado e, mesmo que improcedentes os pedidos iniciais, não in­correm em sucumbência –, bem como são feitas por simpatizantes que sequer são mencionados na reportagem ou na mani­festação crítica, conclui-se que o objetivo desse movimento é o da intimidação, da ameaça, da tentativa de “calar a boca”.

Ao agirem assim, não só manifestam-se contra o indivíduo que processam, mas também contra o sistema jurídico, eis que se valem de lei com finalidade específica – a Lei 9099/95 foi criada, inicialmente, para atender demandas reprimidas e para dar andamento efetivo ao princípio e garantia constitucional de acesso à Justiça –, dando a ela sentido diferente do proposto pelo legislador. Além disso, investem contra o regime democrático, buscando cercear e tolher a atividade jornalística, que deve ser exercida de forma plena.

Há um outro componente, que se mostra presente, talvez por consequência, que é a atuação política. Com a quantidade de ações persecutórias, busca-se, ao final, a preservação de apenas uma perspectiva, de uma narrativa sobre os fatos, exatamen­te aquela de quem está no poder. Logo, se vencedores, não teremos uma disputa eleitoral em igualdade de condições, não teremos uma sociedade informada a res­peito das coisas públicas. Teremos, assim, uma democracia fragilizada.

O movimento persecutório a jorna­listas, percebendo não haver o direito postulado, preferiu se aventurar valen­do-se da Lei 9099, que não impõe risco financeiro algum.

E mais, o que é bastante grave, a lei, que tem uma proposta diferente daquela ma­nejada pelos grupos que assediam pro­cessualmente jornalistas e outros, impõe a presença física dos réus nas audiências de conciliação e de instrução, seja em que comarca for. Com a pandemia e as audi­ências virtuais, essa obrigação – e forma de intimidação – perdeu espaço.

O que os jornalistas podem fazer para tentar se defender destes processos em massa?

O combate às demandas ajuizadas por políticos, partidos, agentes públicos e apoiadores de determinada frente política se faz com mais atividade jornalística. O cerceamento da democracia impõe mais atividades democráticas, aproveitando, aqui, a ideia do historiador Michael Lind. Ou seja, às tentativas de cerceamento da palavra, mais atividade jornalística.

ERA SÓ O QUE FALTAVA

Em meio à balbúrdia que to­mou conta deste país desde a posse de Jair Bolsonaro, um gru­po chamado Ordem dos Advo­gados Conservadores do Brasil (OACB) criou um “disque-denún­cia” para processar quem falar mal do governo. Numa frase: eles querem silenciar os dissonantes. A facção se organiza nacional­mente e propõe uma enxurrada de processos judiciais.

“Se você receber ou se depa­rar com vídeos, fotos, ou qualquer outro tipo de postagem ofensiva ao presidente Jair Bolsonaro, sua família e membros do seu gover­no, seja por parte de políticos, ar­tistas, professores ou qualquer um do povo, envie o material para o e-mail”, diz uma imagem divulgada pelo grupo. “VAMOS PROCESSAR TODOS”, promete.

O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, afirmou que pedirá que a Procuradoria da ordem entre com uma ação: “tal ‘enti­dade’ desconhece ou despreza a Constituição”.